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A produção de drogas em regiões de conflito: o ópio no Afeganistão

*Por Maria Gabriela Vieira.

Foto: US Marine Corps/released.


Para Adalberto Santana , pesquisador da Universidad Nacional Autónoma de México, os países da periferia do sistema mundial são os mais afetados pelas drogas, em virtude principalmente de suas políticas de erradicação e combate. O último relatório anual referente ao mercado global de drogas ilícitas divulgado pelo Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes (UNODC), publicado na última quinta-feira de junho de 2020, reforça essa compreensão.


Identificar as tendências e as dinâmicas de uma atividade ilícita de tamanha magnitude é sempre um desafio, e os resultados podem muitas vezes não condizer com a realidade. É interessante notar que mesmo após décadas de políticas proibicionistas, os problemas relacionados ao abuso de drogas persistem. Para além de variações quantitativas nas apreensões e nas áreas dedicadas ao cultivo, um elemento se mantém praticamente imutável ao longo dos anos de elaboração do relatório: aos países periféricos é atribuída a responsabilidade pela produção da quase totalidade das drogas consumidas no mundo.


Conforme mencionado por Thiago Rodrigues, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), a existência dessa divisão entre países produtores, consumidores e de trânsito possui um componente político bastante forte e serve principalmente para auxiliar a comunidade internacional no direcionamento dos esforços de combate às drogas.


A produção das plantas-base das principais drogas consumidas atualmente (coca e papoula) ocorre majoritariamente em países da América Latina, da Ásia Central e do Sudeste Asiático. No relatório publicado pelo UNODC, a área dedicada ao cultivo de ópio vem sendo reduzida (tanto no Afeganistão quanto em Mianmar) não havendo sido relatada, contudo, escassez no abastecimento de ópio e derivados – apesar de as apreensões de heroína terem aumentado de maneira sustentada no período analisado.


Segundo o UNODC, foram produzidas 7.610 toneladas de ópio no último ano. As plantações de coca, por sua vez, desde 2013 vêm apresentando aumento nas áreas dedicadas a seu cultivo. Em 2019, o relatório indicou uma estabilização na produção em níveis elevados – 1.723 toneladas de cocaína pura produzidas no último ano.


Além das drogas à base de plantas (ópio e coca) e semissintéticas (heroína e cocaína), o relatório apontou o aumento da produção de drogas sintéticas (ATS) – especialmente em países asiáticos. Ao analisar os países considerados maiores produtores de drogas do mundo (excetuando-se os produtores de cannabis, a qual é produzida em praticamente todas as regiões do mundo) verifica-se que estes passaram e em alguns casos ainda passam por conflitos armados.


O Afeganistão é um deles. Responsável por 84% da produção mundial de ópio, é um dos muitos exemplos de países devastados por guerras intermináveis e que passam a se inserir na economia mundial através das atividades ilegais.


Foto: Goran Tomasevic/Reuters.


A relação entre conflitos armados e produção de drogas foi explorada por Svante E. Cornell, professor associado da Johns Hopkins University-SAIS, o qual aponta que os conflitos armados aumentam, exacerbam e, ocasionalmente, mudam os padrões preexistentes de produção de drogas. Segundo Cornell, os conflitos armados transformam o cultivo existente de forma qualitativa e quantitativa.


"[...] o Afeganistão mergulhou em guerra com a invasão soviética em 1979, quando menos de 200 toneladas de ópio eram cultivadas. A produção de ópio atingiu 1.000 toneladas em 1988 e aumentou ainda mais durante a guerra civil de 1990-1994, atingindo 3.426 toneladas em 1994. Permaneceu elevada durante o período Talibã, alcançando um pico de 4.565 toneladas em 1999, antes de ser reduzida à 185 toneladas como resultado da erradicação promovida pelos talibãs em 2001. Já em 2002 a produção fora imediatamente retomada, alcançando a marca de 3.400 toneladas, as quais após a Operação Enduring Freedom continuaram em expansão (CORNELL, 2007, p.217, tradução da autora).

O cultivo do ópio perpassa toda a história do Afeganistão. James T. Bradford destaca que a papoula desempenhou um papel importante especialmente nas tentativas de centralização e de fortalecimento da autoridade estatal. Apesar disso, foi somente após suas prolongadas guerras (primeiro com os soviéticos, depois entre diferentes grupos mujahideen e por fim com os estadunidenses, que ainda estão em território afegão) que o país passou a figurar entre os maiores produtores de ópio e derivados do mundo (com destaque para a heroína), tornando-se o maior produtor de ópio em 2008.


Importa destacar que o engajamento e desengajamento das grandes potências foi um incentivo para que grupos insurgentes (grupos organizados em torno de um líder ou warlord que resistem aos esforços de centralização política das administrações de Cabul) entrassem na economia do ópio. Em virtude disso, é difícil identificar os grupos que se envolvem diretamente com o tráfico de drogas daqueles que utilizam outros meios de financiamento, uma vez que a política do ópio permeia todo o fragmentado território afegão. Conforme aponta Julien Mercille, professor na Escola de Geografia, Planejamento e Política Ambiental da University College Dublin, há grupos profundamente comprometidos com o tráfico de drogas (a exemplo da Aliança do Norte) e outros com uma relação um tanto quanto ambígua (como o Talibã). Assim, o ópio tornou-se um importante componente nas disputas internas pelo poder no Afeganistão.


Um dos países líderes na guerra contra às drogas, os Estados Unidos têm adotado postura ambígua em relação ao ópio no Afeganistão. Mercille aponta que durante os anos da invasão soviética os EUA “fecharam os olhos” para o envolvimento de grupos insurgentes com a produção de ópio. Somente a partir dos anos 2000, com o alegado uso das receitas do ópio pelo Talibã, foi que as drogas passaram a ocupar um lugar de relevância no processo de estabilização do Afeganistão – ainda que atrelado ao combate ao terrorismo. Desde a derrubada dos talibãs, o governo de Karzai (2004-2014) tem buscado erradicar (com o auxílio das potências ocidentais) a produção de ópio como esforço para enfraquecer as lideranças periféricas e fortalecer a autoridade central.


Foto: Mohammad Ismail/Reuters


De acordo com Jonathan Goodhand, professor do Departamento de Estudos sobre Desenvolvimento na School of Oriental and African Studies na University of London, a produção de ópio no Afeganistão deve ser analisada como um ponto de intersecção entre três distintas economias: a economia de combate (responsável pela manutenção do conflito); a economia ilícita (os tráficos de drogas, de armas, etc.); e a economia de enfrentamento (relacionado à subsistência e sobrevivência dos indivíduos e, consequentemente, à produção de bens agrícolas).


A existência dessas três economias é resultado da persistência desse estado de conflito no país. Com o passar das décadas, estruturou-se uma “ordem” na qual determinados grupos (organizados em torno dos warlords) passaram a se beneficiar política e economicamente da desordem. Nesse contexto, seria equivocado dissociar a análise sobre a produção de ópio de uma análise acerca dos meios que permitem a continuidade do conflito. Todavia, o fato de o Afeganistão estar sob severa instabilidade política e econômica durante os últimos 40 anos inviabilizou o desenvolvimento de fontes de renda alternativas para além da produção de bens agrícolas, as quais permitiriam à população afegã viver para além da economia de enfrentamento.


Nas duas últimas décadas, tem-se buscado elaborar alternativas para a questão das drogas no Afeganistão. Percebendo o papel que as drogas desempenham na manutenção do conflito e também no empoderamento de lideranças locais, alguns autores como Vanda Felbab-Brown, pesquisadora no Brookings Institute, têm fortalecido a ideia do licenciamento de parte da produção de ópio para fins medicinais como uma opção para o Afeganistão.


A compreensão da dinâmica do ópio é, portanto, uma peça-chave para a pacificação do Afeganistão. Ao mesmo tempo em que a receita da produção de ópio empodera financeiramente (e, por consequência, politicamente) grupos que disputam o poder político com o governo central (apoiado financeira e logisticamente pelas forças estrangeiras) no país, gerando um ciclo vicioso de violência e conflito, as tentativas de erradicar forçadamente a produção e acabar com o tráfico sob a alegação de interromper a fonte de recursos dos grupos insurgentes, por outro lado, acabam por aprofundar os laços daqueles que dependem dessa economia para sua subsistência com os líderes locais – concomitantemente ao aumento da desconfiança em relação ao governo de Karzai por sua proximidade com as forças estrangeiras.


A produção e a erradicação de ópio parecem levar a um mesmo resultado: o aprofundamento da fragmentação política no Afeganistão. A compreensão dessa dualidade que o ópio assumiu no país reforça a reflexão de Juan Gabriel Tokatlian, professor na Universidad Torcuato Di Tella, a respeito da produção de drogas em regiões em conflito. O autor afirma ser necessário, em um primeiro momento, solucionar o conflito (estabilizar, (re)estabelecer a legitimidade das instituições, etc.) para, em seguida, abordar a questão das drogas. Para além das políticas de combate às drogas, Tokatlian destaca que é essencial o desenvolvimento paralelo de políticas voltadas para questões estruturais, a exemplo das desigualdades socioeconômicas.


A análise dos números divulgados pelo relatório anual do UNODC, descolada de uma compreensão histórica mais ampla a respeito do processo de produção de drogas no mundo, reforça o discurso de que cabe aos países da periferia do sistema mundial a responsabilidade por esse problema, isto é, pela oferta de drogas. É necessário, no entanto, compartilhar esta responsabilidade também com os países centrais, os quais desempenharam um papel ativo na conformação de determinados países em grandes produtores de drogas. A situação do Afeganistão é complexa, não existindo resposta única ou soluções simplistas seja para o conflito armado, seja para a questão das drogas.




*Maria Gabriela Vieira é mestranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP) e pesquisadora do Núcleo de Estudos Transnacionais da Segurança (NETS), da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.



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Bibliografia recomendada:


BRADFORD, James Tharin. Poppies, Politics, and Power: Afghanistan and the Global History of Drugs and Diplomacy. Ithaca: Cornell University Press, 2019.


CORNELL, Svante E. Narcotics and Armed Conflict: Interaction and implications. Studies in Conflict and Terrorism, v.30, n.3, p.207-227, 2007.

FELBAB-BROWN, Vanda. Opium Licensing in Afghanistan: Its Desirability and Feasibility. The Brookings Institution - Policy Paper, Washington, n.1, August 2007.

GOODHAND, Jonathan. Frontiers and Wars – The Opium Economy in Afghanistan. Journal of Agrarian Change, v.5, n.2, p.191-216. April 2005.

MERCILLE, Julien. The US “War on Drugs” in Afghanistan - Reality or Pretex? Critical Asian Studies, v.43, n.2, p.285-309. 2011.


MERCILLE, Julien. Cruel harvest: US intervention in the Afghan drug trade. London: PlutoPress, 2013.


RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico: uma guerra na guerra. São Paulo: Desatino, 2012.

SANTANA, Adalberto. A Globalização do Narcotráfico. Revista Brasileira de Política Internacional, Cidade do México, v.42 n.2, p.99-116, 1999. Disponível em:< http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v42n2/v42n2a06.pdf>. Acesso em: 3 ago. 2019.

TOKATLIÁN, Juan Gabriel. Organised crime, illicit drugs and state vulnerability. Oslo: Norwegian peacebuilding centre & Universidad Torcuato di Tella, 2011.

UNODC, United Nations Office on Drugs and Crime. World Drug Report 2020. United Nations, New York, 2020. Disponível em: < https://wdr.unodc.org/wdr2020/> . Acesso em: 27 jun. 2020.

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