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Pouco mais de um ano após a extinção do Ministério do Trabalho, o que mudou na imigração laboral

*Por Fabrízio Jacobucci

Foto: Organização Internacional para as Migrações A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada no contexto da redemocratização brasileira na segunda metade da década de 1980, consagra os “valores sociais do trabalho” como fundamentos do Estado Democrático de Direito, logo em seu primeiro artigo. Adiante, a Constituição ratifica este dispositivo ao tratar dos direitos fundamentais e garantias individuais, declarando ser livre o exercício de qualquer trabalho por brasileiros e migrantes residentes no país. Isto significa que a condição e o exercício do trabalho livre são estruturas basilares elencadas pelo constituinte como imprescindíveis para a existência do Estado brasileiro, sem distinção e com base no principio da isonomia. Contudo, seria possível extrair dessa afirmação que não há qualquer diferenciação no tratamento do trabalho para brasileiros e nacionais estrangeiros?

O trabalho é um dos mais relevantes elementos no tratamento jurídico do migrante no Brasil. E por que haveria necessidade de se regulamentar este trabalho, haja vista o texto constitucional prever a não discriminação entre brasileiros e migrantes? A resposta tem base na proteção da mão de obra local em detrimento da estrangeira, e a necessidade de garantir o respaldo legal para o empregador e os plenos direitos fundamentais ao empregado.

Aqui abordaremos pontos importantes para o entendimento da matéria da imigração no Brasil, especialmente no que se refere à imigração laboral. O estudo trará aspectos legislativos que regulamentam a matéria no país, bem como o sistema que estrutura a política nacional migratória – contribuindo para a compreensão do concerto migratório atual que, em menos de 3 anos, sofreu significativas alterações que mudaram seu rumo.

A primeira delas foi a entrada em vigor da Nova Lei de Migração em novembro de 2017, e as subsequentes alterações normativas que estavam sob seu aparato estrutural. Extrai-se dessa alteração a nova tratativa que é dispendida às autorizações de trabalho para migrantes no país, no que tange à matéria e formalidades. Por fim, a Medida Provisória 870, promulgada em janeiro de 2019 e convertida na Lei 13.844/19, trouxe a extinção do Ministério do Trabalho e a incorporação do Conselho Nacional de Migração pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública. O TRABALHO DO MIGRANTE NO BRASIL O Brasil é notadamente um país em que a história da migração confunde-se com sua própria história. Nos primeiros anos do século XX, a jovem república brasileira, reverberando os efeitos da ainda recente Lei Áurea, assistiu a presença da mão de obra estrangeira que gradualmente ocupava espaço de relevância em diversos segmentos do trabalho urbano, sobretudo em São Paulo, e rural, especialmente no setor cafeeiro das regiões sul e sudeste.

Os demais grandes fluxos de migração que tiveram o Brasil como destino ocorrem por motivos de condição socioeconômica do país de origem, em razão de guerra ou força maior, e pela esperança de prosperar no destino sul-americano. Não obstante, essas mudanças históricas reverberaram no tratamento jurídico do migrante no Brasil, que teve de ser flexibilizado quanto à condição de entrada, e regulamentada quanto à condição de estada, a fim de ser compatível com a realidade do cenário internacional globalizado.

O marco inicial do tratamento jurídico do migrante no Brasil teria sido a Carta Régia de D. João VI, de 1808 que decretou a abertura dos portos, estimulando a imigração. Já no século XX, nota-se que o Constituinte brasileiro de 1934 recebeu de legislação estadunidense de 1924 que instituiu o sistema de quotas, estabelecendo simétrico dispositivo em seu artigo 121, § 6º – e este sistema foi mantido na Constituição de 1937. Tal instituto tinha a fundamento de controlar a quantidade percentual de migrantes de determinada nacionalidade em território nacional, a fim de que se pudesse balancear e sob a justificativa de “garantia da integração étnica”.

O sistema de quotas só viria a ser abolido na Constituição de 1946, sendo reestabelecida a norma da liberdade de entrada, mantida pela Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional de 1969. Foi sob vigência desta última que o legislador criou o diploma legal que viria a regulamentar, de fato, a questão migratória no Brasil, em que pese todas as Constituições da República até então disporem sobre a matéria de forma superficial. Sancionada em 19 de agosto de 1980, a Lei nº 6.815/80 foi denominada Estatuto do Estrangeiro e surgiu como inovação legislativa na matéria. De maneira inédita no Brasil, o diploma tratou sobre a condição jurídica do migrante – abordando os institutos de entrada, estada, visto e saída, compulsória ou não, sem deixar de dispor sobre os direitos e deveres do migrante em território nacional, sempre em consonância com a Constituição Federal vigente à época. Não obstante, logo nos primeiros capítulos pode-se constatar a intenção do legislativo de não prever vastas concessões ou uma política de portões abertos ao migrante: “na aplicação dessa Lei atender-se-á precipuamente à segurança nacional, à organização institucional, aos interesses políticos, socioeconômicos e culturais do Brasil, bem assim à defesa do trabalhador nacional”.

O legislador brasileiro teve cautela em sua norma reguladora, sob pena que o Estado poderia ser prejudicado na presença em massa de migrantes. Deve-se levar em consideração que à época não se tinha o entendimento que há hoje em torno da globalização – e que os efeitos deste fenômeno surtiriam na diminuição da intensidade e enfraquecimento das fronteiras dos Estados. O protecionismo na questão migratória, que era visto à época, incumbia-se de ser legitimada pela expressão de soberania estatal – legal e legítima em plano interno.

O Estatuto define, ao longo de seus 141 artigos, as condições de admissão, estada, registro e saída dos migrantes, bem como os documentos de viagem e questões referentes à nacionalidade. Também ressalta-se a proibição de concessão e vistos ao migrante menor de dezoito anos desacompanhado de representante legal, pessoa anteriormente expulsa do país, e a quem tiver sido condenado ou processado em outro país por crime doloso, não obstante também dispor sobre a proibição de legalização do migrante que se encontra clandestino ou irregular.

Entendemos que tal Estatuto, não obstante as diversas inovações no âmbito migratório, teve como principal contribuição a criação de um “sistema migratório nacional”, destacando inédita clareza quanto ao papel das autoridades responsáveis e suas respectivas competências, tecendo completo aparato normativo para servir de amparo à solicitação de visto e, especialmente, constituindo o Conselho Nacional de Imigração (CNIg). Este órgão se tornaria o principal regulamentador de matérias migratórias no Brasil, atuando como autoridade competente por regulamentar as disposições normativas, assim como analisar, julgar e conceder as permissões de trabalho aos migrantes que a solicitam. Este sistema trouxe ao Estado brasileiro precisão na fiscalização e concessão das permissões de trabalho para migrantes, como nunca antes visto.

O Estatuto do Estrangeiro foi alterado pela Lei 6.964/81 e regulamentado pelo Decreto 86.715/81, permanecendo em vigor por trinta e sete anos. Foi revogado e substituído por novo diploma legal, que herdou as conquistas de seu antecessor e renovou outros institutos, à sombra da necessidade de adaptação aos modernos tempos. A NOVA LEI DE MIGRAÇÃO (LEI 13.455/17) O Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/80) permaneceu válido até o contexto da segunda década do século XXI, onde a questão da migração passaria a receber diferente tratamento. Distintamente do cenário contextualizado na década de 1980, o concerto global da década de 2010 estaria repleto de novas crises migratórias e novas perspectivas nas relações internacionais, que prescindiam de respostas no campo dos Direitos Humanos. Entendida a necessidade de modernização, o legislador brasileiro desenvolveu o texto que substituiria o antigo Estatuto com forte base no respeito aos Direitos Humanos – especialmente no que tange aos refugiados e apátridas. Sancionada em 24 de maio de 2017, a Lei 13.445 se tornaria o novo diploma a regular a matéria.

A primeira mudança significativa é notada na própria nomenclatura utilizada: o Estatuto do Estrangeiro dá lugar à nova Lei de Migração. Não mais é chamado de “estrangeiro” o cidadão de outra nacionalidade, mas sim de “migrante”. Tal alteração reflete o contexto internacional que implica na absorção de migrantes e respeito aos Direitos Humanos, especialmente num cenário em que os fluxos migratórios se alteram e a questão migratória se transforma em uma crise sem fim. Logo, o documento de identificação não se intitula Registro Nacional do Estrangeiro (RNE), e sim Registro Nacional Migratório (RNM).

Vale ressaltar que a Nova Lei também alterou a nomenclatura e procedimentos administrativos referentes ao visto em si, especialmente em relação à permissão laboral do migrante. Sob a vigência do Estatuto do Estrangeiro, havia a figura do visto temporário de trabalho, que era transformado – após o término de seu período inicial de vigência – em um visto permanente. Com o advento da Nova Lei de Migração, a nomenclatura “visto temporário’ permaneceu, mas sua extensão apenas pode ser feita por meio do pedido de autorização de residência, que substituiu o visto permanente.

O tratamento do trabalho do migrante era uma questão abordada na Lei nº 6.815/80 por algumas vezes, sempre com notável superficialidade. Era garantido ao migrante o direito de pleitear seu visto de permanência com base em contrato de trabalho, com fulcro em imprescindível concessão do Conselho Nacional de Imigração. Já a Nova Lei de Migração, por sua vez, elenca o instituto do trabalho do migrante como um dos direitos resguardados pelas diretrizes da política migratória brasileira, em nível de igualdade com o direito à saúde, educação e moradia.

Outra grande inovação legislativa no tocante à permissão de trabalho do migrante ficou por conta do artigo 14, j, III, § 5º, a saber: “Observadas as hipóteses previstas em regulamento, o visto temporário para trabalho poderá ser concedido ao imigrante que venha exercer atividade laboral, com ou sem vínculo empregatício no Brasil, desde que comprove oferta de trabalho formalizada por pessoa jurídica em atividade no País, dispensada esta exigência se o imigrante comprovar titulação em curso de ensino superior ou equivalente”. A redação deste dispositivo revela a hipótese, antes impossível, de concessão de visto temporário de trabalho a migrante que não tenha ainda estabelecido vínculo empregatício com seu empregador no Brasil – flexibilizando os requisitos para a obtenção de um visto de trabalho e causando certo desconforto pelo vago texto utilizado pelo legislador. O dispositivo trouxe insegurança jurídica devido a ampla interpretação que se possa decorrer, especialmente no que tange a eventual possibilidade de permissões de trabalho serem concedidas àqueles que ao menos têm vínculo empregatício na iminência de ser constituído.


Neste sentido, o Decreto 9.199/17 – publicado em novembro de 2017 – define de forma clara e incisiva as hipóteses de cabimento do visto de trabalho sem vínculo empregatício, afastando a interpretação capciosa:

Art. 38, § 2: “O visto temporário para trabalho sem vínculo empregatício será concedido por meio da comprovação de oferta de trabalho no País, quando se tratar das seguintes atividades:
I - prestação de serviço ou auxílio técnico ao Governo brasileiro;
II - prestação de serviço em razão de acordo de cooperação internacional;
III - prestação de serviço de assistência técnica ou transferência de tecnologia;
IV - representação, no País, de instituição financeira ou assemelhada sediada no exterior;
V - representação de pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos;
VI - recebimento de treinamento profissional junto a subsidiária, filial ou matriz brasileira;
VII - atuação como marítimo com prazo de estada superior a noventa dias, a bordo de embarcação ou plataforma de bandeira estrangeira;
VII - atuação como marítimo [...]
VIII - realização de estágio profissional ou intercâmbio profissional;
IX - exercício de cargo, função ou atribuição que exija, em razão da legislação brasileira, a residência por prazo indeterminado;
X - realização de atividade como correspondente de jornal, revista, rádio, televisão ou agência noticiosa estrangeira; ou
XI - realização de auditoria ou consultoria com prazo de estada superior a noventa dias.

O Decreto nº 9.199/17, publicado com a intenção de regulamentar a Lei nº 13.445/17, trouxe também à luz outros temas que a Nova Lei de Migração versou de forma obscura. Sobre a autorização de trabalho, e as hipóteses de sua concessão, o Decreto elucida em diversos dispositivos matéria que era abordada de forma vaga pela Lei de Migração. Em suma, a legislação superveniente contemplou o assunto de maneira mais branda que sua antecessora, de modo que o tratamento jurídico da matéria tornou-se menos interpretativo e mais positivado.


Como não poderia ser diferente, a entrada em vigor da nova legislação importou na revogação do Estatuto do Estrangeiro e de todo o ordenamento jurídico que de desprendia deste, impactando diretamente a atuação do Conselho Nacional de Imigração. Com a incompatibilidade das resoluções normativas em face à nova legislação, o CNIg emitiu novas resoluções que substituíram por completo o antigo sistema. O CONSELHO NACIONAL DE IMIGRAÇÃO Criada ainda no âmbito do já revogado Estatuto do Estrangeiro, o Conselho Nacional de Imigração (CNIg) configura-se em órgão de importante atuação no controle e regulamentação das autorizações de trabalho concedidas aos migrantes no Brasil. É a autoridade competente para a análise dos pedidos de autorizações de trabalho solicitadas por empresas transnacionais em nome de seus funcionários migrantes, que prescindem de tal concessão para a realização de atividades laborais, como exposto. Passa pelo crivo do CNIg toda e qualquer autorização para que um migrante trabalhe no Brasil.

Segundo a redação original do artigo nº 128 da Lei 6.815/80 (revogado pela Lei nº 8.422/92), o Conselho Nacional de Migração tem como finalidade “orientar, coordenar e fiscalizar as atividades de imigração”. Cabe ressaltar que tal órgão foi constituído no seio do Ministério do Trabalho, apontamento a ser analisado criticamente em momento posterior desta pesquisa.

Com fulcro na Lei nº 8.490/92, o Decreto nº 840/93 regulamentou a estrutura e os fundamentos do Conselho Nacional de Imigração. Tal diploma não foi revogado pela nova Lei de Migração e, portanto, permanece em vigor – ainda que não esteja em conformidade com a alteração estrutural proposta pela Medida Provisória 870/19 (convertida na Lei 13.844/19), conforme será exposto adiante. O Decreto também institui as competências deste órgão, tais quais:

I - formular a política de imigração; II - coordenar e orientar as atividades de imigração; III - efetuar o levantamento periódico das necessidades de mão-de-obra estrangeira qualificada, para admissão em caráter permanente ou temporário; IV - definir as regiões de que trata o art. 18 da Lei n° 6.815, de 19 de agosto de 1980, e elaborar os respectivos planos de imigração; V - promover ou fornecer estudos de problemas relativos à imigração; VI - estabelecer normas de seleção de imigrantes, visando proporcionar mão-de-obra especializada aos vários setores da economia nacional e captar recursos para setores específicos; VII dirimir as dúvidas e solucionar os casos omissos, no que diz respeito a imigrantes; VIII opinar sobre alteração da legislação relativa à imigração, quando proposta por qualquer órgão do Poder Executivo; IX - elaborar seu regimento interno, que deverá ser submetido à aprovação do Ministro de Estado do Trabalho.

Como órgão estritamente vinculado ao Ministério do Trabalho, o Conselho Nacional de Imigração foi constituído com a prerrogativa de regulamentar as modalidades de vistos a serem aplicados para migrantes no Brasil. As chamadas “Resoluções Normativas” contêm em seu bojo as modalidades de visto de trabalho, assistência técnica, pesquisa científica ou estudo, e os requisitos legais para sua aplicação.


AS RESOLUÇÕES NORMATIVAS DO CNIg


As Resoluções Normativas – emitidas pelo Conselho Nacional de Imigração, por competência recebida pelo Artigo 1º, VI, do Decreto 840/93 – são as normas que elencam as modalidades de autorização de trabalho de migrantes, assim como suas hipóteses e requisitos. As primeiras resoluções foram emitidas a partir da década de 1990, ainda sob a égide do Estatuto do Estrangeiro, e refletiam a necessidade da mão de obra estrangeira à época.



Foto: Organização das Nações Unidas


As resoluções (ou RNs) eram emitidas distintamente de acordo com cada hipótese de autorização de trabalho para migrantes. A saber, a RN 01/1997 tratava da concessão de visto para professor, técnico ou pesquisador de alto nível e para cientistas migrantes, já a RN 04/1997 tratava da concessão de visto ou permanência a titulo de reunião familiar. A RN 42/1999 dispunha sobre a concessão de visto de estágio, e a RN 51/2002 tratava do visto concedido a marítimos estrangeiros empregados a bordo de embarcações de turismo estrangeiras.

No que tange especificamente ao trabalho de migrantes no âmbito de multinacionais com sede no Brasil, as modalidades mais frequentemente utilizadas eram: RN 61/2004, que tratava sobre o visto de transferência de tecnologia ou assistência técnica; a RN 62/2004, que disciplinava o visto permanente a migrante com funções de administração e poderes de gestão; a RN 87/2010, que tratava de visto de treinamento profissional de migrante junto à filial brasileira; a RN 99/2012, que tratava sobre o visto temporário sob vínculo empregatício; e a RN 100/2013, que tratava sobre a assistência técnica por período inferior a 90 dias.

Com o advento da Nova Lei de Migração, todas as Resoluções Normativas do CNIg foram revogadas, e as novas regras do Conselho foram emitidas a partir de dezembro de 2017. Estas substituíram a tratativa dos assuntos já regulamentados pelas revogadas normas, com poucas novidades legislativas. A saber, a RN 01/17 trata das normas gerais para o protocolo de processos de visto; a RN 02/17 trata da concessão de vistos de trabalho sob vínculo empregatício; a RN 03/17 e RN 04/17 tratam da autorização de vistos de assistência técnica e transferência de tecnologia; a RN 11/17 trata do visto para migrante com poderes de gestão; e a RN 19/17 trata do visto de estágio.

Vale esclarecer que referidas resoluções versam sobre autorizações de residência sob diversas hipóteses de embasamento legal, amparadas pela Nova Lei de Migração. Com base neste mesmo diploma legal, não cabe ao Conselho Nacional de Imigração versar sobre a condição de entrada do migrante, tampouco sobre a concessão de vistos outros, como turismo e negócios. A concessão desta modalidade é de prerrogativa exclusiva do Ministério das Relações Exteriores, exercida através das repartições consulares do Brasil no exterior. Isso não exclui que – em algumas hipóteses de autorização de residência – o migrante deva retirar seu visto em repartições consulares brasileiras, logo após aprovação do pedido pelo Conselho Nacional de Imigração e envio de ofício ao Itamaraty.

Como declarado pela própria legislação, “o visto é o documento que dá a seu titular expectativa de ingresso em território nacional”, e não a garantia de ingresso. Logo, é possível que um migrante tenha sua autorização de trabalho aprovada pelo CNIg, ofício comunicado ao Ministério das Relações Exteriores, visto emitido pela repartição consular brasileira no exterior, e, ainda assim, seja impedido de entrar em território brasileiro. O controle de fronteiras do Estado brasileiro é de competência da Polícia Federal – órgão integrante do Ministério da Justiça – que, por sua vez, não está veiculado à inderrogável prerrogativa de autorizar a entrada do migrante que porta um visto emitido por órgão consular.

Neste sentido, a estrutura jurídica arquitetada que consiste em atrelar o Conselho Nacional de Imigração ao Ministério do Trabalho nos parece um grande acerto do legislador do Estatuto do Estrangeiro, pois é de fácil compreensão a afinidade das matérias. A concessão de autorizações de trabalho a migrantes ser de competência de um órgão pertencente ao Ministério do Trabalho soa plausível. Contudo, recentes alterações governamentais modificaram a estrutura até então existente e reconfigurando o sistema nacional migratório. O QUE MUDOU (E PODE MUDAR) NA IMIGRAÇÃO LABORAL NO BRASIL COM A EXTINÇÃO DO MINISTÉRIO DO TRABALHO? No primeiro dia do ano de 2019, a Medida Provisória nº 870 foi publicada e deu vida à reconfiguração dos Ministérios e órgãos governamentais federais. O texto da medida decorre de promessas de campanha premeditadas pelo então candidato à presidência da República, Jair Bolsonaro, e de articulações confirmadas ainda no projeto de transição para o novo governo da já eleita chapa. A intenção de reconfigurar o cenário de Brasília tomou como base a redução orçamentária que esta movimentação traria, assim como a maior efetividade das pastas e do governo federal, em si.

A principal transformação desta Medida Provisória, para fins da presente pesquisa, encontra-se em seu artigo 57: “Ficam transformados: I - o Ministério da Fazenda, o Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços e o Ministério do Trabalho no Ministério da Economia”. Com tal dispositivo, resta extinto o Ministério do Trabalho e Emprego, criado pelo Presidente Getúlio Vargas, em 1930.

Ressalvas à parte, o texto da MP 870/19 tratou de alocar todas as competências do extinto Ministério para os outros órgãos que deveriam incorporar tais funções à suas competências. Especificamente quanto ao Conselho Nacional de Imigração, dispõe o texto da referida Medida Provisória: “Art. 38. Integram a estrutura básica do Ministério da Justiça e Segurança Pública: [...] VIII - o Conselho Nacional de Imigração”.

Completa o artigo 37 da referida medida provisória acerca da nova reestruturação: “Constitui área de competência do Ministério da Justiça e Segurança Pública: [...] V - nacionalidade, imigração e estrangeiros; [...] XXII - política de imigração laboral”. Resta claro que o governo não teve dúvidas em transferir questões relacionadas à imigração para a competência do Ministério da Justiça e Segurança Pública, em detrimento do Ministério da Economia. Não obstante a importância que as questões imigratórias detêm no que se refere à economia, as funções do Conselho Nacional de Imigração foram encaminhadas ao Ministério da Justiça.

Faz-se também necessário mencionar o Decreto nº 9.701, publicado em 08 de fevereiro de 2019, que altera a redação do Decreto nº 9.662 – diploma que aprova a nova estrutura regimental no Ministério da Justiça e Segurança Pública. A modificação trata de incorporar ao “Departamento de Migrações” o novo instituto denominado “Coordenação-Geral de Imigração Laboral”, em substituição à “Coordenação-Geral de Imigração”. Ainda não é possível declarar se a inclusão de um novo termo que especifica a atividade do órgão surte efeitos na prática, ou se uma eventualidade normativa pode reverter o entendimento da autoridade no sentido de que tenha, esta, apenas a finalidade de tratar assuntos laborais.

A Medida Provisória nº 870/19 foi a medida adotada no primeiro dia do novo governo do Presidente Jair Bolsonaro, repercutindo de forma muito controversa em meio a sociedade brasileira. A decisão de extinguir o Ministério do Trabalho suscitou descontentamento em diversos segmentos, que sustentavam a preocupação de que este ato pudesse reverberar como um retrocesso nos direitos adquiridos pelos trabalhadores – haja vista ter este Ministério a finalidade de agir como defensor dos direitos trabalhistas.

Este desconforto foi levado à juízo com a finalidade de rever o ato que culminou na extinção do Ministério. Duas ações de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (n. 561 e n. 562) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (n.6057) foram ajuizadas no Supremo Tribunal Federal contra a Medida Provisória, mas nenhuma foi julgada procedente. O Ministério do Trabalho já faz parte do passado.


Foto: Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicações do Estado de São Paulo

O sistema migratório criado pelo Estatuto do Estrangeiro perdurou pelas décadas de 1980, 1990 e 2000 – sendo complementado pelas Resoluções Normativas emitidas pelo Conselho Nacional de Imigração, a fim de regulamentar a tratativa específica das modalidades de visto. O fim deste concerto deu-se com a promulgação da Nova Lei de Migração em 2017, que revogou o referido Estatuto e toda a legislação inferior que o regulamentava. O Conselho Nacional de Imigração, por sua vez, permaneceu sendo a autoridade competente para a regulamentação das modalidades de visto, assim como sua análise e concessão, tendo sua relevância ressaltada e continuando a integrar o Ministério do Trabalho.

A partir da entrada em vigor da Nova Lei de Migração, em novembro de 2017, o Conselho Nacional de Migração passou a emitir as novas Resoluções Normativas responsáveis por codificar as espécies de autorizações de trabalho para migrantes, e a julgar e conceder pedidos com base nestas normativas. Este cenário funcionou até o dia 01 de janeiro de 2019 – data em que a Medida Provisória nº 870 foi publicada, extinguindo o Ministério do Trabalho.

O tema da imigração – especialmente ao Conselho Nacional de Imigração, a política de migração laboral e o Departamento de Migrações – foi inteiramente transferido ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, ainda que a maior parte das competências do extinto Ministério do Trabalho tenham sido incorporadas pelo recém-criado Ministério da Economia.

Nos parece coerente que o Departamento de Migrações tenha sua competência incorporada pelo Ministério da Justiça que já é responsável pelo controle de fronteiras e pela concessão de entrada e saída de migrantes no Brasil. Contudo, não nos parece cabível que a mesma pasta incorpore a competência de analisar e conceder permissões de autorização de trabalho (Coordenação-Geral de Imigração Laboral), por ser a matéria de Justiça distante da política de migração laboral, não obstante ter o novo Ministério da Economia incorporado a maior parte das competências relativas ao trabalho de acordo com o texto da MP.

Também nos soa incongruente que a pasta responsável pela administração financeira e econômica do país seja também a competente por efetuar o controle da política migratória laboral e a análise e concessão de autorizações de trabalho – pois desta forma a permissão de trabalho estaria condicionada única e exclusivamente às necessidades econômicas e seu paradigma de interpretação. Este viés poderia trazer complicações até mesmo aos compromissos internacionais do Brasil no que se refere aos princípios da livre circulação dos povos, especialmente quanto às questões laborais. Não é possível afirmar que o Ministério da Economia, em hipotética análise de concessão de autorização de trabalho, venha a avaliar e sobrepesar a proteção da mão de obra nacional em detrimento do interesse econômico.

Em suma, o sistema nacional migratório não muda em sua essência, nem em seu objetivo e atuação - embora seus institutos tenham mudado de pasta no âmbito do governo federal. O Conselho Nacional de Imigração continua sendo o órgão responsável pela regulamentação das modalidades de visto de acordo com a Lei de Migração, e Coordenação-Geral de Imigração Laboral responsável pela concessão das autorizações do trabalho.

Isso prova como o sistema continua funcionando e com o mesmo intuito de proteger tanto o migrante quanto a mão de obra brasileira. Também prova a importância do respeitoso tratamento ao migrante que o Brasil demonstra através da força de tais instituições. É a ratificação prática dos compromissos acordados pelo Estado brasileiro no que tange aos direitos humanos, especialmente em respeito aos migrantes, refugiados e apátridas.

Entre autorizações de trabalho temporárias e permanentes, em 2011 o Brasil concedeu 68.693 autorizações - números que viriam a cair com o passar da década: 2012 (66.821), 2013 (61.841), 2014 (46.740), 2015 (36.868) e 2016 (30.327). Em 2017, último ano de vigência do Estatuto do Estrangeiro, o Brasil concedeu 25.937 autorizações de trabalho. Já em 2018, primeiro ano sob a vigência da Lei de Migração e as novas Resoluções Normativas do CNIg, foram concedidas 30.619 autorizações. Em 2019, primeiro ano com a extinção do Ministério do Trabalho e a transferência da pauta imigratória ao Ministério da Justiça, o Brasil concedeu 31.298 autorizações de trabalho para migrantes.

Em janeiro de 2020, 2.247 autorizações foram concedidas – um aumento de 19% em comparação com janeiro de 2019, quando 2.781 permissões foram deferidas. Contudo, é impossível atribuir esse crescimento à mudança de pasta. A imigração laboral é estritamente conectada à economia, que determina o numero de movimentações dentro de uma empresa multinacional, ou a contratação de mão de obra estrangeira por uma empresa nacional. Tudo leva a crer que este mesmo fator econômico também foi o responsável pela brusca diminuição de autorizações concedidas entre 2011 e 2018.

O sistema passou por importantes mudanças nos últimos anos – nova lei de migração, novas resoluções normativas, transferência de pasta – mas é importante ressaltar como a estrutura se fortaleceu à medida que ficou mais evidente o compromisso brasileiro nessa matéria. A extinção do Ministério do Trabalho retoma antigos fantasmas de defensores dos direitos humanos em todas as áreas, e cria um temor acerca da imigração laboral. O que mais se espera nesse momento é que tal extinção somente tenha implicações burocráticas, e que nenhum direito conquistado aos migrantes seja extinto.

Ainda é cedo para tomar qualquer conclusão, pois a matéria precisa ser alvo de análise em perspectiva. Resta aguardar que a efetiva atuação de todos os órgãos do sistema migratório – agora como integrantes do Ministério da Justiça e Segurança Pública – seja necessariamente consoante com a realidade globalizada no alvorecer da terceira década do século XXI. Não é de se descartar a possibilidade de que pouca modificação prática surta da tamanha mudança estrutural no Poder Executivo federal, pois, sobretudo, o Conselho Nacional de Imigração continua existindo e suas competências permanecem – ainda que não tenham sido alterados suas normas constituintes e aparatos que ainda o apontam como integrante do Ministério do Trabalho.

Nossa crítica realça a importância de estruturação e atenção às questões migratórias laborais, tão necessárias para o desenvolvimento da economia do país – especialmente em um contexto em que as fronteiras e barreiras entre Estados tendem diminuir cada vez mais. É imprescindível que haja fiscalização por parte das autoridades e especialistas na matéria, bem como da sociedade civil, para que o país não sofra com as consequências de uma desgovernada mudança de estrutura.


Bibliografia básica: CASSESE, Antonio. International Law: Second edition. Oxford: Oxford University Press, 2005; DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2016; FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EdiUSP, 2016. Relatórios de imigração do Ministério da Justiça elaborados pelo Observatório das Migrações Internacionais, disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/pt/dados

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