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Caso Digna Ochoa: Defensoras de DH e o Risco Anunciado das Sobreposições de Vulnerabilidades


Por Ana Júlia Amaro Miyashiro, Bianca Ketlyn Anderle Correia e Susan Reiko Sakano*


Foto: Protesto pedindo esclarecimentos sobre a morte de Digna Ochoa em San Salvador Atenco. / JUAN PABLO ZAMORA (CUARTOSCURO)


Em 25 de novembro de 2021, dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) publicou a sentença do Caso Digna Ochoa y familiares Vs. México, em que condenou o Estado do México pela violação do direito à investigação da morte da defensora de direitos humanos Digna Ochoa y Plácido, ocorrida no dia 19 de outubro de 2001. O caso foi submetido à Corte pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em 02 de outubro de 2019.


Na ocasião da audiência pública, o Estado reconheceu parcialmente sua responsabilidade internacional, ao afirmar que violou os artigos 8 (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial) da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) em relação ao artigo 1.1 (obrigação de respeitar os direitos) do mesmo instrumento, bem como o art. 7 da Convenção de Belém do Pará, dado que não realizou uma investigação com perspectiva de gênero em prejuízo da senhora Digna Ochoa. Reconheceu, ainda, a inobservância do art. 11 (Proteção da honra e da dignidade) em relação com o art. 1.1 (obrigação de respeitar os direitos), pela imagem negativa que reproduziu no tocante à pessoa da vítima após a sua morte. Também reconheceu ter violado o art. 5 (direito à integridade pessoal) da CADH em detrimento dos familiares da vítima, em razão da violação do direito à verdade e à justiça.


Em decorrência, a Corte IDH avaliou de forma positiva a vontade do Estado em declarar seu reconhecimento parcial de responsabilidade internacional e em adição, constatou que o assassinato da vítima se deu em um contexto de ameaça e ataques contra pessoas defensoras de direitos humanos no México. A Corte observou que entre 2010 e 2017, mais de 43 mulheres defensoras e jornalistas foram mortas no Estado, sendo que a maior parte das mulheres defensoras de direitos humanos enfrenta riscos relacionados ao gênero, como violência sexual e ameaças nas redes sociais ou campanhas de difamação baseadas em estereótipos de gênero.


O caso


Durante o ano de 1999, a Sra. Digna Ochoa e outros integrantes do Centro ProDH foram vítimas de diversos atos de intimidação, ameaça e sequestro. Consequentemente, em 9 de setembro de 1999, a Comissão Interamericana concedeu medidas cautelares e solicitou ao Estado que adotasse medidas concretas, para proteger a vida e a integridade física da vítima e demais integrantes do centro.


Em 11 de novembro de 1999, a Comissão solicitou medidas provisórias perante a Corte, que foram outorgadas poucos dias depois, por considerar que “a segurança dos membros do Centro ProDH” estava “em sério risco”. Tais medidas foram levantadas um ano e meio mais tarde, acolhendo-se o pedido do Estado, com a concordância dos beneficiários e da Comissão IDH, que se posicionaram pela inexistência de grave risco. A concessão das medidas provisórias, porém, não impediu que, em 19 de outubro de 2001, a advogada Digna Ochoa fosse encontrada morta em seu próprio local de trabalho.


O Estado mexicano, ao investigar o caso, levantou três linhas principais de investigação: i) possível autoria militar; ii) linha "Guerrero"; e iii) linha sobre a família, social e trabalhista. No entanto, nenhuma destas foi empreendida de forma diligente. Destaca-se que em três ocasiões os agentes encarregados pela investigação decidiram não impetrar ação penal e descartaram a hipótese de homicídio, alegando que tratava-se de “suicídio disfarçado”, apesar de todas as evidências e ameaças sofridas pela advogada.


O julgamento


Durante o julgamento, a Corte IDH concluiu que o Estado do México é responsável pela violação aos artigos 8 (garantias judiciais), 11 (Proteção da honra e da dignidade) e 25 (proteção judicial), em relação ao 1.1 (obrigação de respeitar os direitos) da CADH e ao artigo 7.b da Convenção de Belém do Pará, em desfavor dos familiares da vítima. Bem como violou a Convenção Americana no que diz respeito aos artigos 4.1 (direito à vida) em relação aos artigos 1.1 (obrigação de respeitar os direitos), 8 (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial), bem como violou o artigo 11 (Proteção da honra e da dignidade), em relação ao artigo 1.1 (obrigação de respeitar os direitos) da CADH, em prejuízo da senhora Digna Ochoa.


Foto: Protesto em decorrência da morte de Digna Ochoa. / Christian Palma/Cuartoscuro


O tribunal ressaltou que pela vítima se tratar de mulher advogada, houve especial violência no estereótipo de gênero e estigmatização da senhora Digna Ochoa, destacando que as mulheres defensoras de direitos humanos sofrem “obstáculos adicionais” por serem mulheres. Como no caso, mulheres defensoras são vítimas de estigmatização, estão expostas a comentários sexistas ou misóginos e sujeitas a não serem ouvidas com seriedade.


No presente caso, as investigações foram dotadas de estereótipos de gênero. Perícias retrataram a senhora Ochoa como uma “pessoa exigente, religiosa e com forte sentimento de ira”, referenciando a relacionamentos pessoais, para caracterizá-la como “desprotegida” e “vulnerável”. A Corte destacou a existência de conclusões estereotipadas baseadas no fato da vítima ser mulher. A descredibilização da vítima foi construída ao longo da investigação, utilizando-se de estereótipos e usando de aspectos pessoais da defensora para questionar sua credibilidade, projetando-a como uma pessoa exagerada, desestabilizada, com a intenção de justificar os crimes cometidos contra ela e encobrir os responsáveis.


Além disso, concluiu-se que a morte de Digna Ochoa se deu em contexto de extrema violência a pessoas defensoras de direitos humanos. Assim, observa-se que mulheres defensoras estão submetidas à violência mesmo após suas mortes, constatada pela Corte a presença de estereótipos de gênero negativos durante a investigação do assassinato da advogada.


A Corte define tais estereótipos como uma pré-concepção de atributos, condutas ou características definidas, ou papéis que são ou deveriam ser executados por homens e mulheres, com a subordinação das mulheres a práticas de estereótipos de gênero socialmente dominantes. Quando os operadores jurídicos aplicam estereótipos, impede-se o desenvolvimento das investigações, e nega-se o direito de acesso à justiça de mulheres. Ainda, quando o Estado se omite frente a essas injustiças, ele o reforça e institucionaliza, gerando e reproduzindo violência contra a mulher. Logo, os Estados possuem a obrigação de adotar umas perspectiva que inclua a discriminação e estereótipos de gênero que vem historicamente acentuando a violência contra mulheres.


Relevância do caso


A sentença da Corte IDH é um importante precedente internacional, reafirmando a obrigação dos Estados de proteger pessoas defensoras de direitos humanos, especialmente mulheres defensoras de direitos humanos, reconhecendo a sobreposição de vulnerabilidades e a existência de aplicação de estereótipos. Ainda, trata da impunidade e do acesso à justiça nos casos de violência a tais atores, afirmando o dever estatal de investigar os atos de violência relacionados ao desempenho de atividade de defensores e defensoras de direitos humanos.


Nesse contexto, percebe-se que a situação dos defensores de direitos humanos tem recebido especial atenção do sistema Interamericano nos últimos anos. À exemplo disso, somente no ano de 2021, foram produzidos dois relatórios temáticos pela Comissão sobre a condição de defensor de direitos humanos no entrecho interamericano.

O relatório temático “Directrices básicas para la investigación de delitos contra personas defensoras de derechos humanos en el Triángulo Norte reconheceu o papel fundamental exercido por pessoas defensoras de direitos humanos, que, mesmo diante de atos de violência, criminalização e estigmatização, continuam a desempenhar atividades de vigilância, denúncia, difusão e educação na região do Triângulo Norte da América Central. No mesmo ano, publicou-se o “Guía práctica sobre lineamientos e recomendaciones para la elaboración de planes de mitigación de riesgos de personas defensoras de derechos humanos, cuja estrutura se baseia nas principais obrigações dos Estados para garantir o direito de defender direitos humanos.


Evidentemente, essa especial atenção demonstrada pela CIDH não decorre de mera casualidade. Conforme apontado pela Relatora Especial da ONU sobre Defensores de Direitos Humanos, entre 2015 e 2019, 1.323 defensores de direitos humanos foram assassinados em todo o mundo. Mais de 70% destes casos se concentraram na América Latina e no Caribe, e em 166 deles as vítimas foram mulheres.


A situação dos defensores de direitos humanos no contexto brasileiro também tem sido acompanhada atentamente pela CIDH que, em fevereiro de 2021, divulgou o relatório “Situação dos direitos humanos no Brasil”, no qual comparou os atuais casos de impunidade de violência institucional dirigidos a pessoas defensoras de direitos humanos, aos crimes ocorridos no período da ditadura cívico-militar. Ainda, diagnosticou um agravamento das ameaças e crimes de ódio cometidos após as eleições nacionais de 2018.


Ressalta-se que a discussão sobre os riscos aos quais as defensoras de direitos humanos são submetidas na conjuntura brasileira adquiriu destaque na mídia com a morte da vereadora Marielle Franco - reconhecida por sua atuação como defensora de direitos humanos e pautas ligadas ao feminismo, às populações negras e LGBTI - no ano de 2018. Neste ponto, cumpre registrar que, em oposição às diretrizes da Corte IDH de devida diligência e investigação aos atos de violência contra defensoras de direitos humanos, o Caso Marielle completou quatro anos sem que fossem conhecidos os autores do crime ou suas motivações.


No caso da Senhora Digna Ochoa, esses riscos mostram-se especialmente contundentes, pois, ao longo de sua vida, ela fora ameaçada por diversas vezes, tendo sido inclusive sequestrada em sua própria casa. O fato de que seu assassinato tenha ocorrido pouquíssimo tempo após o levantamento das medidas provisórias concedidas pela Corte IDH aponta para a gravidade do risco sofrido por defensores de direitos humanos.


A partir dessas considerações, nota-se que o Caso Digna Ochoa y Familiares vs. México é emblemático não só pelas diversas circunstâncias em relação ao assassinato da vítima, mas também pelo fato de que esta se encontrava em situação de risco anunciado, que foi agravado em razão do seu gênero. Nesse sentido, a decisão, além de firmar parâmetros internacionais na proteção de mulheres defensoras de direitos humanos, estabelece a necessária observância a suas respectivas sobreposições de vulnerabilidades.





*Ana Júlia Amaro Miyashiro é graduanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Integrante do NESIDH desde 2020; Bianca Ketlyn Anderle Correia é Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Integrante do NESIDH desde 2019; Susan Reiko Sakano é Advogada. Mestre em Estudos Internacionais da Paz pela Universidade Soka, Japão. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná, Brasil. Integrante do NESIDH desde 2016.

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