*Por Marina Bonatto e Melina Girardi Fachin.
Foto: Juan Manuel Herrera/OAS
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) é um órgão autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA), e foi criado em 1959 com o objetivo de proteger e promover direitos humanos nas Américas. A CIDH é composta por 7 membros, os quais devem zelar pelo cumprimento dos diversos mandatos que o órgão possui. Estes são auxiliados por uma secretaria, que compõe o corpo técnico da instituição. A cargo da secretaria está um Secretário Executivo, a quem também incumbe assistir à Comissão no exercício de suas funções.
De acordo com o artigo 11 do Regulamento da CIDH, esse Secretário é nomeado pelo Secretário-Geral da OEA após a realização de um procedimento interno de seleção do candidato mais qualificado pela maioria absoluta dos membros da Comissão. Com base na literalidade do Regulamento, então, a designação a título do Secretário Geral assume um caráter “pro forma”, haja vista que a escolha do nome parte da Comissão.
Em 27 de julho de 2016, a CIDH selecionou Paulo Abrão - brasileiro com longa trajetória na defesa dos direitos humanos na região - para o cargo e remeteu sua escolha ao Secretário Geral da OEA para sua designação. Em 16 de agosto de 2016 Abrão assume o cargo de Secretário Executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Com a proximidade do fim do mandato de quatro anos do Secretário, a CIDH, em sua primeira sessão interna de 2020, decidiu por unanimidade renová-lo para o período 2020-2024 (Comunicado de Imprensa No. 5/20). No entanto, em 15 de agosto de 2020, o Secretário Geral da OEA informou à CIDH que não avançaria no processo de renovação do mandato de Paulo Abrão como Secretário Executivo da CIDH. Posteriormente, Luís Almagro justificou sua decisão sob a alegação de que teriam sido apresentadas contra Abrão dezenas de denúncias sobre supostas violações de direitos dos funcionários da Organização (Comunicado de Imprensa C-088/20).
Frente a essa decisão a CIDH publicou o Comunicado de Imprensa de número 202/20, alertando que tal decisão unilateral do Secretário Geral configuraria flagrante desrespeito à sua independência e autonomia. A Comissão chama atenção, ainda, para o fato de que, desde janeiro de 2020, quando decidira pela renovação, não teria recebido nenhum questionamento do Secretário-Geral sobre a validade do procedimento de renovação.
Conforme destaca a Comissão, o Secretário Geral teria citado dois relatórios como base de sua decisão, “um preparado pela Secretaria de Assuntos Jurídicos da Secretaria Geral da OEA (...), e o outro elaborado pela Ombudsperson da OEA, alertando sobre a natureza confidencial de seu conteúdo”. Gera preocupação o conteúdo do relatório jurídico que baseou a decisão, segundo as quais “o Regulamento Interno da CIDH é uma mera interpretação não vinculativa do Estatuto da Comissão e da Carta da OEA e que, portanto, o Secretário Geral não é obrigado a cumpri-las”.
Foto: GGN/Divulgação/Agências
Fazendo especial referência à necessidade de salvaguardar suas competências e autonomia institucional, a CIDH destacou que o poder de nomear e retirar pessoal de confiança de suas funções é indispensável no cumprimento de seu mandato de supervisão e promoção dos direitos humanos. Reforçando, ainda, que foram exatamente os pilares de autonomia e independência que teriam possibilitado a realização de seu trabalho de forma imparcial e livre de qualquer influência política, servindo de exemplo e referência para o mundo.
Com relação ao relatório confidencial da Ombudsperson sobre a situação da Secretaria Executiva em 2019, a CIDH informou estar “profundamente surpresa que apesar de que estas situações se refiram a 2019, a Ombudsperson tenha esperado até 5 dias antes da expiração do contrato do Secretário Executivo para transmiti-las”, mas reiterou sua total disponibilidade para cooperar com a Secretaria Geral na abordagem das novas situações, enfatizando sua firme posição sobre a necessidade de abordá-las com pleno respeito às garantias do devido processo e ao princípio da presunção de inocência.
É inadmissível, no entendimento da Comissão, a utilização de um relatório institucional confidencial ou informações sobre a abertura de uma investigação administrativa como base para uma decisão sobre a não renovação administrativa do Secretário Executivo da CIDH, o que está em dissonância, inclusive, com as normas e jurisprudência do sistema.
O órgão reitera seu voto de confiança na renovação do mandato de Paulo Abrão e está disposto a dialogar com o Secretário-Geral e todos os órgãos da OEA a fim de alcançar uma solução que respeite sua autonomia e independência.
Foto: Salvatore Di Nolfi/AP.
Em apoio à CIDH um conjunto de diferentes entidades e organizações da sociedade civil brasileira se manifestou na Nota Conjunta sobre crise no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, publicada em 26 de agosto de 2020. Na nota, demonstraram sua imensa preocupação com a decisão do Secretário-Geral da OEA e reiteraram a importância do trabalho da CIDH garantido por sua autonomia e independência.
As organizações que assinam a nota fazem um chamado para a busca de uma solução ao impasse e para que as questões apontadas pelo Secretário Geral sejam apuradas, encaminhadas e resolvidas pelas autoridades e instituições envolvidas de forma célere, séria e transparente, sem que isso prejudique ou comprometa as atividades da Comissão no cumprimento de seu mandato e na atenção às vítimas, preservando, também, a autonomia e independência conferidas à CIDH pela Organização dos Estados Americanos.
Nesse mesmo sentido, a Alta Comissária das Nações Unidas para os direitos humanos, Michelle Bachelet, ressaltou a necessária adoção de medidas urgentes pela Organização dos Estados Americanos de forma a acabar com o impasse através do diálogo, sem que com isso seja afetada a independência, a autonomia e a eficácia da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Bachelet destacou, ainda, que a CIDH tem sido um recurso vital para as vítimas de violações de direitos humanos nas Américas, tendo desempenhado um importante papel na defesa dos direitos dos grupos vulneráveis.
Não se trata, nesse caso, de reputação pessoal, lealdade política ou perda de prestígio, como destacado por Michelle Bachelet, mas da proteção dos direitos humanos de centenas de milhões de pessoas em todas as Américas em um período de crise massiva.
O Estatuto da CIDH prevê mecanismos para a destituição do Secretário Executivo, sempre em consulta com a Comissão e com observância aos valores do devido processo e contraditório, garantias previstas nos artigos 8º e 25º da Convenção Americana. Não se mostra de acordo com a proteção dos direitos humanos no cenário americano, a conduta do Secretário-Geral. É lamentável que a ação do Secretário-Geral se dê com falta de transparência e compromisso de dialogar com a Comissão, ao arrepio das próprias normas do sistema.
*Marina Bonatto é advogada e mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; Melina Girardi Fachin é advogada, professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná e coordenadora do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos da UFPR.
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