*Por João Sallani.
Um país, dois governos, inúmeros interesses geopolíticos em jogo. Quem de fato governa a Venezuela? Quem responde pelo Estado Venezuelano? Pode qualquer dos governos convocar intervenção estrangeira?
Foto: Federico Parra/AFP
Um dos acontecimentos políticos mais relevantes de 2019 foi, sem dúvida, a proclamação de Juan Guaidó como Presidente da República Bolivariana da Venezuela, em desafio ao governo de Nicolás Maduro.
Munido de uma porção de declarações internacionais prontas a serem quase que imediatamente disparadas quando do anúncio de sua ascensão à liderança do Estado Venezuelano, o plano de Juan Guaidó foi construído a partir do sagaz uso de um instrumento jurídico internacional, o reconhecimento internacional de governos, para afirmação de sua legitimidade política interna no território Venezuelano.
Em questão de minutos, a declaração de 23 de janeiro, respaldada pela Assembleia Nacional da Venezuela, órgão parlamentar despido formalmente de seus poderes desde 2016 por decisão do Tribunal Superior de Justiça venezuelano, seria reconhecida pelo governo dos Estados Unidos da América, que afirmaria reconhecer Juan Guaidó como “presidente interino da Venezuela”.
Em algumas horas, onze dos quatorze países integrantes do Grupo de Lima apresentariam declaração conjunta de reconhecimento de Guaidó como “presidente encarregado da República Bolivariana da Venezuela, em atenção às normas constitucionais e ante à ilegitimidade do regime de Nicolás Maduro”.
Ao final do mês de fevereiro, dezenas de Estados, em sua maioria afeitos a laços tradicionalmente ocidentais, reconheceriam Juan Guaidó como presidente interino da República Bolivariana da Venezuela.
Por melhor orquestrada que tenha sido a pretensão política da blitzkrieg de reconhecimento internacional empreendida por Juan Guaidó, no entanto, o panorama político internacional ao início de 2020 não indica algo senão a resiliência do regime de Nicolás Maduro, que encontrou firme amparo em seus aliados tradicionalmente opostos ao ativismo ocidental.
Se, de um lado, Donald Trump não hesitou ao sugerir repetidamente a possibilidade de intervenção no país sul-americano em defesa do governo de Juan Guaidó, de outro, a Rússia de Vladmir Putin postou-se firme em amparo ao regime de Nicolás Maduro.
Em um de seus pontos mais críticos, a crise em 2019 contou com denúncias de lobbies de controversas figuras da indústria bélica em Washington em prol do envio de private contractors ao país sul-americano para deposição do governo de Nicolás Maduro, ao mesmo tempo em que agentes ligados ao governo de Vladmir Putin já se encontravam em solo venezuelano prestando serviços de segurança a Maduro – ainda que o conhecimento de tal operação tenha sido formalmente negado pelo governo russo.
Na prática, no entanto, até o fim de 2019 nenhuma ação militar internacional foi efetivamente empreendida em solo venezuelano.
Foto: Diana Sanchez/AFP
Com o tempo jogando a favor do governo de Nicolás Maduro, que a cada dia passava a demonstrar crescente e desmoralizante resiliência, aliados de Guaidó incluíram em pauta da Assembleia Nacional Venezuelana, em 07 de maio de 2019, proposta de reintegração do Estado Venezuelano ao Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), firmado em 1948, que prevê um sistema de defesa coletiva entre seus membros, e do qual a Venezuela se retirara em 2013, ainda sob o governo de Hugo Chávez.
A reintegração da Venezuela ao TIAR tenderia, pretensamente, a fornecer maior respaldo a eventual convocação de intervenção estrangeira em território venezuelano pelo governo de Juan Guaidó contra hipotética agressão estrangeira, sob a tutela da legítima-defesa coletiva – instrumento expressamente previsto e aceito pelo Direito Internacional.
Contudo, poderia o governo de Juan Guaidó tomar qualquer atitude internacional nesse sentido? Em uma realidade em que coexistem dois governos antagônicos, qual destes seria detentor de legitimidade para convocação de intervenção estrangeira em solo venezuelano? E se ambos o fizessem?
Para que se possa responder tais questionamentos, a questão venezuelana exige abordagem em duas frentes. Em primeiro lugar, há de se determinar quais condições conferem a um governo legitimidade para portar-se enquanto tal perante a comunidade internacional. Em sequência, quais circunstâncias permitiriam a convocação de intervenção estrangeira em solo venezuelano.
O reconhecimento internacional de governos – entre a política e o Direito
A partir de 2011, com a deflagração da Guerra Civil Líbia, líderes globais parecem ter redescoberto o reconhecimento internacional como instrumento de afirmação de seus projetos políticos.
Tradicionalmente, pelo reconhecimento internacional um Estado admite a efetividade de um governo surgido em outro Estado em condições políticas controversas ou atípicas, em geral não previstas pelo Direito.
Na prática, no entanto, conforme afirma Stefan Talmon, o reconhecimento de governos é quase sempre um ato mais ligado à política do que ao Direito, sendo utilizado frequentemente como arma de guerra psicológica – como amplamente atestado na estratégia de busca por reconhecimento encampada por Juan Guaidó.
Por tal razão, diferentes transições governamentais levaram historicamente a diferentes reações e considerações acerca da licitude e dos requisitos para o reconhecimento internacional de governos.
Contudo, seria possível que o reconhecimento internacional, por si só, conferisse legitimidade e tornasse um governo capaz de representar seu Estado internacionalmente? Caso aceita tal hipótese, não seria a autodeterminação dos povos subjugada em prol de determinações externas ao próprio país, tornando o estabelecimento de governos sujeito ao implícito aval de um pequeno grupo de poderosos sujeitos internacionais?
Tal é o cerne da discussão quanto à natureza e aos efeitos do reconhecimento internacional de governos, que toma emprestado termos da teoria do reconhecimento internacional de Estados.
De um lado, acadêmicos e políticos partidários da chamada “teoria constitutiva” afirmam que um Estado só adquire personalidade jurídica quando assim reconhecido aos olhos de seus pares da comunidade internacional. Isto é, o reconhecimento internacional de um Estado seria o elemento a partir do qual seria constituída sua personalidade internacional. Logo, a existência de um Estado seria uma questão precipuamente definida pelo Direito Internacional.
Do outro, adeptos da “teoria declaratória” creem que a personalidade jurídica de um Estado se inicia com a autodeclaração de um Estado enquanto tal, de forma que o reconhecimento funcionaria meramente como confirmação dos outros Estados acerca da condição soberana do recém-surgido.
Nenhuma dessas teorias, sozinha, no entanto, é capaz de fornecer trilha pacífica à implementação do Direito Internacional do reconhecimento internacional de governos, uma vez que a aplicação isolada de tais conceitos poderia criar situações anômalas de governos factualmente existentes, mas ignorados pelo Direito, ou ainda governos juridicamente existentes, mas factualmente inócuos.
A jurisprudência internacional, ao enfrentar tais impasses, em especial a partir da arbitragem do Caso Tinoco, de 1923, tende a considerar necessária uma amálgama entre as correntes declaratória e constitutiva.
Hersch Lauterpacht, afirmaria, em 1945, que “o Direito Internacional, como qualquer outro sistema, não pode desconsiderar fatos e deve neles se basear, conquanto não sejam contrários ao Direito Internacional”.
Em termos práticos, ainda no mesmo sentido, Malcolm Shaw escreve que “onde o grau de autoridade exercida por um novo governo for incerto, o reconhecimento por outros Estados se tornará um fator vital” para o estabelecimento de sua legitimidade.
Entende-se que reconhecimento internacional pode ser fator importantíssimo para a determinação de legitimidade de um governo, desde que acompanhado pelo mais relevante dos critérios para seu aperfeiçoamento: a constatação da efetividade do governo sobre seu território e seu aparato estatal.
Em outras palavras, para que um governo seja licitamente reconhecido, entende-se necessária a constatação do exercício de controle efetivo do território por ele governado ou, ao menos, sobre a maior parte relevante do Estado, bem como a tendência à permanência em tal posição.
Por “controle efetivo” entende-se o controle do território, o poder sobre a máquina estatal e, em geral, a posse da capital do Estado sobre o qual o governo apresenta pretensão de representação.
Em um sistema internacional voluntarista, no qual os Estados produzem as normas a eles próprios aplicáveis, a determinação de critérios objetivos para a aferição da efetividade de um governo busca diminuir a amplitude da discricionariedade política e de eventual interferência internacional em assuntos internos de um Estado.
A prática política internacional, no entanto, confere à aplicação do Direito maiores nuances.
Foto: Yuri Cortez/AFP
Governos de facto e de jure – a flexibilização do reconhecimento internacional, descartada no caso da Venezuela
Ao contrário dos Estados, propriamente instituições jurídicas e sujeitos internacionais, os governos podem ser identificados em estágios menos claros de sua constituição aos olhos do Direito Internacional.
Tradicionalmente, a consideração de legitimidade de um governo só pode ser internamente determinada por seu próprio povo e por suas instituições, considerando-se de jure o governo regularmente investido de poderes internos para representação internacional.
Paralelamente, considera-se de facto os governos que exercem controle efetivo de parte ou da totalidade do território e do aparato estatal, embora ainda não investidos formalmente de legitimidade interna por meios institucionalmente dispostos a tal atribuição.
Juridicamente, o Institut de Droit International afirma que o reconhecimento de jure de um governo seria uma modalidade definitiva e completa, ao passo que o reconhecimento de facto limitaria o reconhecedor a vinculação mitigada de suas relações jurídicas com o reconhecido.
Ao reconhecer um governo de facto, o Estado reconhecedor sugere a constatação do exercício de controle efetivo por algum grupo político sobre o território de um país, ou parte dele, embora com algum grau de incerteza quanto à capacidade de o governo reconhecido apresentar-se como autoridade plena de seu Estado.
É por tal razão que, em casos passados, como nas guerras civis da Líbia e da Síria, diversos Estados, sobretudo europeus, apresentaram extrema cautela linguística e diplomática ao reconhecer grupos de oposição como legítimos representantes dos povos daqueles países.
No caso da Venezuela, no entanto, a maior parte dos Estados ofereceu reconhecimento de jure a Juan Guaidó ao endereçarem-lhe considerações como efetivo presidente interino ou encarregado da República Bolivariana da Venezuela.
Ao reconhecerem em caráter de jure o governo de Juan Guaidó, os Estados reconhecedores se dispuseram não apenas a estabelecer relações diplomáticas com um governo de efetividade dúbia, mas também a oferecer-lhe acesso a bens do Estado Venezuelano alocados além de suas fronteiras. A certa altura, o Banco da Inglaterra chegou a recusar a retirada de US$ 1,2 bilhões em ouro depositados em suas reservas solicitada pelo governo de Nicolás Maduro, uma vez que o Reino Unido havia reconhecido Juan Guaidó como legítimo presidente da República Bolivariana da Venezuela.
Àquele ponto, tal qual ao início de 2020, ao governo de Juan Guaidó ainda faltava a demonstração de sua efetividade sobre o território e o aparato estatal venezuelano.
Conforme escreve Lauterpacht, enquanto o governo previamente estabelecido em um Estado oferecer resistência que não seja ostensivamente desesperançada ou puramente simbólica, o reconhecimento de jure de um partido revolucionário como governo constitui reconhecimento prematuro que pode ser tomado como um ato de intervenção contrário ao direito internacional.
Torna-se clara, portanto, aos olhos do Direito Internacional, a inadequação do prematuro reconhecimento de jure do governo de Juan Guaidó por grande parte da comunidade internacional.
Fato é que declarações de reconhecimento do governo Guaidó foram oficialmente proferidas, tendo relações diplomáticas sido efetivamente empreendidas em foros internacionais, culminando na reintegração da Venezuela ao Tratado Interamericano de Assistência Recíproca.
Diante de tal cenário, há de ser levantado o seguinte questionamento: poderia um governo internacionalmente reconhecido, mas sem efetivo controle interno, solicitar ou autorizar intervenção externa para a resolução da crise venezuelana, ou, de outro lado, poderia um governo internacionalmente repreendido por seus traços autoritários, mas internamente detentor de controle efetivo, fazê-lo?
Intervenção estrangeira na Venezuela? – o que diz o Direito Internacional
O primeiro hipotético cenário de intervenção estrangeira na Venezuela diz respeito ao momento em que assistência externa fosse solicitada para resolução da crise por algum dos governos instalados no país.
Embora o Direito Internacional disponha como norma jus cogens (categoria de normas superiores às demais, somente derrogáveis por outras de mesma natureza), norteadora das relações internacionais, a proibição do uso da força, seria possível que o governo do Estado Venezuelano solicitasse ação militar externa em seu território, a partir de declaração de consentimento para tanto.
Conforme explicitado pelo artigo 20 dos Artigos sobre a Responsabilidade Internacional dos Estados por Atos Internacionalmente Ilícitos (ARSIWA), o consentimento é circunstância excludente de ilicitude de um ato internacional, desde que este se limite aos termos e limites predeterminados pelo Estado receptor.
Por presumir-se lícita eventual ação estrangeira em solo venezuelano quando em acordo com de declaração de consentimento para tal pelo governo encarregado da representação do Estado Venezuelano, o ponto nevrálgico a guiar a discussão acerca de tal intervenção é a validade dos atos dos governos apresentados como representantes do Estado Venezuelano.
Para resolução de tal impasse, devemos aplicar os fatos da crise venezuelana ao teste da efetividade sugerido por Hersch Lauterpacht.
As informações disponíveis quanto à realidade da organização do Estado Venezuelano até o início de 2020 fazem necessário supor que somente o governo de Nicolás Maduro dispõe de efetivo controle do território e do aparato estatal do país, não tendo o governo de Juan Guaidó sido capaz de transformar sua legitimidade internacional em autoridade interna.
Os repetidos fracassos dos empreendimentos de Juan Guaidó para demonstração de seu poder e de sua efetividade interna sugerem somente que seu governo não resiste ao teste da efetividade para determinação de sua condição enquanto representante internacional do Estado Venezuelano, apesar do amplo reconhecimento internacional a ele conferido.
Aos olhos do Direito Internacional, enquanto o conflito venezuelano não configurar uma guerra civil, eventual intervenção externa poderá ser convocada licitamente pelo governo efetivo do país.
Logo, ao início de 2020 somente o governo de Nicolás Maduro demonstra-se detentor dos critérios de efetividade exigidos para licitamente proferir o consentimento do Estado Venezuelano para eventual intervenção externa em sua crise política.
Daqui em diante: nenhuma perspectiva de melhora para o povo venezuelano
Conforme escreve Christine Gray, por mais que seja aceita em teoria a ideia de que um governo efetivo tem o direito de convocar intervenção de terceiros em seu território para o apaziguamento de convulsões ainda inferiores à configuração de um cenário de guerra civil – em detrimento de qualquer direito do tipo à oposição –, sua aplicação prática não é nada simples.
O Direito Internacional contemporâneo segue linhas historicamente voluntaristas. Suas soluções buscam, sobretudo, a manutenção da paz, da segurança, e da estabilidade internacionais observadas por lentes macropolíticas – o que pode significar que talvez a melhor solução global de uma crise local, aos olhos de um sistema internacional baseado em arranjos de segurança coletiva, não necessariamente corresponda às necessidades humanas a curto prazo daqueles cercados por realidades de escassez e opressão.
Dos anos 1990 ao início da década de 2010, as doutrinas intervencionistas, apresentadas sob véu humanitário, pareceram indicar um caminho de ativa busca pela implementação dos valores liberais ocidentais forjados ao longo da segunda metade do Século XX.
Os controversos resultados de tais empreendimentos, no entanto, sobretudo em sequência às ações no Iraque e na Líbia, talvez influenciem a aparente alteração do centro de gravidade do sistema internacional contemporâneo, que migra de volta à priorização da soberania como elemento primordial de sua constituição – ponto tradicionalmente priorizado pelo Direito Internacional clássico.
Afirmar o governo Nicolás Maduro, repetidamente acusado de arroubos autoritários, efetivo representante do Estado Venezuelano e único agente internacional capaz de convocar intervenção estrangeira por seu país não implica considerá-lo o mais adequado às aspirações e necessidades do povo venezuelano.
Se, de um lado, o mero controle efetivo como critério para determinação da capacidade de convocação de intervenção estrangeira pode levar a abusos de regimes autocráticos alinhados a grandes potências dispostas a sustentá-los no poder, de outro, a desconsideração casuística da longa construção do Direito Internacional do reconhecimento de governos, por melhor intencionada que possa se apresentar, pode vir a abrir perigosíssimo precedente ofensivo ao princípio da autodeterminação dos povos.
Se difíceis as considerações meritórias quanto às partes envolvidas na crise venezuelana, mais complexas ainda se apresentam as escolhas de meios a serem empregados para resolução do impasse político no país.
Na disputa entre a força, o direito e a política, a única certeza é que nenhuma perspectiva otimista se apresenta no horizonte do povo venezuelano.
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Este artigo constitui a primeira parte de uma série de análises e publicações d’O Cosmopolita sobre a crise venezuelana. Ao longo de 2020 procuraremos oferecer uma abordagem rigorosa em linguagem acessível, de forma a contribuir para a desmistificação e o enriquecimento do debate público em relação ao tema.
Bibliografia básica:
GRAY, Christine D. International Law and the Use of Force. 3rd edition. Oxford: Oxford University Press, 2008; Institut de Droit International. Resolutions Concerning the Recognition of New States and New Governments, adopted at Brussels, 1936; LAUTERPACHT, Hersch. Recognition of Governments. Columbia Law Review, Vol. XLV, No. 6, November, 1945. Nova York: Columbia Law Review Association, 1945; PETERSON, M. J. Recognition of Governments: Legal Doctrine and State Practice. Suffolk: MacMillan Press Ltd., 10ª edição, 2006; SHAW, Malcolm. International Law. Cambridge: Cambridge University Press. 6ª edição, 2008; TALMON, Stefan. Recognition of Opposition Groups as the Legitimate Representative of a People. Chinese Journal of International Law, Volume 12, Issue 2. Oxford: Oxford University Press, 2013.
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