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O xadrez de EUA e Irã em 3 perspectivas do Direito Internacional

*Por João Sallani

Foto: Press Office of Iranian Supreme Leader/Anadolu Agency/Getty Images


Sem qualquer indicação da proporção da escalada política e militar por vir, o início da madrugada do dia 3 de janeiro de 2020 trouxe uma das notícias de maior impacto geopolítico da década: o assassinato de Qassem Soleimani, general estrategista integrante da alta cúpula política do Irã, alvo de ataque de drones orquestrado e oficialmente reivindicado pelo governo dos Estados Unidos.


A tensão entre os dois países vinha em trajetória crescente desde o último mês de dezembro, quando um ataque a mísseis contra a base de Kirkurk, no Iraque, resultou na morte um agente de segurança americano – atribuída pelo governo estadunidense a milícias apoiadas pelo governo Iraniano. A resposta a tal ato viria na forma de bombardeios norte-americanos no Iraque e na Síria contra grupos armados alinhados ao Irã, que resultariam na morte de vinte e cinco pessoas. Tais trocas de agressões culminariam, em sequência, no cerco de militantes pró-Irã à Embaixada dos Estados Unidos em Bagdá.

A escala do ataque empreendido pelos norte-americanos na noite do dia 3 de janeiro, no entanto, tomou a todos de surpresa. Ainda que atritos entre os dois países na região não sejam incomuns, empreendimentos militares convencionais, realizados por forças regulares de seus Estados, são raros. Em geral, o tom das disputas políticas na região é dado por ações e enfrentamentos de grupos paramilitares fomentados tanto pelos EUA quanto pelo Irã.

Os dias que se seguiram ao ataque norte-americano foram marcados por alta tensão, trocas de acusações e expectativa pela resposta iraniana, que viria somente no dia 7 de janeiro, com os bombardeios a duas bases norte-americanas no Iraque.

Em termos estritamente bélicos, tal ação resultou em maiores efeitos morais do que práticos, uma vez que não se traduziu em perda de vidas americanas ou iraquianas. Ao final do dia, toda a comunidade internacional acabou por tomar a resposta iraniana como indicação de uma diminuição da escalada militar na região.


As justificativas de EUA e Irã

Ao se reportarem ao Conselho de Segurança da ONU para justificar seus atos, ambos os países afirmaram agir em legítima-defesa – hipótese expressamente prevista pelo artigo 51 da Carta das Nações Unidas.

De maneira errática, o Presidente norte-americano Donald Trump afirmou que os bombardeios que vitimaram o general iraniano haviam sido realizados em razão da iminência de ataques orquestrados pelo próprio Soleimani contra militares e diplomatas norte-americanos, em supostas ações ainda a serem empreendidas contra quatro embaixadas norte-americanas.

Nenhuma evidência ou detalhamento da acusação, no entanto, foi apresentada. Até mesmo funcionários do alto-escalão do governo americano, como o Secretário de Defesa Mark Esper, mostraram dificuldade em reiterar e repercutir as insinuações de Trump.

A fragilidade das justificativas inicialmente apresentadas pelo presidente norte-americano podem ser verificadas tanto por suas próprias declarações posteriores, que apontariam outras razões para o ataque, quanto pela carta endereçada pelos EUA ao Conselho de Segurança da ONU para informação de suas ações envolvendo o uso da força no Iraque.

Perante o Conselho de Segurança, a justificativa formal dos EUA para os bombardeios que vitimaram Soleimani buscou caracterizar tais ações como respostas, em legítima-defesa, a ataques empreendidos ao longo de 2019 pelo Irã e por milícias apoiadas pelo Estado Iraniano contra drones militares e embarcações comerciais norte-americanas.





O Irã, por sua vez, reportou-se ao Conselho de Segurança afirmando agir proporcionalmente em legítima-defesa, contra um específico ato norte-americano: os bombardeios de 3 de Janeiro de 2020.



É certo, no entanto, não ser possível que dois Estados ajam simultânea e mutuamente em legítima-defesa, uma vez que o Direito Internacional impõe que a legítima-defesa só pode ser exercida licitamente quando um Estado for alvo de um injusto ataque armado. Consequentemente, não se entende admissível que um Estado agressor venha a afirmar legítima-defesa contra um ato já praticado em legítima-defesa.

Logo, a alegação do exercício de legítima-defesa não é instrumento capaz, por si só, de tornar lícito o uso da força por um Estado, devendo ser observadas também as formas de seu exercício.

A legítima defesa no Direito Internacional

A Carta das Nações Unidas institui em seu artigo 2º, parágrafo 4º, a proibição do uso da força como regra geral das relações internacionais. Duas hipóteses de uso lícito da força, no entanto, são expressamente previstas: em caso de autorização pelo Conselho de Segurança (art. 39), e quando no exercício de legítima-defesa (art. 51).

Dado que resoluções do Conselho de Segurança dependem de árduos arranjos políticos entre seus membros permanentes, detentores de poder de veto, a mais comum justificativa para o uso da força se dá no âmbito da legítima-defesa.

Para que a legítima-defesa seja licitamente exercida, o Direito Internacional exige necessariamente a constatação simultânea de três elementos: i) a ocorrência de um ataque armado; ii) a necessidade; e iii) a proporcionalidade.

A própria definição de tais termos, no entanto, gera controvérsias.

Não provido pela Carta das Nações Unidas e nem por tratados internacionais, o significado do termo “ataque armado” deriva da jurisprudência da Corte Internacional de Justiça, em especial dos casos da Nicarágua v. EUA (1986) e Irã v. EUA (2001). Em tais casos, estabeleceu-se, ainda que em termos reticentes, o entendimento de que um ataque armado diz respeito a uma hipótese qualificada de uso da força em razão de suas escalas e efeitos – em geral direcionados contra elementos da soberania de um Estado.

Além disso, exige-se que o uso da força em exercício de legítima-defesa seja necessário à reação contra um ataque armado sofrido pelo Estado ofendido, ao mesmo tempo em que proporcional à ameaça representada por tal ataque.

Conforme escreve Christine Gray, a necessidade é comumente interpretada como a hipótese em que nenhuma outra alternativa além do uso da força se demonstra possível para a defesa do Estado, enquanto a proporcionalidade relaciona-se ao tamanho, duração e alvo da resposta. Embora um Estado vítima de um ataque armado não tenha seu escopo de resposta estritamente limitado aos meios utilizados pelo agressor, sua resposta não pode ser desmedida.

Na prática, os requisitos para o exercício da legítima-defesa andam juntos.

Nas palavras de Gray, “se um uso da força não é necessário, não pode ser proporcional, e se não é proporcional, é difícil ver como poderia ser necessário”.

Os elementos dispostos à limitação do exercício da legítima-defesa visam, sobretudo, garantir que a legítima-defesa não apresente caráter meramente retaliatório ou punitivo, de forma a restringir o risco de eventuais escaladas militares. Logo, o único propósito da existência da legítima-defesa é permitir a um Estado repelir um ataque armado injustamente sofrido.

A primeira justificativa norte-americana: legítima-defesa contra “ameaça iminente”


Ao afirmarem agir em legítima-defesa contra um ataque armado iminente – portanto, ainda inexistente – planejado por forças armadas fomentadas pelo Irã, os EUA recorreram a doutrina jurídica notoriamente controversa no Direito Internacional: a legítima-defesa preemptiva.

Em termos simplificados, uma ação preemptiva é aquela taticamente empregada em resposta a uma ameaça imediata e já existente, embora ainda não materializada na forma de um ataque armado. Nas palavras de Yoram Dinstein, “não há necessidade de esperar que as bombas caiam – ou, da mesma forma, que se abra fogo – se é certo que um ataque armado está em curso (ainda que de maneira preliminar).

A licitude do exercício preemptivo da legítima-defesa, no entanto, é bastante discutível.

Quando exposta ao tema, a Corte Internacional de Justiça, em especial nos casos da Nicarágua (1986) e do Congo (2005), preferiu desviar-se da abordagem direta da questão, decidindo tais casos a partir da prevalência de aspectos circunstanciais, chegando a, no máximo, sugerir implicitamente a não aceitação do uso antecipatório da força para situações além daquelas expressamente dispostas pelo Artigo 51 da Carta da ONU.

A literatura acadêmica do Direito Internacional, no entanto, parece indicar, em sua maioria, a tendência de aceitação de ações preemptivas em legítima-defesa, conforme reconhecido pelo Secretário-Geral da Nações Unidas, Kofi Annan, em seu relatório In Larger Freedom: towards Development, Security and Human Rights for All.

O discurso norte-americano, no entanto, parece posicionar-se aquém de qualquer discussão acadêmica quanto à licitude de ações preemptivas, uma vez que não corresponde sequer aos requisitos básicos que legitimam o exercício da legítima-defesa tradicional.

Não apresentado pelo governo dos EUA sequer indício de ocorrência ou da iminência de ataque armado iraniano, a única conclusão possível é a da absoluta ilicitude dos ataques que vitimaram Qassem Soleimani.

Cientes da fragilidade da posição inicialmente sugerida pelo presidente Donald Trump, funcionários do governo norte-americano passaram a sugerir e reportar ao Conselho de Segurança da ONU que a ação da noite de 3 de janeiro de 2020 indicaria o exercício de legítima-defesa contra diversas ações armadas empreendidas pelo Irã ao longo de 2019.

Tal argumento, no entanto, também não encontra corroboração no Direito Internacional.


Foto: Picture-Alliance via Getty Images

Já em 2003, no julgamento do caso das Plataformas Petrolíferas, a Corte Internacional de Justiça afirmara compreender que atos de menor gravidade, ainda que tomados cumulativamente, não seriam suficientes para a configuração de um ataque armado. Logo, inexistiria em tais casos direito à legítima-defesa pelo Estado ofendido.

Além disso, a ação norte-americana, tomada posteriormente à materialização e à conclusão de todos os ataques atribuídos às forças ligadas ao Estado Iraniano, e não destinada ao impedimento ou à mitigação dos efeitos de tais ações, não poderia ser caracterizada necessária e muito menos proporcional.

Desta forma, sob nenhuma ótica a ação norte-americana parece encontrar abrigo no Direito Internacional.


A ação iraniana: legítima-defesa tardia ou represália armada?

Do outro lado, o Irã afirmou agir em legítima-defesa ao atacar, na noite de 07 de janeiro de 2020, bases norte-americanas no Iraque.

Ainda que tais ações pudessem ser cobertas pelo véu da proporcionalidade, uma vez que dirigidas a elementos menores da soberania norte-americana, quando comparadas às implicações políticas dos ataques sofridos pelo Irã em 03 de janeiro de 2020, parece difícil encontrar elementos que justifiquem a necessidade na ação iraniana.


Foto: Spencer Platt/Getty Images

Praticados após quatro dias e em situação na qual não se apresentavam como único meio disposto a repelir o ataque norte-americano de 03 de janeiro, os bombardeios iranianos apresentam características mais próximas às de represálias armadas – assim entendidas ações punitivas unilaterais e limitadas envolvendo o uso da força – do que legítima-defesa.

Ocorre, no entanto, que a ilicitude da prática de represálias armadas em tempos de paz já foi expressamente afirmada pela Corte Internacional de Justiça no caso da Legalidade da Ameaça ou Uso de Armas Nucleares, em 1996.

Segundo entendimento da Corte, represálias armadas não poderiam ser lícitas por não atenderem, em situação alguma, ao critério da proporcionalidade no exercício da legítima-defesa.

Se não abarcada pela legítima-defesa, a prática de represálias armadas poderia somente ser declarada lícita em caso de aval do Conselho de Segurança.

Tal hipótese, no entanto, conforme apontado por Mary Ellen O’Connell, seria inédita, uma vez que o próprio Conselho de Segurança já deixou clara a violação à Carta da ONU representada pela prática de represálias armadas, na ocasião do bombardeio britânico ao Forte Harib, no Iêmen, em 1964.


Foto: Mary Altaffer/AP Photo

Evidências do caráter ilícito da prática de represálias armadas podem ser encontradas nos Artigos sobre a Responsabilidade dos Estados por Atos Internacionalmente Ilícitos, que preveem a Estados injustamente ofendidos o direito de aplicação de contramedidas contra seus ofensores até a cessação do ato ilícito praticado.

Os Artigos deixam claro, no entanto, a impossibilidade da prática de contramedidas por meio do uso da força, cuja proibição é, afinal, contemporaneamente compreendida como norma jus cogens – categoria de normas fundamentais do Direito Internacional, não derrogáveis senão por normas de mesma natureza.

Logo, ainda que praticadas extensiva e comumente desde a promulgação da Carta da ONU, inclusive por EUA e Irã, represálias armadas representam práticas internacionais manifestamente ilícitas.

A importância da constatação dos requisitos básicos da legítima-defesa

Seja por razoabilidade ou por cálculo político, certo é que, ao menos por ora, o que se nota é o arrefecimento das tensões militares entre EUA e Irã.

A crise inflamada pelo assassinato de Soleimani, no entanto, é boa representante da tensão que guia a efetivação da proibição do uso da força no Direito Internacional e o exercício da legítima-defesa.

Conscientes dos amplos prejuízos que a desconsideração do Direito Internacional infligiria a toda a comunidade global, é amplamente aceita pelos Estados a legitimidade das normas que regulam os conflitos internacionais. Ainda que, na prática, ajam de forma reiteradamente contrária ao Direito Internacional, os Estados sempre se preocupam em apresentar argumentos jurídicos para reclamar a licitude de suas ações.

A questão, portanto, passa a ser a velha dicotomia entre a abrangência e a restrição: são necessárias normas abrangentes o suficiente para que norteiem de forma genérica e ampla as relações internacionais, ao mesmo tempo em que específicas o bastante para não se submeterem ao esvaziamento de seu conteúdo.

Não basta que EUA ou Irã afirmem agir em legítima-defesa para que seja reconhecida a licitude de seus atos. É necessário que tais ações sejam construídas em conformidade com os requisitos internacionalmente estabelecidos para efetiva caracterização da legítima-defesa. Na crise intensificada pelo assassinato de Soleimani, no entanto, nenhum dos países parece ter sido realmente capaz de fazê-lo.



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Bibliografia básica:

DINSTEIN, Yoram. War, Aggression and Self-Defence; FRANCK, Thomas M. Recourse to Force: State Action Against Threats and Armed Attacks; GRAY, Christine D. International Law and the Use of Force; LEVY, Jack S. Declining Power and the Preventive Motivation of War; MURPHY, D. The Doctrine of Preemptive Self-Defence; O'CONNELL, M. E. The Popular but Unlawful Armed Reprisal.

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