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O que faz a Europa retornar bens culturais a seus países de origem?

Por Ivonei Souza Trindade*

Foto: Etienne Laurent/AFP/Getty Images


O presidente da França, Emmanuel Macron, anunciou, em 2017, que procederia com a devolução de determinados bens culturais presentes em museus franceses a seus países africanos de origem. A Suíça, em junho de 2015, realizou o retorno de 32 objetos culturais ao Egito, assim como, em dezembro de 2019, retornou 48 artefatos culturais ao Peru. Da mesma forma, Portugal, em janeiro de 2019, colocou-se à disposição para negociar com a Angola a devolução de bens culturais pertencentes ao país africano, enquanto os Países Baixos realizaram, em janeiro de 2020, a repatriação de 1500 artefatos culturais à Indonésia.


Esses foram exemplos recentes de países europeus que procederam com a repatriação de bens culturais presentes em seus territórios a suas nações de origem. Muitos desses objetos presentes em território europeu foram direcionados a nações na África e na Ásia, sendo que um grupo considerável dos destinatários foi colonizado, até o século XIX, por potências europeias.


Diante de tais casos, a pergunta que fica é a seguinte: existe alguma razão para o impulsionamento, nos últimos anos, da devolução de objetos culturais localizados em países europeus?


A resposta é afirmativa e pode ser relacionada à Diretriz nº 60/2014 da União Europeia, feita pelo Parlamento Europeu em conjunto com o Conselho Europeu, em 15 de maio de 2014.


Na sequência, reside outro questionamento: existem tratados internacionais anteriores a tal documento da União Europeia estabelecendo a obrigação de retorno de bens culturais a países de origem?


A resposta também é positiva, de modo que merecem destaque duas convenções: 1) Convenção da UNESCO Relativa às Medidas a Serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedades Ilícitas dos Bens Culturais de 1970 (a chamada Convenção da UNESCO de 1970); 2) Convenção da UNIDROIT sobre Bens Culturais Furtados ou Ilicitamente Exportados, de 1995.


A Diretriz de 2014, no entanto, não foi o primeiro esforço europeu para a implementação de tal ideal de reparação histórica.


Foto:Gerard Julien / AFP


Convenção de Delfos e a Diretriz nº 93/7/EEC da Comunidade Econômica Europeia


No ano de 1985, dentro da Comunidade Econômica Europeia (CEE), foi elaborada a Convenção Europeia sobre Ofensas Relacionadas ao Bem Cultural, também chamada de Convenção de Delfos. O referido tratado não chegou a entrar em vigor, tendo em vista que somente seis países firmaram assinaturas (Chipre, Grécia, Itália, Liechtenstein, Portugal e Turquia), mas nenhum o ratificou.


Entre os artigos 6º e 11 da Convenção de Delfos, está a regulamentação para o retorno de bens culturais. Esse tratado estabeleceu que o meio indicado para o início de procedimento de devolução de bens culturais é a troca de cartas rogatórias (Art.8º), porém não fixou prazos para devolução dos objetos culturais assim que identificados dentro do país requerido.


Meses antes da entrada em vigor do Tratado de Maastricht, em março de 1993 – quando o termo CEE ainda estava válido – foi editada a Diretriz do Conselho nº 93/7/EEC, que versava sobre o retorno de bens culturais removidos ilegalmente de um Estado. Esse documento, com seus 19 artigos, foi além da Convenção de Delfos em alguns aspectos que serão mencionados a seguir.


A Diretriz nº 93/7/EEC da CEE estabeleceu, no seu artigo 7º, que os Estados tinham o dever de proceder com a devolução de bens culturais no prazo de um ano a partir do conhecimento da localização do objeto bem como da identificação do possuidor. Esse mesmo dispositivo legal fixou prazos para começar o procedimento de retorno dos bens culturais: 30 anos, após a remoção ilegal do território do Estado requerente; 75 anos após a remoção ilegal, em casos de objetos integrantes de coleções públicas e de bens eclesiásticos, protegidos por leis nacionais específicas. Acordos bilaterais, de acordo com este dispositivo legal, podem estabelecer prazo superior aos referidos 75 anos, nesta última hipótese.


Merecem atenção algumas regras estabelecidas nesse documento da CEE: há a possibilidade de o Judiciário do Estado requerido ordenar a devolução do bem cultural solicitado (arts. 5º, 8º e 9º); as despesas para implementar uma decisão de retorno de bens culturais devem ser custeadas pelo Estado requerente (art. 10). Não há a necessidade expressa de que haja a carta rogatória entre os Estados, mas basta a comunicação entre si, dentro do procedimento de retorno de bens culturais (art. 6º).


Importante ressaltar que a Diretriz nº 93/7/EEC sofreu modificações com os seguintes documentos: Diretriz nº96/100/EC e Diretriz nº 2001/38/EC. Ambos os documentos alteraram o anexo, porém o primeiro modificou o rol do que seria considerado um tesouro nacional para fins de definição de bem cultural, e o segundo atingiu no cálculo de custos de repatriação, ao utilizar o Euro como moeda.


Andrzej Jabukowski - pesquisador da University of Fine Arts de Poznan, Polônia - notou que a Diretriz nº 93/7/EEC foi muito pouco aplicada nos primeiros anos, após sua edição. Antoine Maniatis, analisando os relatórios oficiais de implementação dessa diretriz, concluiu que ela foi pouco aplicada dentro do bloco europeu pelos seguintes motivos: 1) campo de atuação restrito ao seu anexo; 2) prazo curto para os Estados procederem com a devolução de um bem cultural a partir do conhecimento de sua localização; 3) alto custo para proceder com a restituição de um bem cultural, com base no teor do anexo da diretriz quanto à parte das despesas.


O resumo da lógica da Diretriz nº 93/7/EEC e todo seu regramento posterior é o seguinte: o Estado detentor teria um ano para devolver o bem cultural, assim que identificado no seu território; o Estado requerente teria de desembolsar altos valores em euros para a repatriação dos objetos culturais tanto em retorno oriundo de negociações diplomáticas como em decisões judiciais que autorizam a medida.


Em 2013, um relatório feito pela União Europeia sobre a implementação da Diretriz nº 93/7/EEC ratificou esses pontos mostrados por Antoine Maniatis e concluiu pela necessidade de revisar profundamente esse documento elaborado nos anos 90. Desse relatório elaborado em 2013, nasceu a ideia de elaborar a Diretriz nº 60/2014.


Foto: © European Union 2014 - European Parliament


A Diretriz nº 60/2014 da União Europeia


Antes dos comentários acerca da Diretriz nº 60/2014, é importante mencionar qual o valor normativo de uma diretriz dentro do Direito da União Europeia. A diretriz tem função de direcionar os Estados membros para que atinjam um determinado objetivo. Os Estados podem atuar, para a implementação dessa meta nos seus territórios, com certa liberdade. Se a diretriz estabelecer prazos para cumprimento de obrigações específicas, a Comissão Europeia pode aplicar sanções ao Estado que os descumprir.


O artigo 19 da Diretriz nº 60/2014 da União Europeia estabeleceu aos Estados membros o prazo de 18 de dezembro de 2015 para o cumprimento de algumas obrigações estabelecidas em artigos desse documento como, por exemplo, leis e regulações internas sobre a identificação de bens culturais removidos ilegalmente e a comunicação dos Judiciários entre o Estado requerente e requerido em procedimentos de devolução. O teor do referido dispositivo legal ajudou em negociações de retorno de bens culturais que passavam por entraves há anos.


A Diretriz nº 93/7/EEC fixou uma definição de tesouro nacional para fins de conceituação de bem cultural bem como especificou no seu anexo um rol de objetos dentro desses conceitos. Um dos grandes avanços da Diretriz nº 60/2014 da União Europeia, segundo Stella Sarapani, pesquisadora da Universidade de Tessalônica, Grécia, foi retirar a definição de tesouro nacional restrita a uma lista tal como a elencada pelo anexo à diretriz dos anos 90 (Ponto 9 do Preâmbulo da Diretriz nº 60/2014). Importa é que o Estado, ao definir o que entende por tesouro nacional para fins de conceituação de bem cultural, respeite o artigo 36 do Tratado de Funcionamento da União Europeia.


Os critérios para o cálculo do custo de repatriação foram também retirados do anexo. Essa medida deixou os países mais livres para o debate dos gastos, gerando, por conseguinte, uma maior facilidade entre as nações durante as negociações para a devolução dos bens culturais. Alguns procedimentos de restituição de bens culturais foram destravados com essa medida não apenas no âmbito de relações bilaterais, mas também em casos que estavam sendo acompanhados pela UNESCO, sob a regência da Convenção de 1970. Exemplo disso foi a restituição de bens culturais ao Peru feita pela França, em julho de 2019, tendo em vista que as negociações entre os dois países começaram em 2007.


Atendendo a uma observação de Estados membros, o artigo 8º da Diretriz nº 60/2014 da União Europeia estabeleceu o prazo de três anos para que o Estado realize a devolução de um bem cultural removido ilegalmente assim que propriamente identificado. Esse dispositivo legal modificou, portanto, o início do art. 7º da Diretriz nº 93/7/EEC, que definia o prazo de um ano. Cabe destacar, contudo, que os prazos de 30 e 75 anos estabelecidos pela diretriz dos anos 90 foram mantidos pelo artigo 8º da Diretriz nº 60/2014 da União Europeia. A possibilidade de extensão do prazo de 75 anos através de acordos bilaterais também foi mantida.


Comparando com a Diretriz nº 93/7/EEC, temos a seguinte situação agora: quando um Estado requerente fizer a solicitação, por meios diplomáticos, de devolução de um bem cultural, o Estado detentor tem três anos para proceder com o retorno, assim que identificado no seu território. Esse prazo ficou mais adequado para os países, pois o Estado detentor tem mais tempo para os preparativos da devolução.

Consequentemente, o Estado requerente tem mais liberdade para negociar os custos de repatriação assim como possui um período maior para reservar dinheiro com fins de arcar com os gastos do procedimento. O Estado detentor deve zelar pelo bem cultural encontrado até o dia da devolução, de acordo com o artigo 10 da Diretriz nº 60/2014.


Manlio Frigo, um dos maiores especialistas em Direito da arte e propriedade intelectual, ao analisar o artigo 10 da Diretriz nº 60/2014, afirmou que os critérios de devida diligência que o Estado deve averiguar com relação ao bem cultural removido ilicitamente – quando há a identificação do possuidor no seu território, assim que encontrado – são semelhantes ao artigo 4º, parágrafo quarto, da Convenção da UNIDROIT sobre Bens Culturais Furtados ou Ilicitamente Exportados. O referido autor considerou um avanço em comparação com a Diretriz nº 93/7/EEC, pois no documento dos anos 90 não havia maiores detalhes sobre este dever de cautela.


O artigo 15 da Diretriz nº 60/2014 manteve a possibilidade de os Estados aplicarem o teor desse documento em requerimentos de devolução de bens culturais removidos antes do ano de 1993, caso queiram. Esse dispositivo legal tem referências claras ao artigo 14 da Diretriz nº 93/7/EEC, que estabelecia a mesma hipótese.


Os impactos da Diretriz nº 60/2014 da União Europeia na Comunidade Internacional


No início deste texto, foram mostrados exemplos, datados desde 2015 (ano em que já estava em vigor a Diretriz nº 60/2014), de devolução de bens culturais da Europa aos países de origem. O alto número de casos é uma prova de que a diretriz de 2014 tem uma grande parcela de influência nisso, pelo fato de ter retirado e alterado pontos previstos na Diretriz nº 93/7/EEC.


O artigo 19 da Diretriz nº 60/2014, ao estabelecer o prazo para cumprimento de determinadas obrigações, foi um fator importante também, pois impulsionou procedimentos de devolução de bens culturais que estavam com entraves.


Foto: © Direção Geral do Patrimônio Cultural da República Portuguesa / UNESCO


O retorno de um bem cultural dá um grande reforço à cultura do seu país de origem. Muitos casos de repatriação foram de bens removidos antes da existência da União Europeia como, por exemplo, a restituição de bens culturais ao Benin pela França, em 2018. Isto é uma prova clara de que o artigo 15 da Diretriz nº 60/2014 vem sendo aplicado e atesta a flexibilidade de certas nações europeias quanto ao marco temporal, quando aplicam, retroativamente, normas desse documento.


Em resumo, podemos dizer que os pontos meritórios da Diretriz nº 60/2014, já analisados no decorrer do texto, foram os seguintes: 1) retirada do anexo à Diretriz nº 93/7/EEC acerca da definição de tesouro nacional bem como dos critérios para o cálculo de repatriação de bens culturais; 2) ampliação do prazo de três anos para a devolução de bens culturais; 3) estabelecimento de prazo para o cumprimento de algumas obrigações do próprio documento; 4) possibilidade de aplicação retroativa dessa diretriz em bens culturais removidos antes de 1993, caso os Estados queiram; 5) critérios baseados na Convenção da UNIDROIT de 1995 para o zelo do bem cultural encontrado.


Caso o Estado europeu, durante a negociação de repatriação, não queira aplicar, retroativamente, a Diretriz nº 60/2014, como fica o Estado requerente? Seria justo o Estado requerente, quando recebe seus bens culturais, ganhar uma indenização monetária por essa remoção ilegal sofrida? Se sim, como seria o cálculo? E os prazos de 30 e 75 anos do artigo 8º são razoáveis? Estes questionamentos devem ser considerados pela União Europeia, no futuro, para o desenvolvimento de novas normativas dentro do bloco sobre a proteção do patrimônio cultural.


Muitos bens culturais foram removidos ilegalmente da Ásia e da África, principalmente durante os séculos XIX e XX, enviados ao continente europeu e direcionados a ambientes como, por exemplo, museus e palácios. Muitos desses povos vítimas da remoção ilegal de parte de sua cultura eram colônias europeias, quando essas barbáries ocorreram.

O movimento da descolonização dentro da ONU, apesar de primar pela autodeterminação dos povos, não se posicionou firmemente – através das principais resoluções sobre essa matéria feitas nos anos 60 – sobre a reparação cultural que essas nações vítimas de potências europeias merecem. A Diretriz nº 60/2014, se cumprir com o seu papel, seria um complemento ao propósito do movimento da descolonização.


Para a plena autodeterminação de um povo, é necessário que ele seja plenamente reparado pelos danos sofridos, inclusive, culturalmente. Um dos pilares do conceito de autodeterminação implica que o povo possa desenvolver sua cultura livremente, ou seja, construa sua identidade cultural através de suas raízes. É neste último ponto que a devolução de bens culturais é importante para a autodeterminação dos povos: o reencontro com suas raízes e com sua história.


Até o dia 18 de dezembro de 2020, os membros da União Europeia deverão enviar à Comissão Europeia relatórios sobre a implementação da Diretriz nº 60/2014 nos seus territórios. A partir deste envio, será elaborado um documento apontando o balanço dessa diretriz dentro da União Europeia. Aguardemos os resultados oficiais, apesar de haver um aumento de notícias sobre retorno de bens culturais da Europa aos países de origem, nos últimos cinco anos.


Com o pleno sucesso da Diretriz nº 60/2014 dentro da União Europeia, talvez alguns museus na Europa fiquem mais vazios, já que alguns bens culturais removidos ilegalmente são expostos nesses lugares.


As nações que tiveram suas culturas atacadas com a remoção ilegal de objetos importantes para sua identidade cultural – seja pela colonização europeia no seu território ou pelo tráfico ilícito de bens culturais – agradecerão por esses espaços vazios dentro de museus no continente europeu


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Bibliografia básica: FRIGO, Manlio. The Implementation of Directive 2014/60/EU and the Problems of the Compliance of Italian Legislation with International and EU Law. In: Santander Art and Culture Law Review. Edição nº 2, 2016; JAKUBOWSKI, Andrzej. State Sucession in Cultural Property. Nova York: Oxford University Press, 2015; MANIATIS, Antoine. La Restitution des Biens Culturels. In: Revue International de Droit Comparé. Institut des Sciences Humaines et Sociales du CNRS. Edição nº 2. Abril-Junho de 2018; SARAPANI, Stella. Return of Cultural Treasures under Directive 2014/60/EU. Dissertação de Mestrado. International Hellenic University. Tessalônica, Grécia. 2017.




*Ivonei Souza Trindade é acadêmico pesquisador em Direito egresso da PUCRS, com passagem pela Universidade de Munique (LMU). É Advogado com atuação como amicus curiae em casos contenciosos e em opiniões consultivas na Corte Interamericana de Direitos Humanos, e membro da Société Québécoise de Droit International. É autor dos seguintes livros publicados em português: Caso Pavle Strugar: Um Estudo sobre a Proteção de Bens Culturais em Caso de Conflito Armado (2016); Amicus Curiae na Corte Interamericana de Direitos Humanos: Um Guia Prático (2018); Solução Amistosa de Casos na CIDH e Corte IDH: Noções Básicas (2019).


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