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A África do Sul sob as lentes de Nelson Mandela

*Por Bruna Santos


Foto: Veja


A linguagem do colonizado é única. Enquanto a estrutura colonizadora tende à racionalização, agregação e organização sequencial, a leitura do colonizado parece pender para uma interpretação histórica, crítica e desconfiada. Ao perscrutar a história da África do Sul pelas lentes colonizadoras, por exemplo, enxergamos um país etnicamente diverso, e, portanto, multicultural e multilinguístico.

Retirando essas lentes – adentrando, então, ao universo colonizado -, mantemos as primeiras impressões, uma vez que a diversidade é inegável. Notamos, contudo, um padrão de conflito, sangue e morte que forçou essa diversidade. A pluralidade sul-africana parece mais impositiva de povos estrangeiros, do que opcional da população nativa.

Em verdade, a narrativa da África do Sul foi inaugurada por povos nativos; por um lado, grupos descendentes de Nguni, cuja língua era o Bantu (Zulu, Xhosa, Swazi, e Ndebele); por outro, grupos cuja língua era o Tswana-Sotho (Sotho/Basuto, Tswana, e Pedi). Esses Tais grupos não eram necessariamente aliados: mesmo aqueles que compartilhavam a mesma língua possuíam diferenças culturais marcantes que não raro transformavam-se em conflitos.

Em 6 de abril de 1652, o holandês Jan van Riebeeck redefiniu o traço da história do país sul africano. Em verdade, foram os portugueses que primeiro desembarcaram na África do Sul; no entanto, o país foi visto com desinteresse, haja vista que o objetivo europeu se concentrava na comercialização de especiarias da Índia na Europa. A expedição holandesa modificou esse tal contexto, principalmente a partir da percepção da conveniência da atual Cidade do Cabo para aqueles que faziam a rota Ocidente-Oriente.

A atenção europeia no país resultou em conflitos tanto entre os próprios europeus (em especial Holandeses e Ingleses, que batalhavam pelo controle da região) quanto entre os europeus e os povos nativos. O que se seguiu foi uma história de assassinato e escravização dos nativos, além de uma política de aculturamento. Os europeus chegaram a realizar, entre 1884 e 1885, a chamada Conferência de Berlim, na qual o continente africano foi partilhado de acordo com os interesses dos países europeus, em detrimento dos locais, bem como de suas diferenças culturais.

O contexto apresentado revela duas características basilares tanto para a configuração do fenômeno do apartheid quanto para o entendimento acerca da influência de Nelson Mandela no direito internacional: o assentamento de uma estrutura política de supremacia branca e a tentativa de obliteração da narrativa nativa em favor da europeia.

Essas duas características auxiliam a explicação histórica de um dos maiores regimes de segregação racial da história: o apartheid. Implementado em um período no qual a composição racial da África do Sul contava com quase 70% de negros, o apartheid só é cognoscível se pensarmos em uma política racializadora historicamente construída. Os imigrantes europeus instalaram-se na África sob a crença de que os nativos não possuíam civilização, organização ou legitimidade sobre suas próprias terras, e desenvolveram, assim, uma série de medidas que estabeleciam uma dicotomia baseada na premissa de civilização e direito relacionados à branquitude, e barbárie e restrição relacionados à negritude.

O Apartheid, resultado dessa construção, é definido como uma política de segregação racial institucionalizada, na qual o próprio aparato estatal reforçava a suposta hierarquia da raça branca sobre a não-branca, com a elaboração de leis e regras discriminatórias, como o Prohibition of Mixed Marriages Act (1949), que proibia o casamento entre pessoas brancas e de outras raças, e o Population Registration Act (1950), que classificava a população em “grupos raciais” e ensejavam a separação de núcleos familiares.

Dentre outras medidas implementadas no período, destacam-se a divisão da África do Sul em áreas específicas, de maneira que ambientes residenciais ou comerciais fossem racialmente segregados, e que o parâmetro racial fosse utilizado como critério de educação, contratação e participação política, além da implementação de proibição de trânsito de não-brancos em determinados locais.

Foto: Nações Unidas


Foi nesse contexto que Nelson Mandela construiu sua trajetória de luta. Ainda enquanto estudante de direito, Mandela integrou a maior organização antiapartheid da África do Sul, o Congresso Nacional Africano (CNA), cujo objetivo era a extinção do apartheid e abolição das leis segregacionistas. A CNA propunha boicotes, greves, resistência pacífica, comícios de protesto e outras formas de ação de massas como meios de instrumentalização de seus objetivos.

A importância de Mandela não foi apenas simbólica. Fundador da Liga da Juventude (aparato da CNA), ele assumiu rapidamente posição de liderança e revolucionou a estrutura da organização, que transmudou de uma campanha desmantelada, mais voltada aos seus ideais do que à materialização de medidas antissegregacionistas, para uma estrutura organizada, formada por ativistas experientes e capazes de abordar a polícia, as cortes de justiça e as prisões.

Apesar de predominantemente pacifista, a organização assumiu contornos mais radicais em virtude da repressão do governo sul africano à época. Quando, em 1960, a polícia atirou indiscriminadamente em um grupo de 7000 manifestantes em Sharpeville, assassinando 69 pessoas, Mandela decidiu que o seu grupo deveria formar uma força armada, chegando a viajar com o objetivo de angariar fundos para subsidiar equipamentos. A parcela armada da CNA protagonizou atos de sabotagem voltados à destruição de propriedades, detonação de bombas em prédios governamentais, de transporte e espaços militares.

Em razão disso, Mandela foi preso em 1950, e posteriormente condenado à prisão perpétua, em 1961. Pelos próximos 27 anos, Mandela permaneceria na prisão, recusando sucessivamente acordos ofertados pelo governo em nome do seu ativismo. A sua militância – Mandela continuou engajado em atividades políticas na prisão – foi estopim de reações internas e externas ao apartheid. Dentro da África do Sul, comícios, greves, e protestos tornaram-se cada vez mais frequentes, enquanto, internacionalmente, diversos países endossaram boicotes e sanções econômicas ao país.

Pressionados por atores internos e internacionais, os líderes do Partido Nacional da África do Sul (grande ator da instituição do Apartheid) sucumbiram ao inevitável: promoveram a libertação de Mandela e legalizaram as atividades políticas da CNA. Como consequência, em 1994, foram instituídas no país eleições multirraciais que tornaram Nelson Mandela (candidato da CNA) o primeiro presidente negro da África do Sul.

Foto: The Atlantic


O mandato de Mandela foi marcado pela tentativa de reconciliação social no país, sendo o principal objetivo do governo Mandela a promoção da transição de um regime de apartheid para outro democrático.

A trajetória de Nelson Mandela é também marcada por uma redefinição do direito internacional, em especial no que se refere à proteção dos direitos humanos e à construção de um regime democrático.

Mandela retomou o protagonismo local na narrativa sul africana. Até pouco antes da formação da CNA, as forças de resistência de toda a população não-branca do país –construídas desde as primeiras excursões europeias no continente, por meio dos povos nativos – foram estranguladas e menosprezadas. Nelson Mandela reverteu essa lógica; a partir da sua liderança, os holofotes deixaram de se concentrar na minoria da população (branca), passando a também abranger as manifestações de negros, mestiços, e demais grupos que compõem a população do país.

É importante lembrar que a história dos Direitos Humanos é por vezes marcada por uma centralização europeia. Há correntes que entendem o início dos Direitos Humanos, positivamente considerado, a partir da elaboração e assinatura de documentos em solos europeus - é o caso da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, a Carta das Nações Unidas, de 1945, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos e Sociais e Culturais, de 1966, entre outros.

O que Nelson Mandela instiga é a construção de uma trajetória ativista dos Direitos Humanos que nasceu e se desenvolveu na África, de início a partir da atuação da Liga da Juventude, e, após, na participação política indireta, inabalável ainda quando o líder encontrava-se preso, e direta, por meio de sua posse como Presidente da República.

Nelson Mandela construiu uma trajetória não ortodoxa. Apesar de inicialmente pacifista, o líder endossou práticas armamentistas e violentas, como a explosão de propriedades do governo e detonação de bombas. Esse contexto não maculou, em absoluto, a sua atuação enquanto ativista dos direitos humanos.

Enquanto Presidente da República, o foco do líder sul africano foi a construção de uma nova constituição, amplamente democrática. A política por ele instituída não se baseou em modelos anteriormente adotados – o objetivo era a construção de uma estrutura política aplicável à África do Sul, de acordo com o seu histórico. Para tanto, Nelson Mandela buscou implementar uma política de unificação social, de maneira a promover uma convergência de interesses entre os diversos partidos do país, além de manter-se atento às demandas da população (em especial aos setores sindicalistas, ONGs e centros acadêmicos) e executar programas voltados à redistribuição de renda e reversão da desigualdade herdada pelo apartheid (Brites e Padilha, 2017).

Nelson Mandela baseou a sua atuação interna e externa, enquanto presidente, nos preceitos dos Direitos Humanos. Nas palavras do próprio Mandela, em tradução de Brites e Padilha:


Os pilares nos quais serão baseados nossa política externa são as seguintes crenças:


(1) que os assuntos de direitos humanos são centrais para as relações internacionais e uma compreensão de que eles se estendem além do político, abrangendo também o econômico, o social e o ambiental; 
(2) que soluções justas e duradouras para os problemas da humanidade podem apenas acontecer através da promoção da democracia em todo o mundo; 
(3) que considerações de justiça e respeito por leis internacionais deveriam guiar as relações entre as nações; 
(4) que a paz é um objetivo pelo a qual as nações deveriam convergir, e onde isso não acontece, mecanismos estabelecidos e não-violentos, incluindo regimes efetivos de controle de armas, devem ser empregados; 
(5) que as preocupações e os interesses da África devem estar refletidos em nossas escolhas de política externa; 
(6) que o desenvolvimento econômico depende da crescente cooperação econômica regional e internacional em um mundo independente. 

Estas convicções contrastam com a forma em que, durante quase cinco décadas, o Apartheid na África do Sul conduziu desastrosamente suas relações internacionais.


Foto: Exame


A trajetória de Mandela chamou a atenção do mundo para questões fundamentalmente de direitos humanos. Durante sua prisão, diversos países impuseram sanções econômicas à África do Sul, em represália às suas práticas antidemocráticas. Não obstante às críticas delineadas à imposição de sanções econômicas por países hegemônicos a seus pares periféricos, é possível afirmar que, no que se refere à África do Sul, instrumentos econômicos, utilizados pela comunidade internacional, constituíram importante vetor de pressão internacional em torno da extinção do regime segregacionista do apartheid.

Em resumo, a trajetória de Nelson Mandela é a materialização das palavras proferidas por ele próprio pouco antes da sua prisão: a defesa, vivida e realizada, do ideal de uma sociedade democrática e livre, na qual todas as pessoas possam viver juntas em harmonia e oportunidades iguais. Um ideal pelo qual o líder viveu. Um ideal para o qual se dispôs a morrer.

REFERÊNCIAS:

BRITES, Pedro Vinícius Pereira; PADILHA, Yuri Debrai. A Diplomacia de Prestígio na África do Sul de Nelson Mandela (1994- 1999). Revista Brasileira de Estudos Africanos, v.2, n.3, p.156-176, Jan/Jun 2017; Apartheid. History, 2020. Acesso em: https://www.history.com/topics/africa/apartheid; People and Culture of South Africa. South Africa History Online, 2019. Acesso em: https://www.sahistory.org.za/article/people-and-culture-south-africa; Apartheid. Encyclopaedia Britannica. Acesso em:

https://www.britannica.com/topic/apartheid; The Arrival of Jan Van Riebeeck in the Cape - 6 April 1652. South Africa History Online, 2019. Acesso em:

https://www.sahistory.org.za/article/arrival-jan-van-riebeeck-cape-6-april-165; How Unique was Slavery at the Cape? South Africa History Online, 2018. Acesso em:


*Bruna Santos é formada em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), advogada atuante na área de contencioso estratégico, presidente da Clínica de Direitos Humanos da UFBA, e militante dos Direitos Humanos, em especial no que se refere aos grupos vulneráveis e minoritários.

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