Por Mateus Henriques Thomas*
Foto: EPA/Miguel Gutierrez/Agência Lusa
No último dia 26 de março, o Presidente venezuelano Nicolás Maduro foi indiciado pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos da América pelos supostos crimes de “conspiração para o cometimento de narco-terrorismo”, “conspiração para a importação de cocaína”, “posse de metralhadoras e outros equipamentos destrutivos” e “conspiração para possuir metralhadoras e outros equipamentos destrutivos” perante o United States District Court for the Southern District of New York. Além de Maduro, outros oficiais venezuelanos de vários níveis hierárquicos também se tornaram réus. Conforme a acusação, desde 1999, os acusados pertenceriam a uma organização chamada “Cartel de los Soles” que, emcooperação com as FARC - designada pelo Departamento de Estado americano como Organização Terrorista Estrangeira -, teria exportado grandes quantidades de cocaína para os Estados Unidos. Foram oferecidas recompensas milionárias para informações que levem às suas capturas e condenações.
Tal indiciamento é mais um elemento na altamente conturbada relação entre Estados Unidos e Venezuela. A tensão entre os dois Estados data desde pelo menos o governo Hugo Chavez, que antagonizou Washington em sua retórica e em sua política externa. Inclusive, na acusação, seu nome é posto como uma das lideranças do Cartel durante o período em que Maduro foi parlamentar, ministro das relações exteriores e vice-presidente da Venezuela.
Desde as eleições presidenciais de 2018, a presidência de Nicolás Maduro tem sido contestada. A Assembleia Nacional, controlada pela oposição, não reconheceu a sua vitória sob a alegação de fraude. Maduro tomou posse perante a Suprema Corte e, em resposta, Juan Guaidó, Presidente da Assembleia Nacional, foi declarado por esta Presidente interino do país. Guaidó foi reconhecido como Chefe de Estado pelos Estados Unidos, além de uma série de outros Estados, como o Brasil, e organizações internacionais, como a Organização dos Estados Americanos. Por sua vez, Maduro é apoiado por Estados como Rússia e Cuba.
O indiciamento norte-americano de Nicolás Maduro encontra, no entanto, um sério empecilho no Direito Internacional: suas prerrogativas como chefe de Estado.
As imunidades e prerrogativas de um chefe de Estado Um Estado pode processar criminalmente um Chefe de Estado ou de Governo estrangeiro? Não apenas leigos, mas também juristas podem ter dificuldades em responder a esta curta pergunta. Resumidamente, a resposta é negativa.
A imunidade de jurisdição conferida a um Chefe de Estado ou de Governo estrangeiro é baseada em um princípio de direito internacional historicamente reconhecido. James Crawford, professor da Universidade de Cambridge e ex-juiz da Corte Internacional de Justiça, define jurisdição como a “competência de um Estado, sob o direito internacional, de regular a conduta de pessoas naturais e jurídicas.” A imunidade de jurisdição nada mais é do que uma exceção a esta competência, o que impede os Estados de aplicarem seus poderes.
Costuma-se dizer que tal imunidade se origina na ideia de que iguais não poderiam exercer jurisdição um sobre o outro. Apesar de a natureza da chefia de Estado ou de Governo ter mudado durante os últimos séculos, a prática permaneceu. Durante seus mandatos, tais indivíduos gozam de imunidade para atos oficiais e extraoficiais. Ao término do mandato a imunidade se mantém para aqueles atos oficiais. Em outras palavras, um Estado não pode processar criminalmente um Chefe de Estado estrangeiro em exercício nem um ex-Chefe por atos cometidos em caráter oficial.
Foto: Reuters/E. Plevier
Atualmente, é unânime na literatura jurídica e na prática internacional que a imunidade pertence ao Estado, e não à pessoa física, podendo o Estado retirá-la do indivíduo ao qual fora investida a qualquer momento. O mesmo ocorre com diplomatas, cônsules e outros agentes estrangeiros. Este e outros aspectos das relações diplomáticas e das relações consulares são regulados pelas Convenções de Viena de 1961 e 1963. Por outro lado, a imunidade de chefes de Estado é regulada apenas pelo costume internacional - fonte de direito internacional tão válida quanto tratados, nos termos do artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça.
O que justifica tais prerrogativas? Por que presidentes ou monarcas não se submetem à jurisdição de outro Estado quando acusados de um crime? Udoka Nwosu, da London School of Economics, aponta principalmente a soberania e igualdade soberana dos Estados, além de, subsidiariamente, reciprocidade, cordialidade, dignidade das nações e funcionalidade. Trata-se de uma garantia jurídica que viabiliza eventos como o encontro entre Donald Trump e Kim Jong-Un em Cingapura, ou mesmo o ingresso do presidente estadunidense em território norte-coreano em 2019.
Tal princípio é reconhecido pela Corte Internacional de Justiça nos casos Arrest Warrant of 11 April 2000 (Democratic Republic of the Congo v. Belgium), julgado em 14 de fevereiro de 2002, e Certain Questions of Mutual Assistance in Criminal Matters (Djibouti v. France), julgado em 04 de junho de 2008.
Todavia, há uma importante exceção: a jurisdição dos tribunais penais internacionais e mistos. Isto está disposto nos estatutos dos tribunais penais ad hoc para a ex-Iugoslávia e para Ruanda, do Tribunal Especial para a Serra Leoa, das Câmaras Especiais para os Tribunais do Camboja, e no Estatuto de Roma, que rege o Tribunal Penal Internacional (TPI).
A Câmara de Apelação do Tribunal Especial para Serra Leoa rejeitou alegações de imunidade de jurisdição feitas pelo ex-ditador da Libéria, Charles Taylor, posteriormente condenado a 50 anos de prisão. Mais recentemente, a Câmara de Apelação do TPI adotou importante decisão reconhecendo que a Jordânia tinha a obrigação de deter e entregar Omar al-Bashir, à época Chefe de Estado do Sudão, à sua custódia, afirmando que o direito internacional nunca reconheceu tal tipo de imunidade à jurisdição de tribunais internacionais.
Do (não) reconhecimento internacional do governo de Nicolás Maduro
No caso de Nicolás Maduro, existe mais um elemento de complexidade: sua presidência não é reconhecida pelos Estados Unidos como legítima. Mesmo assim, a própria denúncia afirma que ele é o líder de facto da Venezuela, apenas não de jure. O que exatamente significam estas expressões?
Basicamente, reconhecimento é a aceitação de uma situação fática e de suas consequências jurídicas, levando em conta considerações políticas. Reconhecer um governo de facto implica aceitar uma situação concreta, ou seja, um governo efetivo, mas com ressalvas acerca de sua legalidade, permanência, viabilidade, etc. Por outro lado, o reconhecimento de jure significa verificar permanência e validade jurídica de um governo.
Foto: Diana Sanchez/AFP
O não reconhecimento de um governo traz consequências concretas. Hersch Lauterpacht aponta que o não reconhecimento afasta algumas prerrogativas da personalidade internacional, como imunidade de jurisdição. Dizer que se trata de uma decisão meramente política submeteria um importante componente das relações internacionais à arbitrariedade.[i] Assim, deve-se respeitar o princípio da efetividade, ou seja, reconhecer o governo que detém a obediência da maioria da população.
Geralmente, o tema do reconhecimento é tratado pela ótica de um governo revolucionário que assume o poder concreto sem respaldo jurídico. A situação venezuelana é distinta: trata-se de um governo que supostamente teria perdido a legitimidade. Contudo, sem fazer qualquer tipo de juízo de valor ou de defesa de algum dos lados, Juan Guaidó não aparenta ter poder concreto suficiente para por em dúvida a presidência de Nicolás Maduro, ainda que a legitimidade democrática do ultimo seja questionada.
Maduro exerce funções de presidente e tem poder suficiente para tanto. Suas ações obrigam a Venezuela internacionalmente, e ele deve ter todas as prerrogativas de Chefe de um Estado soberano, dentre as quais a imunidade à jurisdição estrangeira. Negar este fato viola princípios básicos de direito internacional - o respeito à soberania e a proibição de intervenção estrangeira.
O caso Maduro e o caso Noriega Não há como falar sobre o indiciamento de Nicolás Maduro sem mencionar o caso de Manuel Noriega. Noriega foi o líder de facto do Panamá entre 1983 e 1989, sendo deposto por intervenção norteamericana e levado aos Estados Unidos para julgamento. Lá, foi condenado por uma série de crimes relacionados ao tráfico de drogas no caso United States v. Noriega. Após cumprir parte da sentença, foi extraditado à França e posteriormente ao Panamá, onde faleceu em 2017.
Seria, então, a mesma situação de Maduro? A resposta não é tão simples. Apesar de Noriega ter alegado ser o governante de facto do Panamá durante o julgamento, jamais se colocou como tal durante o período em que administrou o país. Nunca foi Chefe de Estado ou de Governo do Panamá, diferentemente de Nicolás Maduro, que, ainda que contestado, se propõe a ser o Presidente da Venezuela.
O United States District Court for the Southern District of Florida afastou estas alegações sob a justificativa de que Noriega nunca fora reconhecido como Chefe de Estado pelos EUA ou sequer pelo Panamá. A decisão afirma que imunidades são uma cortesia aos Estados com os quais os EUA mantêm relações diplomáticas.
Internacionalmente, reconhecimento e estabelecimento de relações diplomáticas são atos distintos,e tampouco a concessão de imunidade de jurisdição é um ato de mera cordialidade, como se vê na jurisprudência da Corte Internacional de Justiça. Pode-se dizer que a principal diferença entre os casos Noriega e Maduro é o fato de o panamenho nunca ter se apresentado como Chefe de Estado, interna ou externamente.
De toda forma, Noriega perdeu a administração do Panamá com a invasão americana. O tribunal poderia eventualmente reconhecer que algum tipo de imunidade de jurisdição pelo período em que foi governante de facto. Contudo, após a sua queda, esta imunidade seria apenas referente aos atos oficiais. Tráfico de cocaína e delitos correlatos não poderiam ser considerados como atos oficiais.
Hipoteticamente, poderíamos enquadrar Noriega na categoria de “alto funcionário”, posteriormente reconhecida como dotada de imunidade pela decisão da CIJ no caso Arrest Warrant, lembrando que a Corte da Haia não elaborou uma lista exaustiva de autoridades. Todavia, o novo governo - de facto e reconhecido como de jure - provavelmente retiraria suas prerrogativas, restando apenas a imunidade funcional, situação descrita acima, ou nem sequer esta.
A eficácia do indiciamento de Nicolás Maduro pelos EUA - entre o não reconhecimento e as normas de imunidade internacionais
Não reconhecer a legitimidade de um governante estrangeiro de facto é um motivo frágil para desrespeitar suas imunidade e prerrogativas. Sob a ótica do Direito Internacional, tais decisões tendem a ser entendidas como subterfúgios para inobservância de obrigações jurídicas. De modo contrário, a própria validade da norma tenderia a ser posta em dúvida. Em outras palavras, um Estado A não pode violar a soberania do Estado B afirmando que não reconhece a legitimidade de seu governante. Dessa forma, o Estado A contornaria tal obrigação jurídica sempre que lhe conviesse.
Foto: Ariana Cubillos/AFP
No momento, pode-se dizer que Nicolás Maduro possui as imunidades e prerrogativas de um chefe de Estado. Os Estados Unidos apenas poderiam exercer sua jurisdição caso ele perdesse o cargo. A questão que se impõe é: uma eventual intervenção estrangeira que o removesse do cargo seria apta a afastar-lhe tais imunidades? É possível que sim, caso fosse instaurado um governo plenamente efetivo. A ilegalidade da intervenção, quão flagrante viesse a ser, seria uma questão distinta.
Caso Nicolás Maduro venha a perder o poder por movimentações políticas internas, o caminho estará livre para os Estados Unidos julgarem-no pelos crimes alegadamente cometidos. Todavia, no momento, o prosseguimento da ação penal é ilegal, assim como a operação no Panamá em 1989.
Aqueles autores que afirmam que as grandes potências desrespeitarão o direito internacional se considerarem necessário têm uma certa dose de razão. Todavia, um um detalhe importante não pode ser ignorado: a Venezuela seria um adversário muito mais duro e complexo do que o Panamá.
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Bibliografia básica recomendada:
CRAWFORD, James. Brownlie’s Principles of Public International Law. 8. ed. Oxford: Oxford University Press, 2012;
LAUTERPACHT, H. Recognition of Governments: I. Columbia Law Review, [s.l.], v. 45, n. 6, p. 815-864, nov. 1945.
NWOSU, Udoka Ndidiamaka. Head of State Immunity in International Law. 2011. 416 f. Tese (PhD) - Degree of Doctor of Philosophy, Department Of Law, London School Of Economics And Political Science, London, 2011;
SHAW, Malcolm N. International Law. 8. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2017;
WICKREMASINGHE, Chanaka. Immunities Enjoyed by Officials of States and International Organizations, In: EVANS, Malcolm D. International Law. New York: Oxford University Press, 2003.
Casos citados:
United States of America v. Noriega. Disponível em: <https://law.justia.com/cases/federal/district-courts/FSupp/746/1506/1757098/>.
United States of America v. Nicolás Maduro Moro and others. Disponível em: <https://www.justice.gov/opa/page/file/1261806/download>.
*Mateus Henriques Thomas é advogado pós-graduando em Direito Internacional pelo PPGD e em Relações Internacionais pelo PPGEEI, ambos da UFRGS. É membro do Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia e Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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