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Novas representações no TPI por crimes contra a humanidade podem condenar Bolsonaro?

*Por Fabrizio Jacobucci

Foto: ANSA/Ansa Brasil


Em novembro de 2019, representantes do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) e da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos “Dom Paulo Evaristo Arns” denunciaram o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, no Tribunal Penal Internacional por supostos crimes contra a humanidade e de genocídio. Na peça, os solicitantes fundamentaram que o mandatário brasileiro teria cometido tais delitos contra a Amazônia e a população indígena.


O Cosmopolita publicou um artigo especificamente sobre este processo, com reflexões e perspectivas acerca de uma eventual condenação de Bolsonaro. Neste artigo, atualizaremos nosso leitor quanto ao status da denúncia, trazendo comentários sobre duas novas denúncias feitas pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) em abril e pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) em junho.


Nunca antes um presidente do Brasil fora tantas vezes denunciado ante uma corte internacional por crimes cometidos no exercício do mandato. Desta vez, um mesmo motivo fundamentou os pedidos de ambos a ABJD e do PDT: o comportamento do presidente frente à crise da COVID-19. Seria esta a propulsora da condenação de Bolsonaro do Tribunal Penal Internacional?


As medidas do Governo Federal e os crimes contra a humanidade


No dia 02 de abril de 2020, a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) apresentou ao Tribunal Penal Internacional pedido de abertura de processo criminal contra o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, solicitação endereçada à Procuradoria do Tribunal, em respeito ao artigo 53 do Estatuto de Roma – ato que seria seguido pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), em 01 de junho de 2020.


Ocorre que, diferentemente de processos em cortes nacionais ou perante o sistema interamericano de direitos humanos, o peticionário não pode acionar o Tribunal Penal Internacional diretamente. Ou seja, tanto a denúncia da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia quanto a do Partido Democrático Trabalhista serão primeiramente analisadas pelo Gabinete da Promotoria. Posteriormente, caso a Promotoria entenda que os requisitos formais e materiais sejam preenchidos, o órgão dará início ao processamento do caso.


Fonte: Estatuto de Roma, 2002.


Segundo os autores dos pedidos, Bolsonaro teria cometido crime contra a humanidade, nos moldes previstos pelo artigo 7º, alínea “k” do Estatuto de Roma. Para a caracterização do crime, o artigo 7 do Estatuto exige a presença de elementos contextuais, seguidos de actus réus – elemento objetivo – e mens rea – elemento subjetivo – específicos da conduta.


Por elementos contextuais dos crimes contra a humanidade entendem-se as práticas de quaisquer dos atos enumerados nas disposições do artigo 7º do Estatuto, quando parte de um ataque sistemático ou generalizado contra qualquer população civil. No entendimento do TPI, o termo “ataque”, quando relativo a crimes contra a humanidade, diz respeito a curso de conduta que abrange vários atos comissivos, de forma generalizada ou sistemática.

Embora tais noções sejam frequentemente associadas, suas aplicações são verificadas de forma disjuntiva. A conduta sistemática resulta de uma política ou plano que guia o autor contra o objetivo: isto é, é definida pela natureza organizada dos atos de violência e pela improbabilidade de sua ocorrência aleatória. Em contrapartida, o termo “generalizado” refere-se à escala e magnitude do ataque, bem como ao número de vítimas. Segundo a jurisprudência do TPI, a expressão “generalizada” não pode ser interpretada com um significado apenas quantitativo ou geográfico. Devem, na realidade, ser considerados os fatos individuais, em uma análise caso a caso.


Ao contrário do artigo 8, sobre crimes de guerra, o tipo penal do artigo 7, relativo a crimes contra a humanidade, não exige que a ocorrência de um ataque militar. Não obstante, é necessário que haja uma campanha ou operação em curso contra a população civil. Ademais, as noções de “campanha ou operação” implicam que um limiar quantitativo deva ser atingido: ações isoladas ou aleatórias não atendem aos critérios necessários e, portanto, não são classificadas como crimes contra a humanidade.


Foto: Gabriela Biló/Estadão Conteúdo


Dessa forma, o sucesso da denúncia dependeria da prova de que as ações de Bolsonaro enquanto presidente configuram um “ataque” contra a população civil brasileira. Embora a jurisprudência do Tribunal não conte com casos nos quais o ataque ocorreu por meio de um vírus, bactéria ou agente biológico, a questão permanece aberta.


O actus reus, ou elemento material, imputado pelos denunciantes ao presidente Bolsonaro é o previsto pelo Artigo 7, alínea “k”, do Estatuto de Roma, referente a “Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental”.


Os denunciantes sustentam que o elemento material do crime estaria no desrespeito aos comandos e recomendações das autoridades de saúde nacionais e internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS). Também configuraria crime contra a humanidade o não cumprimento de tratados internacionais (ratificados pelo Brasil) que versam sobre direitos humanos e direito à saúde – em especial, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica e o Protocolo de São Salvador. Ressaltam, nesse sentido, a resolução 01/2020 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que recomenda que os países tomem todas as medidas necessárias para proteger a vida dos indivíduos em seus limites jurisdicionais.


Embora elencados dispositivos internos e resoluções do governo federal decretando alerta frente à pandemia, os autores de ambos pedidos reforçam o argumento de que o presidente da República agiu de forma diametralmente oposta às recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e à ciência.


Contudo, para que o Presidente seja condenado pelo TPI, faz-se necessário ainda provar a presença do elemento subjetivo necessário ao crime previsto pelo Estatuto de Roma, ou seja, que o Presidente teve a intenção de cometer o ataque contra a população civil.


Diferentemente da denúncia submetida ao Tribunal Penal Internacional em novembro de 2019, os pedidos apresentados em meio à pandemia da Covid-19 contam com o decurso de infrutífero processo judicial em âmbito interno no Brasil. Em 25 de março de 2020, partidos com representação na Câmara (incluindo o PDT) apresentaram ao Supremo Tribunal Federal denúncia criminal contra o presidente da República pela prática de crimes contra a saúde pública. Esta e tantas outras denúncias apresentadas em diferentes esferas judiciais brasileiras, no entanto, foram arquivadas a pedido do Procurador-Geral da República.


De acordo com as partes, a complementariedade do TPI neste caso seria acrescida à inoperância e negligência do sistema jurídico interno brasileiro, que se provou ineficiente para investigar e punir o chefe de Estado pelos crimes supostamente cometidos. Em outras palavras, a ausência de condições para a conclusão de investigação a nível interno é o que ensejaria a necessidade de apreciação do caso pelo Tribunal Penal Internacional.

Os autores também fundamentam a avaliação de gravidade (requisito previsto pelo artigo 17, 1, “d” do Estatuto de Roma) do pedido na ampla repercussão nacional e internacional da condução realizada pelo presidente do Brasil no combate à pandemia do COVID-19 e na necessidade de efetiva e rápida ação, haja vista Bolsonaro espalhar notícias gravosas e falsas sobre a situação.


Na prática, as denúncias apresentadas ao TPI têm chance de sucesso?


A despeito do objeto e das razões materiais dos pedidos apresentados ao TPI, algumas idiossincrasias formais são rapidamente notadas nos pedidos apresentados pela ABJD e pelo PDT. Ambas as denúncias são apresentadas com fundamento em legislação interna brasileira, sendo apontados dispositivos do Código Civil e da Constituição Federal para fundamentação do pleito. Ao Tribunal Penal Internacional, no entanto, cabe somente a análise de argumentos, provas e fatos a partir dos ditames do Estatuto de Roma, que delimita e conceitua o funcionamento da corte, bem como seus elementos e objetos. Isto é, por mais relevantes que sejam os dispositivos internos apontados nas denúncias, ao TPI, enquanto instituição adjudicatória internacional, fundada e estritamente guiada por normas de direito internacional, são pouco relevantes as normas internas da legislação brasileira para sua tomada de decisão. Qualquer pedido só encontrará viabilidade quando baseado em preceitos internacionais e guiado pela forma prevista pelo Estatuto de Roma.


Nossa crítica às peças apresentadas, portanto, vem no sentido da demasiada simetria com uma ação judicial de âmbito interno, mantendo a mesma estrutura e negligenciando jurisprudências internacionais do próprio TPI. Ao reportar-se a um tribunal internacional, um agente verdadeiramente interessado e disposto a provar a procedência de seu pleito deve se guiar pelo direito internacional, e não pelo direito interno. Conforme previamente abordado no Cosmopolita, três competências são analisadas no pedido de julgamento pela Corte: temporal – isto é, se os crimes denunciados foram cometidos depois de 25 de setembro de 2002, data de entrada em vigor do Tribunal Penal Internacional; territorial e/ou pessoal, em razão da ratificação do Estatuto de Roma pelo Brasil e sua vigência no ordenamento jurídico nacional e dos crimes terem sido cometidos em território brasileiro; e material, por serem crimes cometidos objeto de jurisdição do Tribunal.


As três competências podem ser identificadas nos fundamentos das denúncias apresentadas pela ABJD e pelo PDT: os crimes atribuídos ao presidente Bolsonaro teriam sido cometidos em 2020, o Brasil é parte do Estatuto de Roma e os crimes contra a humanidade são objeto de jurisdição do Tribunal.


Contudo, da mesma forma que a denúncia oferecida pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) e pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos “Dom Paulo Evaristo Arns” em novembro de 2019, a cautela jurisprudencial do TPI sugere ainda tímida chance de procedência das denúncias apresentadas. Não basta que seja demonstrada a responsabilidade de um agente político por atos nocivos a seu povo; para o TPI, é necessário que os atos narrados sejam enquadráveis nos tipos penais previstos pelo Estatuto de Roma e tenham sido performados nas formas do entendimento consolidado no Tribunal.


Ao analisar o caso, o Tribunal irá se basear em fatores como o nexo causal entre as políticas públicas diretamente tomadas pelo presidente da República e o aumento no número de mortos pelo vírus, de forma a verificar se tais políticas configuram um ataque contra a população civil empreendido pelo Presidente. Em outras palavras, para que Jair Bolsonaro possa ser condenado por crimes contra a humanidade, será necessário que o Tribunal identifique evidências concretas de que o presidente realizou um ataque contra a população civil, materializado por meio de atos intencionais que causaram grande sofrimento ou sérios danos físicos e mentais para a saúde das pessoas.


Foto: Reuters/International Criminal Court


Até 22 de junho de 2020, mais de 500 mil pessoas perderam suas vidas em decorrência do vírus. Somente no Brasil, mais de 54 mil vidas foram ceifadas pela pandemia em pouco mais de três meses – número superior ao total de brasileiros mortos durante os seis anos da Guerra do Paraguai. Nessa lamentável corrida, o Brasil amarga o segundo lugar em número de mortes, perdendo apenas para os Estados Unidos.


É inegável que as inadequadas decisões tomadas pelo Governo Federal no combate à pandemia, seja por sua flagrante omissão ou por suas desastrosas ações contrárias às determinações científicas, são em grande parte responsáveis pela aceleração da propagação do vírus no país e não contribuem para a contenção do número de casos.


Pode-se prever que o elemento material de análise do TPI, no entanto, repousará preponderantemente em um fator: o nexo causal entre as políticas públicas diretamente tomadas pelo presidente da República e o aumento no número de mortos pelo vírus. Em outras palavras, para que Jair Bolsonaro possa ser condenado por ter cometido crimes contra a humanidade, será necessário que o Tribunal detenha evidências concretas do cometimento, por parte do presidente, de atos intencionais responsáveis por grande sofrimento ou sérios danos físicos e mentais para a saúde dos brasileiros.


A prerrogativa de denunciar o presidente Bolsonaro ao TPI é absolutamente legítima. O sucesso do pleito, por outro lado, depende em grande parte da qualificação e da adequação da denúncia às normas de direito internacional aplicáveis ao caso e aos requisitos formais exigidos pelo Estatuto de Roma. De toda forma, a novidade do tema torna a decisão do Gabinete da Promotoria quanto ao processamento ou não da denúncia pouco previsível. Seu resultado, no entanto, há de repercutir significativamente na política brasileira. Aguardemos.

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