*Por Fabrízio Jacobucci
Nos últimos meses, o mundo foi surpreendido pelas mais violentas notícias vindas de Moçambique, país localizado no sudoeste da África, com população aproximada de 27 milhões: mais de 2.500 pessoas mortas, incluindo crianças cruelmente decapitadas, e aproximadamente 30 mil pessoas forçadamente deslocadas de suas casas. Estes atos são decorrência de um conflito que se estende na região desde 2017 e envolve uma série de fatores econômicos, políticos, religiosos e sociais na província de Cabo Delgado, na fronteira norte do país com a Tanzânia, contabilizando aproximadamente 700 mil pessoas deslocadas.
O que está acontecendo em Moçambique e o que explica a escalada de tensão na região verificada neste ano?
Foto: Emidio Jozine / Reuters
O conflito: origens e combatentes
A crise humanitária que toma conta do norte do território de Moçambique é decorrente da ação violenta da milícia local denominada al-Shabab, que opera na região desde 2017 às sombras do alto nível de pobreza e descontentamento generalizado da população em relação ao governo central. Especificamente, a província de Cabo Delgado é ao mesmo tempo palco dos massacres liderados pelo grupo e sede de um dos mais valiosos projetos de gás natural do mundo. A combinação destes dois elementos dá forma ao conflito na região.
Moçambique é uma república unitária semipresidencialista, significando que as províncias não detêm grande autonomia legislativa, executiva e orçamentária, dependendo das decisões tomadas na capital. A realidade do país mostra que as províncias mais afastadas do governo central tendem a ser mais esquecidas e abandonadas em termos de investimento e recursos, abrindo margem para que organizações paramilitares estabeleçam seu controle.
O grupo de insurgentes al-Shabab (“os jovens”, em árabe) se identifica como fiel parceiro do grupo Estado Islâmico desde 2019, chegando a divulgar vídeos em 2020 retratando a articulação da agenda jihadista na região. Vale a ressalva de que há outro grupo com o mesmo nome na Somália, ligado à organização Al-Qaeda, mas não há qualquer ligação deste com o movimento moçambicano. Ao contrário, as ações apoiadas pelo Estado Islâmico são constituídas de diferentes elementos, como se analisará.
Foto: BBC News
Assim como em outras localidades onde insurgentes ocupam papel de destaque, o grupo moçambicano nasceu a partir do sentimento de revolta da população local, que se sentia marginalizada e descriminada por seu próprio governo. Durante o último ano, o grupo se fortaleceu e ampliou sua presença para diversas partes do território de Cabo Delgado – província localizada a mais de 1.600 km ao norte da capital Maputo.
A província é sede do maior e mais rico projeto de gás natural liquefeito (LNG, em inglês) da África. Operada pela multinacional francesa Total, o projeto é estimado em 60 bilhões de dólares, com investimentos de diversos países da Europa. A população local alega que viu pouco ou nada desta riqueza e investimento em sua comunidade - de fato, os eventos de março de 2021 ocorreram em Palma, na localidade mais próxima que os ataques insurgentes já chegaram do plano multibilionário.
A escalada de tensões dos últimos meses
Em 24 de março de 2021, os insurgentes atacaram a cidade de Palma (localizada ao norte de Pemba, capital da província de Cabo Delgado) por três rotas diferentes, começando por seu centro comercial, destruindo bancos, lojas e órgãos públicos. Os ataques pareciam ter como objetivo direto os civis da região – que debandaram em retirada para os arredores de Palma. Muitos fugiram desesperadamente para a praia e participaram de uma das mais dramáticas cenas do incidente: embarcações que rumavam ao Canal de Moçambique atracaram na costa e resgataram várias das vidas que ali estavam.
O ataque orquestrado pelo movimento jihadista parecia, num primeiro momento, estar em descontrole e desarmonia em razão da falta de uniformes e pobreza de vestimenta, mas logo se provou expressivo pelo fortíssimo armamento empregado na ação. Aparentemente, os únicos elos de ligação entre os insurgentes foram a utilização da mesma bandana vermelha na testa e o sedento desejo pela destruição. Alguns dias depois, o Estado Islâmico enfim admitiu a responsabilidade pelos ataques, que forçaram a migração de milhares de pessoas e deixaram outras dezenas mortas, incluindo estrangeiros.
O grupo insurgente al-Shabab ganhou forma em meio ao caldeirão de turbulências sociais, políticas, religiosas e econômicas que envolvem a região de Cabo Delgado. Em outubro de 2020, o grupo também liderou ataques a outras cidades na província , que levariam a uma série de eventos responsáveis por aumentar o pânico e a tensão na região. A partir daí, cidades seriam tomadas (em meio à ineficiente resistência oferecida pelo exército moçambicano) e o grupo ganharia ainda maior protagonismo na campanha que culminaria no ataque deste ano.
Vale lembrar que o presidente moçambicano, Felipe Nyusi, buscou aproximações estratégicas e (de certa forma) flexíveis com o grupo insurgente, oferecendo até mesmo anistia aos indivíduos pelos crimes cometidos. Porém, fica evidente que as forças armadas não comungam da mesma visão que o chefe do Executivo, uma vez que continuaram conduzindo diversas violações de direitos humanos não somente em relação ao grupo insurgente, mas também aos civis que são diretamente afetados pela tensão.
O presidente Nyusi tem citado em diversos pronunciamentos e entrevistas a repulsa ao terrorismo empregado pelo grupo de insurgentes, clamando auxílio internacional para a questão, criticando aqueles que afirmam que o governo de Moçambique tem declinado apoio na luta contra a violência armada, reiterando que “o país tem a consciência de que sozinho não poderá vencer o terrorismo, por se tratar de um fenômeno global”. Além disso, Nyusi também se encontrou com o presidente da França Emmanuel Macron e com presidente do grupo Total em Paris, tamanho protagonismo que as obras do projeto de gás natural detêm para a economia moçambicana.
Foto: Presidente Filipe Nyusi em visita à província de Cabo Delgado. Foto: Zambeze.info
A escalada dos eventos na região nos primeiros meses de 2021 se deu em razão do aumento da pobreza e da falta de empregos, fatores realçados pela pandemia de covid-19, mas não limitados a estes: tráfico de drogas, disputas entre elites locais e uma crescente (e preocupante) radicalização de jovens também estão entre os motivos.
Tentativas de impedir o avanço do grupo insurgente
Haja vista a necessidade de conter o progresso do grupo rebelde al-Shabab no país e a dificuldade (ou impossibilidade) de contar somente com o exército nacional, o auxílio internacional se tornou a resposta inevitável. Em Moçambique, a fragilidade das forças de segurança encontrou a complacência das políticas públicas, culminando em um tratamento aquém do necessário.
Em setembro de 2020, o governo de Moçambique contratou mais de 200 conselheiros militares do Grupo Wagner, empresa russa composta majoritariamente por ex-soldados das Forças Especiais da Rússia que atuam com um singelo apoio da Síria, Líbia e, evidentemente, do Kremlin. Porém, esta estratégia não parece ter funcionado: depois de empregar táticas envolvendo drones e análise crítica de dados, o grupo de especialistas foi alvo de uma série de emboscadas e contabilizou mais de dez mortes relatadas por vários conflitos em áreas de florestas densas.
Os insurgentes ligados ao Estado Islâmico detêm uma notável habilidade de combater em áreas edificadas, o que também se mostrou como um desafio para as forças moçambicanas. Segundo especialistas em segurança, o sucesso de uma ação de defesa em conflitos urbanos está na estratégia tática de utilizar força aérea, armas precisas e veículos armados – essenciais para a contenção das forças do EI no Iraque e Síria.
Alguns países enviaram auxílio ao governo de Moçambique a fim de compor o corpo militar de resposta ao conflito: os Estados Unidos enviaram um pequeno destacamento das forças especiais do exército americano; Portugal enviou um grupo de treinadores militares; França tem monitorado e reportado a situação a partir de Mayotte, seu departamento ultramarino localizado entre Madagascar e Moçambique; e a África do Sul também tem acompanhado as questões com grande atenção. Embora seja uma ajuda bem vinda, há o risco de que um envolvimento militar maior por parte das potencias ocidentais possa gerar ainda mais conflito e tensão política na região.
A preocupação é ainda maior pela crueldade e brutalidade dos atos praticados pelos grupos ligados ao Estado Islâmico em Moçambique. Diferentemente dos grupos apoiados pela rede Al-Qaeda (como o grupo somaliano homônimo) que oferecem, apesar dos assassinatos em massa, algum esforço para angariar suporte e auxílio local, os insurgentes da rede do EI conduzem ataques absolutamente sanguinários em comunidades locais, sem diferenciação alguma entre civis. Nas ações dos primeiros meses de 2021, há relatos de decapitações de crianças na frente de seus pais.
Contudo, aqui há um ponto importante que pode servir de lição de casos correlatos no passado, onde grupos insurgentes não buscavam apoio da comunidade local. Em 2007, no Iraque, o Al-Qaeda cometeu o equívoco de aterrorizar a população sunita na província de Anbar através da prática de crueldades para punições corriqueiras (como cortar os dedos de homens que fumam), ocasionando que a colisão pró-EUA pudesse persuadir comunidades locais a se levantarem contra o grupo – ato que ficou conhecido como “O Despertar” (The Awakening, em inglês).
Foto: OIM / Sandra Black
Embora a conduta recheada de crueldade dissemine a temível reputação do grupo e a assertiva de invencibilidade – reações buscadas pelos líderes insurgentes – também este espectro pode vir a sugerir levantes sociais organizados na espécie de “contra insurgência”. A capacitação dos militares, a readequação da estratégia tática e o devido armamento dos combatentes do exército de Moçambique (com auxílio estrangeiro ou não) podem promover um avanço na questão e impor barreiras ao grupo de insurgentes num primeiro momento, porém, não deve ser o suficiente para resolver o problema a longo prazo: se não houver investimento do governo nas comunidades locais (educação, trabalho, saúde), corre-se o risco de que a população de Cabo Delgado ainda se sinta abonada e esquecida pelo Estado, terreno fértil para a insurgência.
Neste sentido, o grupo de insurgentes jihadista de Moçambique parece buscar a construção de seu próprio auto declarado califado na província de Cabo Delgado, em ação similar à do Estado Islâmico na cidade iraquiana de Mosul, em 2014 – que somente teve fim após 5 anos de ocupação e a medida extrema de 83 Estados que se engajaram em coalizão. A preocupação com o escalonamento de tensões na região não poderia ser mais justificada: o “califado moçambicano” de Cabo Delgado já nasceria com o controle do projeto de gás mais valioso do continente africano.
O fluxo migratório a repentina diáspora moçambicana
Antes da eclosão dos conflitos, a cidade de Palma era considerada segura e um local de refúgio para outros deslocados internos de Moçambique. Vale lembrar que o país já era acometido de outras circunstâncias políticas, sociais, econômicas e religiosas que também geravam um considerável número de migrações internas, especialmente sentidas em um Estado sem estrutura para a manutenção da dignidade e direitos básicos dos indivíduos.
De acordo com os dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), em 2017 (ano de início da insurgência em Cabo Delgado), Moçambique contabilizava mais de 22 mil pessoas deslocadas de maneira forçada – sendo 15 mil moçambicanos deslocados dentro do território do país, e o restante moçambicanos que buscaram refúgio em outros países da região (especialmente Malawi, Zimbábue e África do Sul). Neste mesmo ano, Moçambique também contabilizou mais de 18 mil pessoas solicitantes de asilo ou refúgio em seu território (especialmente oriundos do Congo, Burundi, Ruanda e Somália).
Importante: é matéria de direito internacional a tratativa daqueles indivíduos que migram internamente?
Segundo os Princípios Gerais sobre Deslocamento Interno, documento adotado pela Organização das Nações Unidas, os denominados internally displaced persons, ou IDP, são aquelas pessoas forçadas a fugir de suas casas ou local de residência habitual, em particular como resultado ou para evitar os efeitos de um conflito armado, situações de violência generalizada, violações de direitos humanos ou por desastres naturais ou humanos, mas que não cruzaram a fronteira internacional de um Estado.
Os deslocados internos fazem parte do gênero “migrantes” e recebem proteção também em razão da internacionalização da proteção dos direitos humanos. Especificamente para o caso em pauta, há um elemento imprescindível: ainda que a Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 não tenha mencionado os deslocados internos, estes são protegidos pelo direito internacional contemporâneo pela Convenção da União Africana sobre a Proteção e Assistência às Pessoas Deslocadas Internamente na África (Convenção de Kampala de 2012).
É importante lembrar que a Assembleia Geral da ONU incumbiu ao Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) o mandato de proteger outras pessoas de preocupação para além dos refugiados, como os deslocados internos (UNGA Res 2958 XXVII, 1972), que também fazem parte do escopo de proteção da Organização Internacional para as Migrações (OIM).
Portanto, as pessoas deslocadas dentro de seu próprio país também recebem proteção do direito internacional.
De acordo com os dados da ACNUR, em dezembro de 2020 mais de 300 mil pessoas eram considerados deslocados internos em Moçambique. Com a escalada de tensões nos primeiros meses de 2021, este registro foi diretamente impactado e os números se elevaram em grande escala.
Enquanto os números da devastadora crise humanitária em Cabo Delgado não param de subir, as províncias moçambicanas vizinhas começam a ser diretamente afetadas: grande parte da população deslocada rumou oeste para a província de Niassa, enquanto outra parcela rumou sul para a província de Nampula.
O Programa Alimentar Mundial (World Food Programme, em inglês), agência humanitária de auxílio alimentar da Organização das Nações Unidas, contabiliza que mais de 3.300 pessoas já se deslocaram para outras províncias de Moçambique. De acordo com o programa, a prioridade é prover assistência alimentar básica, vestes e abrigo para os deslocados que vêm, muitas vezes, de viagens que duraram dias sem água e comida, especialmente os que migram por barcos.
A agência também levanta um alerta em relação aos fundos para a campanha, uma vez que precisa de ao menos 10,5 milhões de dólares ao mês para manter a assistência aos deslocados internos. A incapacidade de angariar fundos necessários para as ações pode atingir não somente o grupo de migrantes, mas uma população estimada de 950 mil pessoas em Cabo Delgado e nas províncias vizinhas que sofrem de insegurança alimentar.
Foto: ACNUR / Eduardo Burmeister
Em maio de 2021, o porta-voz do ACNUR Boris Cheshirkov fez um apelo para que moçambicanos deslocados possam ter acesso a proteção internacional na Tanzânia, país vizinho ao norte, em razão do intenso contra fluxo migratório: com a escalada das tensões em Cabo Delgado, moçambicanos migraram para a Tanzânia (caminhando por dias até o rio Rovuma, cruzando-o de barco) mas foram imediatamente devolvidos pelas autoridades, incluindo idosos, mulheres e crianças pequenas. Aqueles que não puderam fornecer provas ou documentos que comprovem a nacionalidade tanzaniana foram devolvidas ao território de Moçambique em um ponto de fronteira diferente daquele utilizado para entrar na Tanzânia, dificultando ainda mais o reestabelecimento das famílias deslocadas.
A rede de agências e organizações humanitárias na região – lideradas pelo ACNUR – já disponibilizou proteção e assistência básica a 50 mil pessoas só no norte de Moçambique em 2020, e planeja auxiliar mais 250 mil anos até o final de 2021. Vale lembrar que o ACNUR calcula que mais de 700 mil pessoas foram deslocadas à força desde o início do conflito em Cabo Delgado, em 2017.
É evidente a preocupação da comunidade internacional de que este número aumente ainda mais com a baixa efetividade das ações do governo moçambicano em conter a escalada de tensões, provocada exclusivamente pelas ações do grupo insurgente apoiado pelo Estado Islâmico. É também evidente que a situação exige resposta urgente a fim de conter mais mortes e deslocamento forçado de pessoas, sob pena da questão atingir uma irreversibilidade trágica.
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Referências:
CHETAIL, Vincent. International Migration Law. Oxford: Oxford University Press, 2019.
Inconsolable tears as ‘huge’ crisis unfolding in Mozambique. Al-Jazeera. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2021/4/2/inconsolable-tears-as-huge-crisis-unfolding-in-mozambique; Mozambique: Why IS is so hard to defeat in Mozambique. BBC News. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-africa-56597861; Mozambique insurgency: Children beheaded, aid agency reports. BBC News. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-africa-56411157; ISIS Claims Responsibility for Mozambique Attack. The New York Times. Disponível em: https://www.nytimes.com/2021/03/30/world/africa/isis-mozambique-attack.html?searchResultPosition=1.
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