Por Siddharta Legale e Maria Carolina de Souza Ribeiro de Sá*
Foto: OEA
A Clínica Interamericana de Direitos Humanos do NIDH – UFRJ participou da audiência pública da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) referente à Opinião Consultiva n. 28/21, que acaba de ser publicada respondendo se a reeleição presidencial indefinida é um direito humanos, se é compatível com art.23 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) e se é compatível com a Democracia representativa no âmbito do sistema interamericano. A partir desse lugar, pretende-se descrever brevemente as respostas da Corte IDH e apresentar um primeiro balanço da mesma.
Em linhas gerais, a Corte IDH decidiu que a reeleição indefinida não é um direito humano da CADH, sendo assim não é protegida como um direito autônomo, não é compatível nem com a CADH, nem com a democracia representativa, com a Carta da OEA ou com a Carta Democrática Interamericana.
A sua fundamentação destacou que os Estados assumiram que a democracia representativa é a base do sistema interamericano e inclui a obrigação de evitar a perpetuação de uma única pessoa no poder. Desta forma, o direito a reeleição indefinida não existe de forma específica ou diferenciada.
Na mesma linha, as restrições não foram consideradas violações dos direitos políticos garantidos no artigo 23 da CADH. Se por um lado os direitos políticos não são absolutos, por outros as restrições não podem ser feitas de forma discricionária, devem estar em conformidade com o direito internacional. As mudanças eleitorais para perpetuação do poder não podem ocorrer visando minar a oposição, sendo esta um corolário democrático. O estado possui uma obrigação positiva de adotar medidas e condutas para cumprir a obrigação de garantir um sistema eleitoral em que as eleições sejam periódicas, autenticas e plurais, através do sufrágio universal e secreto.
Foto: Corte Interamericana de Derechos Humanos.
A finalidade da restrição dos direitos políticos, mais especificamente a proibição da reeleição indefinida que constitui uma restrição ao direito de ser eleito, está em conformidade com as exigências do artigo 32 da CADH – bem comum, como uma maior vigência dos valores democráticos - que seriam evitar a perpetuação de um indivíduo no poder, alternância no poder, pluralismo político, fortalecimento do sistema de freios e contrapesos da separação de poderes, sendo portanto uma restrição idônea.
As restrições à reeleição indefinida, portanto, foram entendidas como um sacrifício menor exigido dos candidatos e dos votantes, do que os riscos e violações de direitos que poderiam advir dos autoritarismos.
A reeleição indefinida teria como efeito nocivo o favorecimento de ideologias e setores sociais hegemônicos, incorrendo na violação da obrigação dos lesados de respeitar a liberdade de expressão, sobretudo de minorias e oposições. Para além haveria sempre a possibilidade e utilização dos recursos públicos para, de forma direta ou indireta favorecer a campanha do presidente em exercício, que já ocupa posição privilegiada, podendo designar membros de ouros poderes.
Em resumo, a Corte IDH decidiu que:
1) A reeleição presidencial indefinida não constitui um direito autônomo protegido pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos ou pelo corpus iuris do Direito Internacional dos Direitos Humanos;
2) A proibição da reeleição por tempo indeterminado é compatível com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e a Carta Democrática Interamericana;
3) A permissão da reeleição presidencial por tempo indeterminado é contrária aos princípios de uma democracia representativa e, portanto, às obrigações estabelecidas na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem.
Em um balanço preliminar, verifica-se que os dois primeiros tópicos não despertaram tanta controvérsia dentro da Corte IDH. Por outro lado, a terceira conclusão despertou duras críticas dos Magistrados Pazmiño Freire e Raul Zaffaroni.
É interessante destacar a profunda crítica realizada pelo voto divergente do magistrado Raul Zaffaroni. De um lado, que reeleições sucessivas não necessariamente violam per se direitos humanos de concorrentes ou fraudes, exemplificando com a eleição pela quarta vez do Roosevelt que só não assumiu por ter falecido. Por outro, afirmou que não caberia uma interpretação extensiva ou analógica para extrair a vedação indefinida do art. 23 da CADH, porque isso significaria a uma leitura etnocêntrica da Corte IDH intervindo indevidamente na soberania estatal.
Foto: Open Democracy/CC BY-SA 2.0
Comparando com o memorial apresentado pela Clínica IDH da UFRJ, observou-se a partir de um estudo de direito comparado entre os sistemas internacionais de proteção de direitos humanos e dos países sob a jurisdição que, de fato, tal direito autônomo à reeleição inexiste e que as proibições ou vedações, desde que introduzidas pelas leis ou Constituições, de forma proporcional e respeitando as finalidades da sociedade democrática.
O ponto, porém, mais interessante da crítica que pode ser realizada, por meio do contraste do memorial da Clínica IDH/UFRJ, é que, ainda que se reconheça a vedação à reeleição como decorrente da democracia representativa, essa análise meramente normativa é insuficiente para que o sistema interamericano possa funcionar efetivamente como uma agência de defesa de uma democracia militante e/ou assumir um papel efetiva anticíclica das crises democráticas ou erosão das bases deliberativas contra posturas autoritárias.
É preciso realizar uma análise empírica se as eleições foram efetivamente autênticas antes, durante e depois. Isso significa realizar um escrutínio estrito da autenticidade das eleições, nos termos do art. 23 da CADH, por meio de controle de convencionalidade concentrado e difuso sob bases do que aconteceu de fato caso a caso, país a país, quando se estiver diante dessa questão sensível que é a possiblidade de reeleição.
Em linhas gerais, diagnosticou-se que cerca de 15 Estados, sob a jurisdição da Corte IDH, vedam, por modelos diferentes, a reeleição indefinida por meio de suas Constituições. Os modelos de reeleição indefinida geralmente resultam de reformas constitucionais por líderes carismáticos e autoritários. Ainda assim, essa pressuposição apoiada na literatura de ciência política comparada requer uma análise fática e uma atuação cautelosa do sistema interamericano no diálogo com os Estados latino-americanos, de modo a realizar uma sintonia fina entre soberania e o respeito à democracia representativa e as eleições autênticas, almejadas pela CADH e pela Carta Democrática Interamericana.
* Siddharta Legale é Professor adjunto de Direito Constitucional da UFRJ. Professor do Mestrado do PPGDC-UFF. Coordenador da Clínica IDH-UFRJ do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos da UFRJ. Advogado. Maria Carolina de Souza Ribeiro de Sá é Membro da Clínica IDH/ NIDH - UFRJ. Mestranda em Direito Internacional pela UERJ. Bacharela pela UFRJ. Advogada.
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