*Por Lucas Lixinski Arnhold/Observatório Cosmopolita da Corte Internacional de Justiça.
Foto: UN Photo/ICJ/Frank van Beek.
Apesar das dificuldades impostas pela crise da covid-19, a Corte Internacional de Justiça segue suas atividades no ano de 2020 ciente da urgência e da extrema relevância das disputas levadas à apreciação de seus juízes.
Atualmente, a Corte se debruça sobre quatro casos, alguns em fase de realização de sessões para sustentação oral dos argumentos das partes envolvidas, outros já sob apreciação dos juízes para a publicação de suas decisões.
Abaixo você confere uma introdução às quatro disputas atualmente sob análise e deliberação pelos juízes da Corte Internacional de Justiça.
Guiné Equatorial v. França: Immunities and Criminal Proceedings
Em 13 de junho de 2016, a Guiné Equatorial iniciou procedimento contra a França perante a Corte Internacional de Justiça (CIJ). A disputa entre os países trata da imunidade de jurisdição penal de Teodoro Nguema Obiang Mangue, Segundo Vice-Presidente da República da Guiné Equatorial e responsável pela Defesa e Segurança do Estado, além da situação jurídica do edifício que alberga a Embaixada da Guiné Equatorial em Paris, enquanto local de missão diplomática e propriedade do Estado.
Em março de 2014, Teodoro Nguema Obiang Mangue foi indiciado em tribunal de primeira instância francês sob acusação de ter construído, de forma fraudulenta, patrimônio significativo na França. A investigação dedicou-se mais especificamente a demonstrar a forma como o Sr. Mangue teria adquirido vários objetos de valor considerável e um edifício localizado na Avenida Foch número 42 em Paris. No julgamento do governante da Guiné Equatorial, ocorrido em outubro de 2017, o réu foi condenado a três anos de prisão, com pena suspensa, por lavagem de dinheiro, abuso de bens sociais, desvio de fundos públicos, abuso de confiança e corrupção.
A Guiné Equatorial, em sua representação depositada na secretaria administrativa da CIJ, alegou que o processo penal contra o Segundo Vice-Presidente Nguema Obiang constituiria violação da imunidade a ele garantida pelo direito internacional para garantia de liberdade no exercício das suas funções oficiais enquanto titular de cargo importante no Estado. Além disso, a alegação equato-guineense afirmou que a França teria violado os termos da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, de 1961, a Convenção de Palermo de 15 de novembro de 2000 e outros princípios gerais do direito internacional ao anexar o edifício localizado na Avenida Foch número 42 em Paris, uma vez que a edificação seria parte da instalação diplomática do país na França.
Foto: UN Photo/ICJ/Bastiaan van Musscher.
Em 2016, a Corte Internacional de Justiça acatou o pedido de recurso provisório da Guiné Equatorial e ordenou à França que mantivesse, até a conclusão do caso, a inviolabilidade do edifício na Avenida Foch, tratando-o de forma equivalente ao requisitado no Artigo 22 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas.
Em 2018, a CIJ julgou as objeções preliminares levantadas pela França. Após as devidas deliberações, a Corte aceitou a objeção francesa relativa à ausência de jurisdição da Corte para apreciação do caso em relação às questões de imunidade suscitadas, com base no artigo 35 da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo); e rejeitou, de forma unânime, a segunda objeção preliminar levada a sua apreciação, referente à suposta ausência de jurisdição da Corte com base no Protocolo facultativo à Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas relativo à Solução Obrigatória de Controvérsias.
Além disso, a Corte também rejeitou a terceira objeção preliminar suscitada pela França, que argumentava a inadmissibilidade do caso em função de abuso processual e de direitos, e declarou possuir jurisdição para apreciação da disputa levada pela Guiné Equatorial em relação ao status do edifício da Avenida Foch, em Paris, além de considerar admissível o pedido apresentado, com base no Protocolo Facultativo à Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas sobre a Solução Obrigatória de Controvérsias.
Em meados de 2019, a Corte recebeu os últimos memoriais e réplicas apresentados por Guiné Equatorial e França, tendo sido realizadas, entre os dias 17 e 21 de fevereiro de 2020, as audiências públicas do caso. Desde então, o caso segue em fase de deliberação pela Corte, não tendo ainda sido publicamente anunciada a data de divulgação da sentença do caso.
Guiana v. Venezuela: Arbitral Award of 3 October 1899
Em 29 de março de 2018, a República Cooperativa da Guiana apresentou perante a CIJ processo contra a República Bolivariana da Venezuela, demandando à Corte que confirme a validade jurídica e o efeito vinculante da Sentença Relativa à Fronteira entre a Colônia da Guiana Britânica e os Estados Unidos da Venezuela, de 3 de outubro de 1899.
O caso envolve a região fronteiriça conhecida como Guiana Esequibo, território de 159.500 km² localizado a oeste do rio Essequibo, administrado e controlado pela Guiana, mas reivindicado pela Venezuela.
A área, desde o período colonial, é objeto de contestações em razão, sobretudo, de seu potencial econômico. Em meados do século XIX, as relações diplomáticas entre o Reino Unido e a Venezuela foram fortemente abaladas em função da luta pelo controle de grandes minas de ouro localizadas na região. Mais recentemente, em 2013, uma embarcação de exploração petrolífera pertencente à Guiana foi detida por um navio militar venezuelano e teve seu piloto acusado de violação da zona econômica exclusiva da Venezuela. Por fim, uma nova dimensão para a disputa geopolítica no local surgiu em 2015, quando a empresa petrolífera norte-americana Exxon, com autorização do governo da Guiana, reportou a descoberta de quantidade expressiva de petróleo na área costeira da região de Essequibo.
Foto: UN Photo/ICJ/Frank van Beek.
Na Corte Internacional de Justiça, a Guiana alega que, desde o firmamento do Acordo de 1905, que confirmou os traços fronteiriços apontados pela decisão arbitral de 1899, até o momento em que o Reino Unido realizava os preparativos finais para a independência da Guiana, todas as partes envolvidas na disputa territorial concordaram com o resultado da arbitragem de 1899, e que só recentemente a Venezuela passou a contestar a decisão.
A representação guianense afirma ainda que a jurisdição da Corte para julgamento do caso seria evidenciada pela cláusula de consenso mútuo prevista no Acordo de Genebra, firmado entre os países em 1966 (à época assinado pelo Reino Unido em favor da Guiana, mas ainda vigente), que prevê que em casos em que não houvesse consenso quanto à disputa travada entre as partes, estas dariam autorização ao Secretário-Geral das Nações Unidas para determinação do meio de resolução adequado à disputa.
A escolha do Secretário-Geral, inicialmente e por muito tempo, foi a indicação de um agente ou escritório de boa-fé para a resolução das disputas entre os países na região. De 1990 até 2016 inúmeras tentativas falharam, e somente em 2018 o atual Secretário-Geral da ONU, António Guterres, determinou que daquele momento em diante a resolução do conflito seria realizada pela Corte Internacional de Justiça.
A Venezuela, por sua vez, em 2019, informou à CIJ seu entendimento de que a Corte não teria jurisdição para apreciação de uma ação colocada unilateralmente pelo país vizinho, o que constituiria uma violação ao Acordo de Genebra, de 1966.
Em meados de 2019, ambas as partes enviaram memoriais à Corte contendo suas próprias considerações quanto às questões de jurisdição e admissibilidade do caso. Em 30 de junho a Corte Internacional de Justiça realizou audiência pública para sustentação oral dos argumentos de cada uma das partes, e desde então o processo segue em fase de deliberação pelos juízes da Corte.
(Por Lucas Lixinski Arnhold)
Catar v. Emirados Árabes Unidos: Application of the International Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination
Em junho de 2018, o Estado do Catar instituiu processo contra os Emirados Árabes Unidos (EAU) perante a CIJ, declarando que os EAU teriam implementado uma série de medidas discriminatórias aos cidadãos cataris. A conduta utilizada pelos EAU, segundo o Catar, seria contrária a princípios de Direito Internacional Público e Direitos Humanos, consolidados nas proteções contidas nos artigos da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (ICERD), de 1965.
Dentre as diversas medidas discriminatórias atribuídas aos Emirados Árabes Unidos, o Catar cita como exemplos a proibição de entrada de cidadãos catarinos em território árabe; o fechamento do espaço aéreo e de todos os transportes interestaduais entre os países; e até mesmo fechamento dos escritórios locais e bloqueio das transmissões do canal de televisão Al Jazeera. Além disso, o Catar alega também que os EAU teriam incitado discurso de ódio e participando de ataques através dos meios de comunicação contra os cataris.
Foto: ICJ/Frank Van Beek.
Em meados de 2018, a Corte Internacional de Justiça proferiu decisão que reconheceu sua jurisdição sobre a disputa e determinou medidas a serem cumpridas provisoriamente pelas partes até o julgamento definitivo da disputa. Em sua decisão a Corte determinou que as famílias separadas em razão das medidas adotadas pelos EAU fossem reunidas; que estudantes afetados pelas medidas pudessem concluir seus estudos nos EAU ou obter seus registros educacionais para finalizá-los em outro local; que os cataris afetados pelas medidas dos EAU tivessem acesso aos tribunais ou outros órgãos judiciais dos EAU; e que ambas as partes se abstivessem de quaisquer ações que pudessem agravar ou estender a disputa perante a CIJ.
Entre o final de agosto e o início de setembro de 2020, a Corte Internacional de Justiça promoveu a realização de audiências para a apreciação das exceções preliminares trazidas pelos Emirados Árabes Unidos ao caso. Os detalhes de tais sessões, bem como histórico e perspectivas futuras do caso, você confere nos artigos já publicados pelo Observatório Cosmopolita da Corte Internacional de Justiça, de Elisa Hartwig, Victor Tozetto e Gabriel Borba.
Irã v. EUA : Alleged violations of the 1955 Treaty of Amity, Economic Relations, and Consular Rights
Em julho de 2018, o Irã iniciou processo contra os Estados Unidos perante a Corte Internacional de Justiça em razão da reimposição de sanções econômicas pelos EUA contra cidadãos e empresas iranianas. Tais sanções já haviam sido discutidas e anteriormente levantadas durante as negociações que levaram os países à assinatura do Acordo Nuclear Iraniano de 2015 (JCPOA).
A disputa levada à CIJ vem na esteira do reavivamento das tensões nucleares entre Estados Unidos e Irã desde a eleição de Donald Trump, em 2016, que tinha como um dos motes principais de sua campanha presidencial a retirada dos EUA do Acordo que marcou a presidência de Barack Obama.
Na visão iraniana, a reintrodução de sanções econômicas contra seus cidadãos e empresas pelos EUA implicaria em ofensas ao Tratado de Amizade, Relações Econômicas e Direitos Consulares firmado pelos dois países em 1955, que ainda permanece em vigor.
Diante da Corte Internacional de Justiça, o Irã pleiteia a extinção das sanções e de ameaças de novas sanções pelos EUA, bem como a garantia de que os norte-americanos não voltarão a violar os dispositivos do tratado de 1955, além de compensação a ser paga pelos EUA em montante arbitrado pela Corte.
Foto: UN Photo/ICJ/Frank Van Beek.
Em outubro de 2018, após a realização de audiências preliminares, a Corte Internacional de Justiça proferiu decisão determinando medidas provisórias para que fossem retiradas, até o final do julgamento, quaisquer sanções impostas direta ou indiretamente pelos EUA à exportação de medicamentos e alimentos ao território iraniano, bem como de equipamentos e serviços necessários à segurança da aviação civil no país.
Proferida a decisão liminar pela Corte, em meados de 2019 Irã e EUA apresentaram, respectivamente, seus memoriais e suas objeções preliminares.
Atualmente, entre os dias 14 e 21 de setembro, ocorrem as audiências públicas do caso, em que tanto Irã quanto EUA apresentaram oralmente a sustentação de seus argumentos perante os juízes da Corte Internacional de Justiça. Os detalhes das audiências e dos argumentos levantados pelas partes você acompanha nas atividades do Observatório Cosmopolita da Corte Internacional de Justiça.
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