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Brasil, EUA, China e a disputa pelo status de "economia de mercado" na OMC

*Por João Sallani.

Foto: AFP/Getty Images


No último dia 21 de julho, Brasil e EUA apresentaram ao Conselho Geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) uma declaração conjunta, por meio da qual procuraram ressaltar a importância da adoção de políticas market-oriented pelos membros da Organização como forma de construção de um ambiente multilateral justo no comércio internacional. Segundo a declaração, seriam as políticas não baseadas em tal ideal as responsáveis pelos atuais danos ao funcionamento do sistema de comércio global e pela criação de condições de competitividade injustas entre os países.


No entendimento apresentado por EUA e Brasil, uma postura market-oriented seria identificável quando decisões relativas a preços, custos, compras e operações fossem livremente determinadas em resposta a indicadores de mercado, e quando investimentos, decisões e alocações de recursos fossem realizados em resposta a tais indicadores a partir de parâmetros contábeis independentes e internacionalmente reconhecíveis.


Embora a declaração não se dirija explicitamente a um alvo específico, seu conteúdo foi amplamente percebido como uma crítica direta à China, sobretudo em um momento de agravamento das disputas políticas entre Washington e Pequim.


A declaração conjunta de EUA e Brasil traz aos holofotes alguns dos mais urgentes e delicados tópicos do direito do comércio internacional contemporâneo, evidenciando uma vez mais as divergências que caracterizam a atual imobilidade da OMC.


União Europeia e países como o Japão e a Austrália apoiaram o conteúdo da declaração, reafirmando a economia de mercado como princípio fundamental da Organização. A Índia afirmou que o tema discutido deveria ser levado por norte-americanos e brasileiros ao Órgão de Solução de Controvérsias da OMC – na prática paralisado desde 2019 por obstrução dos próprios EUA. A China, por sua vez, interessada em neutralizar o conteúdo dos ataques que reacendem o contraste entre seu capitalismo de Estado e o ideal liberalizante da Organização, afirmou não ser a OMC o âmbito propício para tal discussão, considerada pela delegação chinesa “demasiadamente acadêmica”.


A consideração da China como economia de mercado é tema polêmico que há tempos causa controvérsia no âmbito da OMC. Para que se entenda o que está em jogo na disputa e a importância da classificação de um país como uma “economia de mercado” no sistema de comércio global, é preciso lançar breve olhar sobre a história recente da Organização.


A China e a OMC: do ingresso à classificação como “economia de mercado”



Enquanto promotora da liberalização do comércio global, a OMC exige dos Estados interessados em compor seus quadros o compromisso com a adoção de determinadas políticas de abertura e reformas comerciais. Conforme escreve Vera Thorstensen, um dos principais nomes dos estudos do comércio internacional, a China, primeira grande economia híbrida a ingressar na OMC, se comprometeu em 2001 a adotar uma série de reformas liberalizantes para adequação de sua economia às normas da Organização. Passados quase vinte anos, no entanto, as transformações chinesas não foram suficientes para equilibrar suas práticas comerciais às de seus pares na OMC.


Um dos principais pontos de discrepância entre o ideal liberalizante da OMC e a realidade das práticas comerciais internacionais chinesas diz respeito ao fato de que o modelo econômico do país não permite a determinação de preços normalmente praticados em seu mercado interno, uma vez que estes não são guiados pela lógica do funcionamento das economias de mercado verificadas maior parte dos membros da OMC. Tal realidade torna nebulosa, por exemplo, a constatação da prática de dumping pela China.




Dado que a economia chinesa, com seu recorrente recurso a subsídios e controle estatal de empresas, não tem seus preços livremente determinados pelas regras de mercado, não é possível aferir se a China pratica, em sua política de comércio internacional, preços predatoriamente baixos em relação a seus produtos de exportação como forma de empreender sua introdução em mercados estrangeiros – o que, na lógica da OMC, configura prática comercial desleal.


Como solução, a acessão da China à OMC foi condicionada a uma cláusula que a qualificava, por um período de quinze anos, como uma “economia não de mercado” e permitia aos demais integrantes da Organização a imposição de medidas antidumping contra produtos chineses importados em seus mercados por tal período.


A impossibilidade de determinação, por economias de mercado, dos preços praticados no mercado interno chinês aos produtos exportados pelo país asiático torna necessário o recurso a métodos alternativos de aferição de tais valores. Em geral, para a determinação do valor a ser tomado como base para a aferição da prática de dumping por uma “economia não de mercado”, é tomado como parâmetro o preço normal do produto praticado no mercado de um terceiro país, similar àquele no qual não é possível tal determinação.


O dispositivo que instituía a não consideração da China como uma economia de mercado para fins das normas comerciais da OMC, no entanto, chegou a termo em 2016, quando expirado o prazo de quinze anos definido pelo tratado de acessão do país à Organização.


O que se viu ao final de tal período, no entanto, foi não o atendimento ao grau de liberalização esperado para que a economia chinesa apresentasse as características necessárias a sua configuração enquanto “economia de mercado”, mas sim a resiliência e a robustez do modelo de capitalismo estatal chinês, ainda sujeito a intensas críticas por parte dos demais membros da OMC.


Como consequência, atores relevantes do comércio internacional, como EUA e União Europeia, se recusaram a aceitar a atribuição automática do status de “economia de mercado” à China a partir da expiração da cláusula prevista na acessão do país à OMC, de forma a continuarem a aplicar às exportações do país asiático medidas de proteção comercial aplicáveis às “economias não de mercado”.


Foto: Reuters


Tal decisão levou a China a iniciar, em 2016 e 2017, processos contra EUA e UE no âmbito do sistema de solução de controvérsias da OMC, de forma a questionar suas metodologias de definição e comparação de preços para as importações dos produtos chineses, sobretudo em relação à imposição de medidas antidumping. Na ótica chinesa, a expiração do prazo de quinze anos previsto no artigo 15, (a), iii, de seu tratado de acessão à OMC, implicaria a consideração automática da China como uma economia de mercado no âmbito das normas da Organização.


O entendimento do painel estabelecido para apreciação do caso levado contra a União Europeia no âmbito do sistema de solução de controvérsias da OMC, no entanto, passou longe de ser benéfico à China. Em abril de 2019, foi amplamente noticiada a informação de que o painel composto para análise do caso teria apresentado às partes entendimento favorável a permitir aos Estados-membros da Organização a discricionariedade para a aplicação caso a caso de medidas antidumping contra produtos chineses cujos preços sugerissem prática comercial desleal.


Em junho de 2019, a China requereu a suspensão do painel por um período de 12 meses, tendo o processo sido oficialmente encerrado em 15 de junho de 2020, quando transcorrido o prazo para que a China solicitasse a retomada de sua análise pelo painel estabelecido para resolução da disputa.


Tais processos, consequentemente, jamais tiveram seu mérito oficialmente julgado pelo mecanismo de solução de controvérsias da OMC, uma vez que o conteúdo do entendimento do painel não chegou a ser tornado público. A aposta chinesa, na prática, demonstrou-se desastrosa. A opção da China pela suspensão e posterior expiração do prazo para retomada do processo visou evitar a publicação e oficialização do entendimento da Organização quanto à possibilidade de não consideração automática do país como economia de mercado para fins das normas do comércio internacional.


Mas, afinal, o que constitui uma “economia de mercado”?


Apesar de sua relevância prática, o conceito de “economia de mercado” é um tanto nebuloso, não tendo a OMC ou qualquer outra organização internacional jamais consolidado um entendimento específico e amplamente aceito para o termo. Como escreve Vera Thorstensen, a compreensão do conceito de “economia de mercado” exige a consideração de uma série de contribuições e declarações pontuais que, unidas, formam uma estrutura de requisitos para a consideração de um Estado como tal.


Uma das maiores aproximações práticas para tal conceituação pode ser encontrada no glossário da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), que sugere como economias de mercado aquelas cujo funcionamento seja baseado nas forças de mercado para definição de níveis de produção, consumo, investimento e poupança, sem relevante intervenção governamental.


Na prática do comércio internacional, no entanto, entende-se caber a cada Estado, individualmente, a identificação dos fatores capazes de atribuir a uma economia tal status, para fins de aplicação de medidas de proteção comercial.


Foto: Reuters


A União Europeia, por exemplo, estabelece cinco parâmetros a serem verificados para a concessão do status de “economia de mercado” a outros países: i) decisões quanto a preços, custos e investimentos são realizadas em resposta a indicadores de mercado, sem significativa interferência estatal; ii) empresas seguem padrões contábeis independentes e internacionalmente verificáveis; iii) a produção e a situação financeira das empresas não são submetidas a distorções estatais; iv) empresas se submetem a normas que garantam segurança jurídica e estabilidade a suas operações; v) taxas de câmbio e conversões são realizadas de acordo com parâmetros de mercado.


Já o Brasil, por sua vez, institui alguns critérios a serem observados para a identificação e caracterização de países enquanto “economias de mercado”: i) o grau de controle governamental sobre empresas e meios de produção; ii) o nível de controle estatal sobre alocação de recursos, preços e decisões de produção das empresas; iii) a legislação aplicável em matéria de propriedade, investimento, tributação e falência; iv) o grau de liberdade de negociação de salários entre empregadores e empregados; v) o grau de persistência de distorções econômicas herdadas de sistemas de economias centralizadas, se o caso; e vi) o nível de interferência estatal sobre operações de câmbio.


O fato de a determinação dos requisitos para o reconhecimento da condição de um país enquanto “economia de mercado” permanecer sob margem de discricionariedade interna implica, portanto, alguma característica intrinsecamente política em seu conteúdo. Como boa parte do direito internacional, as normas comerciais também têm sua objetividade e aplicabilidade sujeitas a condições políticas e realidades de disputas por poder.


A indeterminação do direito internacional como opção dos Estados


Embora o processo de normativização internacional busque atribuir ao comércio global algum grau de previsibilidade e isonomia, a ausência de uma definição específica para o termo “economia de mercado”, tal qual em relação a outros dispositivos fundamentais do direito internacional, demonstra certa indisposição dos Estados e sua vontade de garantir a manutenção de algum grau de discricionariedade política sobre o Direito.


No recente caso da OMC, o próprio embaixador chinês na Organização, Zhang Xiangchen, em resposta à declaração conjunta de EUA e Brasil, afirmou que a discussão levantada quanto à definição do termo “economia de mercado” seria demasiadamente acadêmica e não encontraria no âmbito da OMC o ambiente propício a seu desenvolvimento.


No estado no qual se encontra a Organização, negligenciada em meio à guerra comercial entre China e Estados Unidos, imobilizada em relação ao funcionamento de seu sistema de solução de controvérsias, e incerta quanto a sua relevância, nenhuma perspectiva de desenvolvimento do comércio internacional por vias propriamente jurídicas parece se apresentar num futuro próximo à OMC.




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Bibliografia sugerida para introdução ao tema:

BERNAUER, Thomas; ELSIG, Manfred; PAUWELYN, Joost. Dispute Settlement Mechanism – Analysis and Problems. In The Oxford Handbook of the World Trade Organization. Oxford: Oxford University Press, 2012.

BOSSCHE, Peter Van Den; PRÉVOST, Denise. Essentials of WTO Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2016.

BOSSCHE, Peter Van Den; ZDOUC, Werner. The Law and Policy of the World Trade Organization. Texts, Cases and Materials. Cambridge: Cambridge University Press, 4ª edição, 2018.

THORSTENSEN, Vera; RAMOS, Daniel; MÜLLER, Carolina. O reconhecimento da China como economia de mercado: o dilema de 2016. Revista Brasileira de Comércio Exterior, n. 112, jul/set 2012.

THORSTENSEN, Vera; RAMOS, Daniel; MÜLLER, Carolina. WTO – Market and Non-Market Economies: the hybrid case of China. Latin American Journal of International Trade Law, v. 1, issue 2, 2013, pp. 765 – 798.




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