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Achado não é roubado? Os Bronzes de Benin e o Direito Internacional

Por Lucas Nogueira Nunes e Gabriella Dias Silva*


Foto: Andreas Praefcke


A devolução dos Bronzes de Benin


Em 29 de abril de 2021, o estado alemão anunciou que devolveria mais de 1000 unidades dos famosos “Bronzes de Benin” à Nigéria, que luta pela repatriação dos artefatos históricos há anos.


Os Bronzes de Benin são estátuas e painéis decorativos feitos de bronze e latão (liga metálica de cobre e zinco) na forma de corpos humanos e figuras animais. Acredita-se que a maioria foi esculpida entre os séculos XIII e XVII, a mando do Obá (Rei) do antigo reino de Benin, território que hoje corresponde à Nigéria.


Os Bronzes, no entanto, cumpriam muito mais que uma função decorativa, eram alguns dos principais artefatos culturais do reino de Benin. Como esclarece o Museu Britânico, “as placas [Bronzes] eram registros históricos fundamentais para a Corte e o reino de Benin, ilustrando práticas e tradições históricas” (tradução nossa).


Em janeiro de 1897, uma expedição de soldados britânicos foi atacada e derrotada por uma patrulha militar de Benin. No mês seguinte, em resposta ao ataque sofrido, soldados britânicos atacaram a Cidade de Benin, capital do então reino de Benin. O ataque devastou a cidade, marcando o início da ocupação britânica na região e o fim do ancestral reino de Benin.


Durante o ataque, as forças britânicas queimaram o palácio real, mas não sem antes saquear o local. Dentre os espólios de guerra do ataque, se encontravam milhares dos Bronzes de Benin. Os Bronzes foram levados de Benin pelos soldados britânicos, e se dissiparam. Segundo estimativas, ainda há mais de 2000 peças espalhadas em museus no Reino Unido, EUA, Áustria, Países Baixos e Suécia, por exemplo.


Apesar dos esforços do governo nigeriano, a coleção de Bronzes que será devolvida pela Alemanha representa apenas um terço dos bronzes espalhados pelo mundo. A luta pelos Bronzes está longe de acabar.


A polêmica sobre devolução de artefatos culturais obtidos indevidamente ganhou tanta notoriedade nos últimos anos que foi retratada no cinema pelo drama “Promakhos” e pela cena icônica do museu em “Black Panther” (Pantera Negra).


Por que é tão difícil recuperar esses artefatos? Um olhar sobre o atual cenário jurídico dessas disputas pode nos trazer algumas respostas.

Foto: Adam Eastland/Alamy Stock Photo. "Plaque depicting the Oba (King) of Benin with four attendants (16–17th century). Ethnologisches Museum, Berlin."


Hard Law


O primeiro diploma moderno de direito internacional público a tratar sobre bens ou patrimônios culturais foi a Convenção para Proteção de Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, assinada após a Segunda Guerra Mundial, em 1954. Em 1970 foi aprovada a Convenção sobre as Medidas a serem Adotadas para Proibir e impedir a Importação, Exportação e Transportação e Transferência de Propriedade Ilícitas dos Bens Culturais (Convenção UNESCO de 1970). E em 1995 foi aprovada a Convenção da UNIDROIT sobre Bens Culturais Furtados ou Ilicitamente Exportados (Convenção UNIDROIT de 1995), complementando a Convenção UNESCO de 1970.


Segundo a Convenção UNESCO de 1970 são considerados bens culturais “quaisquer bens que, por motivos religiosos ou profanos, tenham sido expressamente designados por cada Estado como de importância para a arqueologia, a pré-história, a história, a literatura, a arte ou a ciência”. A norma é utilizada para definir bens culturais mesmo fora do regime jurídico da Convenção. Por isso, à luz do direito internacional os Bronzes de Benin são considerados bens culturais.


O problema é que as convenções acima citadas não são retroativas, não sendo aplicáveis a fatos ocorridos anteriores à sua entrada em vigor. Durante a redação da Convenção UNESCO de 1970, a delegação chinesa tentou conferir caráter retroativo à Convenção, por meio de uma emenda aditiva ao parágrafo 11. O dispositivo trata justamente da ilegalidade da transferência de bens culturais em contexto de ocupação territorial. O Secretariado da UNESCO rejeitou a emenda e reafirmou a irretroatividade da Convenção.


Desse modo, não há norma de direito internacional público que garanta às ex-colônias a devolução de bens culturais retirados de seus territórios no período colonial. A limitação temporal dos tratados é clara estratégia neocolonialista das ex-metrópoles para garantir a propriedade das pilhagens coloniais por tempo indeterminado.

Mesmo admitindo que a “exportação e a transferência de propriedade compulsória de bens culturais, que resultem direta ou indiretamente da ocupação de uma país, por uma potência estrangeira” constituem atos ilícitos (para. 11 Convenção UNESCO de 1970), a comunidade internacional nega às ex-colônias qualquer instrumento legal para a satisfação dos seus direitos.


Além da falta de normas internacionais, outros fatores impedem a judicialização das disputas sobre artefatos coloniais. O custo dos procedimentos legais nas ex-metrópoles normalmente é muito alto, inviabilizando o acesso à justiça aos países em desenvolvimento – caso da maioria das ex-colônias.


O modo com que cada ordenamento jurídico nacional regula a transferência de bens culturais também pode dificultar a judicialização das demandas. Na França, por exemplo, vigora o princípio da inalienabilidade dos bens culturais, derrogável apenas em determinados casos por meio de lei específica (ver exemplo).


Foto: Seyllou/Agence France-Presse. "President Macky Sall of Senegal, right, receiving the sword of Omar Saidou Tall during a ceremony in Dakar on Nov. 17. The sword had been held in France."


Soft Law


A discussão sobre a devolução de bens culturais coloniais é antiga. Como demonstrou o meticuloso relatório elaborado a pedido do presidente francês Emmanuel Macron, os países da África sub-saariana, por exemplo, vêm reivindicado diversos artefatos desde o início das descolonizações.


O movimento de reafirmação cultural africano ganhou força no final dos anos 60. Em 1973 a Assembleia Geral da ONU aprovou a resolução 3187 condenando a retirada “objetos de arte de um país para outro, frequentemente como resultado de ocupação colonial” e afirmando que a devolução desses objetos, sem custo, constitui “reparação justa pelos danos causados”.


Em 1975 uma resolução semelhante foi aprovada, porém com uma linguagem mais branda. Nos anos seguintes a Assembleia Geral continuou a aprovar resoluções que tratam do assunto. O item está na agenda da ONU desde 1973, porém sem muitos efeitos práticos.


O Comitê Intergovernamental para Retorno & Restituição


Para suprir o vácuo regulatório deixado pela Convenção UNESCO de 1970, a UNESCO instaurou o Comitê Intergovernamental para a Promoção do Retorno dos Bens Culturais aos seus Países de Origem ou sua Restituição em caso de Apropriação Ilícita em 1978 (ICPRCP, conforme sigla em inglês).


A tarefa principal do ICPRCP é facilitar as negociações para o retorno ou restituições de bens culturais. O Comitê está autorizado a utilizar mediação e conciliação para a resolução das disputas submetidas. Evidentemente, a jurisdição do ICPRCP não é obrigatória e o Comitê não profere decisões vinculantes.


Quase não há casos relacionados a bens culturais coloniais no Comitê, embora ele tenha sido criado justamente para a resolução desses casos. A relutância de muitos países em utilizar o ICPRCP como meio de resolução de conflitos demonstra a falta de credibilidade nas instituições internacionais pelo sul global. Para as ex-colônias, o desenho institucional do ICPRCP não garante o direito de retorno dos bens culturais, reforçando a estrutura neocolonial das disputas.


Conclusão


Para além de todo o discutido, é importante apontar que objetos como os Bronzes de Benin não têm apenas a função de evocar a memória, mas traduzem-se num compilado dos ritos religiosos e políticos daquela sociedade: por meio das esculturas, o Obá se comunicava com os ancestrais e reforçava junto ao povo o caráter divino de sua monarquia.


A preservação desses artefatos importa, portanto, no desenvolvimento da identidade social do povo ex-colonizado, garantindo a continuidade de sua cultura, já tão abalroada em tempos de colonização. É justamente por isso que não há qualquer razão para a manutenção desses objetos junto ao antigo colonizador, que, a bem da verdade, já causou demasiado estrago com a apropriação indevida dos bens.

Espera-se que o aceno alemão de devolução dos Bronzes represente, ainda que minimamente, uma assunção da responsabilidade pelos muitos danos econômicos e culturais infringidos às sociedades colonizadas. O caminho a ser percorrido – cultural e legalmente – é extenso, mas a expectativa é que as tratativas da Alemanha sirvam para que outros países, e especialmente o Reino Unido possam trilhar os mesmos caminhos em relação às peças hoje expostas pelo British Museum, um dos maiores acervos mundiais dos Bronzes de Benin.



*Lucas Nogueira Nunes é doutorando em Direito Internacional Público pela Goethe-Universität Frankfurt am Main, mestre em Direito Internacional Público pela Goethe-Universität Frankfurt am Main, e graduado pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É advogado e tem seu campo de pesquisa voltado para o direito internacional institucional, responsabilidade das organizações internacionais e direitos humanos


Gabriella Dias Silva é mestra em Direito e Políticas Públicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, pós-Graduada em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica - PUC e graduada em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É advogada associada do escritório de advocacia Rücker e Longo Advogados, com sede no Rio de Janeiro e seu campo de pesquisa é voltado para políticas públicas, com enfoque em políticas públicas para melhoria da arrecadação de tributos, recuperação de empresas e igualdade social.


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