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A construção do direito à saúde em relação aos povos indígenas na Corte IDH

*Por Fernanda Izidio Câmara e Ana Letícia Skudlarek

Foto: Fernando Bola - Câmara dos Deputados


ADPF 709 e instrumentos no Sistema Interamericano acerca do direito à saúde dos povos indígenas


Em um país onde - mesmo com as subnotificações - foram confirmados 33.841 casos e 486 mortes em terras indígenas brasileiras por COVID-19, não poderia ser mais pontual a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, ajuizada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e por seis partidos políticos brasileiros, que expõe as falhas e omissões do governo frente ao combate e contenção do coronavírus nas aldeias indígenas.


Por mais que indígenas e não indígenas sejam, imunologicamente, igualmente suscetíveis a vírus que nunca circularam antes, as vulnerabilidades da população indígena são múltiplas. Além de terem que lidar com a presença de um vírus com alto índice de mortalidade, fatores como piores condições sociais, econômicas e de saúde - agravadas, principalmente, pela dificuldade de acesso aos serviços públicos - intensificam a propagação do coronavírus nas aldeias e, consequentemente, fazem com que esses povos sejam mais afetados pelo vírus.


A Resolução 1/2020, sobre Pandemia e Direitos Humanos nas Américas, bem como a Declaração da Corte IDH de 09 de abril, enfatizam a necessidade de um cuidado maior dos Estados em relação aos grupos mais vulnerabilizados, de risco ou historicamente excluídos - como os povos indígenas -, quando da adoção de medidas de combate ao COVID-19 e demais providências sanitárias.


Na Resolução 35/2020, a respeito da Medida Cautelar 563-20 a favor dos Membros dos Povo Indígenas Yanomami e Ye’kwana e em face do Brasil no contexto de pandemia de COVID-19, a CIDH solicitou ao Estado brasileiro que: (a) adote as medidas necessárias para proteger os direitos à saúde, à vida e à integridade pessoal dos membros dos povos indígenas Yanomami e Ye'kwana, implementando, de uma perspectiva culturalmente apropriada, medidas preventivas contra a disseminação da COVID-19, além de lhes fornecer atendimento médico adequado em condições de disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade, de acordo com os parâmetros internacionais aplicáveis; (b) acorde as medidas a serem adotadas com os beneficiários e seus representantes; e (c) relate as ações adotadas para investigar os fatos que levaram à adoção dessa medida cautelar e, assim, evitar sua repetição.


Ainda, destaca-se que, durante 2018, uma epidemia de sarampo nas populações Yanomami continuou a se espalhar ao norte do Brasil e Venezuela, de modo que, no ano de 2019, a CIDH, em Relatório sobre a Situação dos Povos Indígenas e Tribais da Panamazônia, afirmou que não se sabe ao certo o número de afetados.


Em decorrência de tais fatores é que a ADPF 709 tem como objetivo a adoção de medidas de (i) proteção e promoção da saúde dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato, por meio da elaboração e implementação de um Plano de Barreiras Sanitárias, e (ii) medidas voltadas à saúde dos Povos Indígenas em geral, por meio do desenvolvimento do/de um Plano Geral de Enfrentamento e Monitoramento da COVID-19 para Povos Indígenas. Nesse sentido, recentes notícias têm informado que indígenas serão um dos primeiros grupos que receberão as vacinas para COVID-19, de acordo com o plano de vacinação que está sendo elaborado pelo governo brasileiro.


Foto: Renato Santana - El País


No âmbito do Sistema Interamericano, o artigo 26 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) tutela o direito à saúde a partir dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (DESC); já o artigo 10 do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre direitos Humanos em matéria de DESC (Protocolo de San Salvador), e o artigo XI da Declaração Americana contemplam expressamente o direito à saúde, ao passo que o artigo XVIII da Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas trata especificamente do direito à saúde dos povos indígenas.


O artigo 26 da CADH trata do desenvolvimento progressivo, segundo o qual cabe aos Estados-partes adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente, econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e culturais; ou seja, após adotadas as medidas que versam sobre o tema, estas não podem sofrer qualquer tipo de retrocesso.


Quanto ao disposto na Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, o parágrafo 1 do artigo XVIII estabelece que "Os povos indígenas têm o direito, de forma coletiva e individual, de desfrutar do mais alto nível possível de saúde física, mental e espiritual" e, segundo o parágrafo 5 do mesmo artigo, cabe aos Estados signatários da Declaração garantir o efetivo exercício deste direito.


A evolução do entendimento no Sistema Interamericano sobre o direito à saúde e à vida


Apesar do que dispõem os instrumentos internacionais anteriormente mencionados, a realidade latino-americana traz uma conjuntura de múltiplas violações aos direitos das populações indígenas, no que se inclui o direito à vida e à saúde. Segundo o Relatório Temático sobre Povos Indígenas e Tribais da Panamazônia, os Estados da OEA devem se ater às especificidades que demandam tais comunidades, no entanto, a maioria não respeita e não garante o direito à saúde destes povos, principalmente a singularidade que exigem essas situações.


Há uma forte insuficiência de serviços públicos de saúde, que se agrava ainda mais em relação aos povos indígenas amazônicos localizados em zonas de limitado acesso; no Brasil, os Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato.


Quanto às circunstâncias que levam a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CtIDH) a considerar o direito à saúde violado em relação aos povos indígenas, está: i) a distância dos centros de saúde e a indisponibilidade de transporte; ii) a insuficiência de medidas educativas em matéria de saúde que sejam respeitem os usos e costumes tradicionais; iii) a existência, nas terras indígenas, de atividades de mineração e grilagem ilegais.


No caso Poblete Vilches e outros Vs. Chile, que, apesar de não se referir especificamente às populações indígenas, é um importante marco do direito à saúde, estabeleceu-se que o direito à saúde não se trata somente da ausência de doenças e enfermidades, mas também de um estado completo de bem-estar físico, mental e social, derivado de um estilo de vida que permita alcançar um equilíbrio integral. Para que se possa observar integralmente este direito, os Estados devem observar os 4 elementos abarcados pelo direito à saúde, os quais segundo a Observação Geral nº 14 do Comitê DESC, são: disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade.


Assim, em relação aos povos indígenas, os serviços de saúde e de atenção à saúde ofertados devem se ater às suas particularidades, ou seja, devem respeitar a sua perspectiva cultural, tendo em conta os cuidados preventivos, as práticas curativas e a medicina tradicional desses povos, por meio do uso de proteção de plantas, minerais, animais e outros recursos de uso medicinal, nas suas terras e territórios ancestrais.

Nesse sentido, importante apontar que, em diversas sentenças da Corte, o direito à saúde acaba sendo englobado quando da análise do artigo 4 da CADH (direito à vida). Ao analisar tal artigo em relação ao art. 1.1 (obrigação de respeitar e garantir) do mesmo instrumento, a Corte entende que cabe ao Estado não só impedir que qualquer pessoa seja privada de sua vida arbitrariamente (obrigação negativa), mas também requer que sejam adotadas todas as medidas apropriadas para proteger e preservar o direito à vida (obrigação positiva) - sendo o direito à saúde analisado em muitos casos a partir desta perspectiva.


Em relação às comunidades indígenas, o tema é complexo e de necessária amplificação. Nesse sentido, a construção deste direito se deu no decorrer da jurisprudência da CtIDH, assim, trazemos os casos em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou Estados partes da Convenção Americana sobre Direitos Humanos em relação ao direito à saúde das populações indígenas.


O entendimento da Corte Interamericana sobre o direito à saúde/vida dos povos indígenas


Comunidade Indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguai

No caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguai, os membros Sawhoyamaxa tentavam reivindicar as suas terras originárias após terem sido elas invadidas por companhias privadas, contudo, os membros Sawhoyamaxa permaneceram sem respostas do Estado paraguaio desde 1991. A inércia estatal somada à pressão dos proprietários das terras levaram a comunidade à situação de pobreza extrema, exploração laboral, baixos níveis de saúde e atenção médica, além de impossibilitá-la de praticar livremente as suas atividades tradicionais de subsistência.


Em sentença de 29 de março de 2006, a CtIDH destacou que a legislação interna do Paraguai, muito embora garantisse formalmente aos indígenas o atendimento gratuito nos centros de saúde, era insuficiente, uma vez que o Estado não assegurou a plena efetividade dos direitos protegidos pela CADH aos Sawhoyamaxa. A Corte lembrou que, junto à carência de terras e à marginalização econômica, geográfica e cultural em que se encontravam os membros Sawhoyamaxa, a comunidade também se caracteriza pelo desemprego, analfabetismo, pelas altas taxas de mortalidade por doenças que seriam evitáveis, elevados índices de desnutrição, além das limitações de acesso e uso a serviços de saúde e à água potável.


Ainda, a Corte ressaltou que a maioria dos falecidos na Comunidade correspondia a crianças menores de três anos, cujas causas de morte foram, em geral, enfermidades razoavelmente previsíveis, evitáveis e tratáveis a baixo custo, como tétano, desidratação e bronquite. Segundo a CtIDH, o Estado paraguaio poderia ter prevenido adequadamente e adotado medidas positivas suficientes para evitar essas mortes.


Ademais, a Corte deixou de acolher o argumento do Estado a respeito da responsabilidade compartilhada, segundo o qual seria responsabilidade dos pacientes e dos líderes comunitários de levar os enfermos aos centros de saúde ou denunciar esta situação às autoridades sanitárias, uma vez que o próprio Estado havia editado um decreto de urgência se responsabilizando pela adoção de ações para a prestação imediata de atendimento médico e alimentar às famílias Sawhoyamaxa, de modo que o Estado deveria ter adotado as medidas para o fornecimento de tais bens e serviços.


No que tange ao direito à vida das crianças em geral, devido a taxa de mortalidade, a CtIDH entendeu, no presente caso, que o Estado tem, para além de suas obrigações perante todas as pessoas, a obrigação adicional de promover as medidas de proteção que determina o artigo 19 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Assim, impõe-se ao Estado-parte o dever de assumir sua posição especial de garante com maior cuidado e responsabilidade, assim como de tomar medidas especiais orientadas pelo princípio do interesse superior da criança.

No caso dos indígenas Sawhoyamaxa, a Corte também afirmou que tal entendimento deve estar conectado à situação igualmente vulnerável das mulheres grávidas da Comunidade. Segundo a CtIDH, o Paraguai deveria ter prestado especial atenção e cuidado à proteção desses grupos, bem como adotado medidas especiais que garantissem às mães integrantes da Comunidade Sawhoyamaxa, especialmente durante a gestação, o parto e o período de lactância, o acesso a serviços adequados de atenção médica.


Em vista disso, a CtIDH declarou que o Paraguai violou os arts. 8° (direito às garantias judiciais) e 25 (direito à proteção judicial) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), em relação aos artigos 1.1 (obrigação de respeitar os direitos) e 2 (dever de adotar disposições de direito interno) do mesmo instrumento; o art. 21 (direito à propriedade privada), também em conexão aos arts. 1.1 e 2 da CADH; o art. 4.1 (direito à vida, estabelecendo tal inciso que ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente) conectado aos arts. 1.1 e 19 (direitos das crianças), todos da CADH; e, por fim, violou o Estado o art. 3° (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica) da Convenção Americana, também em conexão ao art. 1.1 do mesmo instrumento.


Caso Comunidade Indígena Yakye Axa Vs. Paraguai

A Comunidade Yakye Axa, da qual faziam parte mais de 300 pessoas, viu, ao final do século XIX, as suas terras serem vendidas pelo Estado paraguaio a empresários britânicos. Os indígenas que habitavam essas terras foram empregados nas fazendas, contudo, devido às graves condições de vida a que eram submetidos, tiveram de ir para outra região, o que tampouco trouxe uma melhoria de vida aos membros Yakye Axa.


Assim, desde 1996, dentre 28 a 57 famílias da Comunidade Yakye Axa se encontravam assentadas na beira de uma estrada, ao passo que o restante dos membros permaneciam em algumas aldeias da região.


A CtIDH, no caso Yakye Axa, teve que analisar, à luz do corpus iuris internacional, a proteção especial que requerem os membros de comunidades indígenas, verificando se o Estado paraguaio gerou condições que intensificaram as dificuldades de acesso à vida digna por parte dos membros da Comunidade, afetando a sua forma e projeto de vida nas dimensões individual e coletiva. Ainda, a Corte analisou se, nesse contexto, o Paraguai adotou as medidas positivas apropriadas para satisfazer tal obrigação, considerando a especial situação de vulnerabilidade dos membros Yakye Axa.


Apesar de a Corte ter valorado positivamente as iniciativas tomadas pelo Estado para proporcionar alimentos, atenção médico-sanitária e materiais educativos aos membros Yakye Axa, considerou que tais providências não foram suficientes, tampouco adequadas, devido à particular gravidade do presente caso.


Em especial, a Corte destacou a atenção especial que merecem os idosos da Comunidade, afirmando que o Estado deveria ter adotado medidas que lhes permitissem manter a sua funcionalidade e autonomia, garantindo-lhes o direito à alimentação adequada, bem como o acesso à água potável e à saúde. A Corte adicionou que o Estado também deve atender aos idosos com enfermidades crônicas e em fase terminal de modo a salvá-los de sofrimentos evitáveis.


Assim, pelo fato de o Paraguai não ter adotado medidas frente às condições que afetaram as possibilidades de os membros Yakye Axa terem uma vida digna, a Corte declarou que o Estado violou o art. 4.1 da CADH em conexão ao art. 1.1. do mesmo instrumento.


Caso Comunidade Indígena Xákmok Kásek Vs. Paraguai

No caso Comunidade Indígena Xákmok Kásek Vs. Paraguai, a Comunidade Xákmok Kásek, formada por 66 famílias, teve as terras onde habitavam vendidas pelo Estado, sem o conhecimento dos membros indígenas que ali viviam, para entidades privadas, as quais dividiram a região em estâncias. Assim, em 1990, os líderes da Comunidade iniciaram um procedimento administrativo para recuperarem parte de seu território, porém, mesmo após tentativa de reivindicação perante o Congresso, não obtiveram êxito.


No caso Xákmok Kásek, a CtIDH observou que o volume de água fornecido pelo Estado durante os meses de maio a agosto de 2009 seria inferior a 2,17 litros por pessoa ao dia, muito embora os standards internacionais apontem que a maioria das pessoas, para satisfazer suas necessidades básicas, precisa de, no mínimo, 7,5 litros de água por dia. Para além da baixa quantidade de água, a CtIDH reforçou que o Estado paraguaio deixou de demonstrar a qualidade da água fornecida aos membros da Comunidade Xákmok Kásek.


Ademais, no que diz respeito aos alimentos fornecidos à Comunidade entre 12 de maio de 2009 e 04 de março de 2010, a CtIDH também destacou que a quantidade era insuficiente para satisfazer, ainda que medianamente, as necessidades básicas diárias de alimentação de qualquer pessoa. A CtIDH afirmou, ainda, que as medidas adotadas pelo Estado paraguaio não garantiram, aos membros da Comunidade, acessibilidade física ou geográfica aos estabelecimentos de saúde e que tampouco ficaram evidentes as ações positivas do Estado no sentido de garantir a acessibilidade dos Xákmok Kásek a tais bens e serviços. Ademais, a Corte assinalou que não foram desenvolvidas medidas educativas em matéria de saúde respeitosas aos usos e costumes tradicionais dessa população indígena. Consequentemente, a Corte declarou que o Paraguai violou o art. 4.1 com relação ao art. 1.1 da CADH, em prejuízo aos membros da Comunidade Xákmok Kásek.


Conforme sentença da Corte, o Estado paraguaio violou (i) o direito à vida, consagrado no art. 4.1 da CADH, em relação ao art. 1.1 do mesmo instrumento, em prejuízo da Comunidade; (ii) o direito à vida, conforme o art. 4.1 da CADH, em relação a alguns membros da Comunidade que vieram a falecer; (iii) o direito à integridade pessoal, consagrado no art. 5.1, com relação ao art. 1.1 da CADH, em prejuízo a todos os membros da Comunidade; (iv) o direito das crianças, segundo o art. 19 da CADH, em relação ao art. 1.1 do mesmo instrumento, em prejuízo de todas as crianças membras da Comunidade; (vii) descumpriu o Estado com o dever de não discriminar, contido no art. 1.1 da CADH, em relação aos direitos reconhecidos nos artigos 21.1, 8.1, 25.1, 4.1, 3 e 19 da mesma Convenção.


Caso Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Honhat (Nossa Terra) Vs. Argentina

No Caso Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) Vs. Argentina, a CtIDH declarou a Argentina responsável pela violação aos direitos de 132 comunidades indígenas que habitavam a Província de Salta.


No caso Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) Vs. Argentina, a CtIDH destacou que o próprio Estado argentino, em sua Constituição Nacional, inclui o direito ao meio ambiente saudável, à alimentação e à saúde, os quais estão vinculados estreitamente ao direito à água. Particularmente, a Constituição de Salta, província na qual os indígenas da Associação Nuestra Tierra viviam, coloca, em seu art. 83, que “o uso das águas de domínio público destinadas às necessidades de consumo da população é um direito desta”, além de também afirmar o direito à alimentação e à saúde.


Nessa oportunidade, a Corte destacou que, assim como o direito a um meio ambiente saudável, à alimentação adequada e à saúde, o direito à água se encontra protegido pelo artigo 26 da CADH (desenvolvimento progressivo). Contudo, a CtIDH reforçou que o direito à água também está vinculado e pode decorrer de outros direitos, como, por exemplo, do direito a participar da vida cultural, o qual também é tratado na sentença do caso Nuestra Tierra. A CtIDH pontua que tanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em seu artigo 25, quanto o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos Sociais e Culturais (PIDESC), em seu artigo 11, contemplam o direito a um “nível de vida adequado”. O direito a um nível de vida adequado, segundo a Corte Interamericana, deve incluir o direito à água, como também já afirmou o Comitê DESC, o qual também considerou a sua relação com outros direitos, como à saúde.


Adicionalmente, a Corte ressaltou que a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em sua Resolução 64/292 de 28 de julho de 2010, sobre “O Direito Humano à Água e ao Saneamento”, reconhece que “o direito à água potável e ao saneamento é um direito humano essencial para o pleno desfrute da vida e de todos os direitos humanos”.


Em relação à OEA, a CtIDH afirmou que, na Carta Social das Américas, em seu art. 9, Capítulo III, afirma-se que “os Estados reconhecem que a água é fundamental para a vida e para o desenvolvimento socioeconômico e à sustentabilidade ambiental e que “se comprometem a continuar trabalhando para garantir o acesso à água potável e aos serviços de saneamento para as atuais e futuras gerações”. Ainda, nas Resoluções 2349/07 (“A água, a saúde e os direitos humanos”) e 2760/12 (“O direito humano à água potável e ao saneamento") adotadas pela Assembleia Geral da OEA, a importância da água foi reconhecida expressamente. No art. 4° da Resolução 2349/07, diz-se que a água é “indispensável para poder viver uma vida com dignidade”, assim como é essencial “o uso ancestral da água por parte das comunidades urbanas, rurais e povos indígenas, no marco de seus usos e costumes, conforme as respectivas legislações nacionais”. Por fim, o direito à água também se encontra contemplado no art. 12 da Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos das Pessoas Idosas.


De acordo com a CtIDH, seguindo o entendimento do Comitê DESC, o acesso à água “compreende o consumo, o saneamento, a lavagem, a preparação de alimentos e a higiene pessoal e doméstica”, assim como, para alguns indivíduos e grupos, compreende “recursos de água adicionais em razão de saúde, clima e condições de trabalho”.


Pontuou também a CtIDH que o acesso à água implica obrigações de realização progressiva, porém que, apesar disso, os Estados têm obrigações imediatas, como garantir o acesso à água sem discriminação e adotar medidas para a sua plena realização. Dentro do dever de garantia, contemplado no art. 1.1 da CADH, encontra-se o de o Estado fornecer proteção frente a atos de particulares, impedindo que terceiros prejudiquem o desfrute ao direito à água, assim como cabe ao Estado garantir um mínimo essencial de água nos casos particulares de indivíduos ou grupos de pessoas que não estejam em condições de, por eles próprios, acessarem tal direito por razões alheias a sua vontade.


A Corte, por vez, reiterou a determinação do Comitê DESC, segundo a qual os Estados devem prestar atenção às pessoas e grupos de pessoas que tradicionalmente têm dificuldades para acessar o direito à água, incluindo-se os povos indígenas. Assim, os Estados devem garantir-lhes que o acesso a recursos de água em suas terras ancestrais seja protegido de práticas ilícitas e, ainda, deve facilitar a estes povos os recursos para que possam planejar, exercer e controlar o acesso à água; no que tange às comunidades nômades, os Estados devem garantir-lhes o acesso à água potável em seus locais de acampamento tradicionais.

Desse modo, a Corte determinou que o Estado violou o direito à propriedade comunitária (art. 21 conectado aos arts. 8, 25, 1.1 e 2 da CADH), por não ter titulado e demarcado os territórios indígenas adequadamente e por não possuir normas adequadas para garantir tal direito. Ainda, a Corte determinou a violação ao meio ambiente sadio, à alimentação adequada, à água e à participação cultural (art. 26 com relação ao art. 1.1 da CADH), uma vez que o Estado argentino permaneceu inerte frente a atividades que, desenvolvidas na região sem consulta prévia às comunidades, afetaram negativamente o meio ambiente e o modo tradicional de acesso aos alimentos e à água por parte desses povos, violando sua identidade cultural.


*Fernanda Izidio Câmara e Ana Letícia Skudlarek são membros do Observatório Cosmopolita do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.


REFERÊNCIAS

CIDH. Declaração 1/2020. COVID-19 e Direitos Humanos: os problemas e desafios devem ser abordados a partir de uma perspectiva de direitos humanos e com respeito às obrigações internacionais. OEA. 2020. p. 2; CIDH. Resolución 1/2020. Pandemia e Direitos Humanos Nas Américas. OEA. 2020; CIDH. Resolução 35/2020. Medida Cautelar No. 563-20. Membros dos Povos Indígenas Yanomami e Ye’kwana em relação ao Brasil. OEA, 2020.

CIDH. Situación de los derechos humanos de los pueblos indígenas y tribales de la Panamazonía. 29 de septiembre de 2019. (Documentos oficiales ; OEA/Ser.L/V/II); Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ONU. Comentário Geral n.º 14: artigo 12º (O Direito ao Melhor Estado de Saúde Possível de Atingir). 2000; Corte IDH. Caso Comunidades Indígenas Miembros de la Asociación Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) Vs. Argentina. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 6 de febrero de 2020. Serie C No. 40089; Corte IDH. Caso Comunidad Indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguay. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 29 de marzo de 2006. Serie C No. 14615; Corte IDH. Caso Comunidad Indígena Xákmok Kásek Vs. Paraguay. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de agosto de 2010. Serie C No. 21435; Corte IDH. Caso Comunidad Indígena Yakye Axa Vs. Paraguay. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 17 de junio de 2005. Sentencia C No. 125; Corte IDH. Corte Interamericana de Derechos Humanos Caso de los “Niños de la Calle” (Villagrán Morales y otros) Vs. Guatemala. Sentencia de 19 de noviembre de 1999; Corte IDH. Caso Poblete Vilches y otros vs. Chile. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 8 de marzo de 2018. Sentencia C No. 349.

CAMBRICOLI, Fabiana. COVID: vacinação vai começar só em março e vai priorizar idoso, profissionais de saúde e indígenas. O Estado de São Paulo, São Paulo, 01 de dezembro de 2020. Disponível em: <https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,idosos-acima-de-75-profissionais-de-saude-e-indigenas-serao-os-primeiros-vacinados-contra-covid,70003535809>. Acesso em: 09/12/2020. INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Plataforma de monitoramento da situação indígena na pandemia do novo coronavírus (Covid-19) no Brasil, 2020. Página Inicial. Disponível em: <https://covid19.socioambiental.org/?gclid=Cj0KCQiAtqL-BRC0ARIsAF4K3WFj-s8R6vr5Bi3uZk_86mPfsm5mm3MNXgCFrMFEvDyHtC9D7cxX54UaAjUsEALw_wcB>. Acesso em: 27 nov. 2020. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709. Brasília: Supremo Tribunal Federal; 2020.


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