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A separação de crianças migrantes e a reunião familiar no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

Por Isabella Louise Traub Soares de Souza e Alcebiades Meireles Meneses



“Latinoamérica, un pueblo sin pierna pero que camina”

Latinoamerica, Calle 13



Foto: Associated Press / "Um menino da América Central buscando asilo corre pelo corredor de um abrigo em San Diego depois de chegar de um centro de detenção de imigração em 11 de dezembro de 2018. Especialistas dizem que quando os pais são detidos ou deportados, o trauma das crianças pode durar muito tempo."



Todos os dias milhares de pessoas são obrigadas a se deslocar pelo mundo em busca de segurança, proteção ou melhores condições de vida. De acordo com o relatório Informe sobre las Migraciones en el Mundo 2020, da Organização Internacional para as Migrações (OIM), em 2019 havia cerca de 272 milhões de migrantes internacionais, o que corresponde a 3,5% da população mundial. Quanto aos deslocamentos forçados, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), no relatório Global Trends: forced displacement in 2020, apresentou que até o final de 2020 mais de 82,4 milhões de pessoas se encontravam em situação de deslocamento forçado pelo mundo, sendo estas refugiadas, deslocadas internas ou solicitantes de refúgio. Esses dados indicam que 1% da população mundial se encontra deslocada.


Assim, é importante destacar a diferença entre migrante e refugiado. O primeiro se refere à pessoa que se desloca dentro de seu próprio país ou em âmbito internacional buscando melhores condições de vida, muitas vezes motivados por questões econômicas ou educacionais, podendo retornar ao seu país de origem a qualquer momento. Já o refugiado, nos termos da Convenção de 1951, é aquele que cruza fronteira internacional por motivos de fundado temor e/ou perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a grupo social ou opinião política, como também pela grave e generalizada violação de direitos humanos, conforme conceito ampliado pela Declaração de Cartagena (1984). Assim, pode-se dizer que todo refugiado é migrante, mas nem todo migrante é refugiado.


Dentro do conceito geral de migrante, há diversas categorias, tal como refugiado e deslocado interno. Este último se refere às pessoas que se deslocam dentro do seu próprio país. Uma categoria específica na conceituação de migrante e que gera o deslocamento forçado de milhares de pessoas todos os dias. Esses deslocamentos se dão por motivos de guerras, conflitos, crises políticas e/ou econômicas, perseguições, dentre outros. Ao longo do caminho percorrido, diversas situações acometem aqueles que migram, podendo gerar diversos traumas, tal como a separação de uma família. Muitos são os motivos pelos quais as famílias acabam se separando, o que pode ocorrer de forma consciente e/ou deliberada ou de forma acidental, quando algum ente da família acaba se perdendo dos demais.


A separação de uma família pode gerar inúmeros danos, principalmente quando envolve uma criança, podendo se mostrar uma experiência dolorosa, perigosa e aterrorizante. Entre 2010 e 2019, cerca de 400 mil crianças desacompanhadas ou separadas solicitaram asilo pelo mundo. De acordo com o ACNUR, apenas em 2019 foram mais de 153 mil pedidos de refúgio por parte deste público. O ACNUR estabelece a distinção entre crianças desacompanhadas e separadas, além de diretrizes para proteção. As primeiras são aquelas que foram separadas dos pais e de outros familiares, não tendo um adulto responsável por sua tutela, por lei ou costume. Já as crianças separadas são aquelas que se encontram acompanhadas de algum adulto ou membro de sua família, mas que não são os seus pais ou representantes legais.


A reunião familiar consiste, portanto, no reencontro dos familiares, possibilitando a convivência da unidade familiar, contribuindo com a proteção integral, segurança e bem-estar de todos. Assim, o presente artigo visa apresentar a temática da separação de crianças migrantes e reunião familiar no Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), abordando e correlacionando o Caso Família Pacheco Tineo vs. Bolívia e as Opiniões Consultivas (OC) 17/02 e 21/14.

Caso Família Pacheco Tineo vs. Bolívia (2013)

O caso faz referência à família peruana Pacheco Tineo, que buscou refúgio na Bolívia em 1995 devido à perseguição sofrida pelo Governo Fujimori, e teve o status de refugiado reconhecido. Contudo, por sofrerem diversas violações neste país e sob pressão, aceitaram a repatriação voluntária ao Peru. Em 2001, a família ingressou novamente à Bolívia, onde tiveram seus documentos retidos, e a senhora Pacheco foi detida. Ao adentrarem na Bolívia, estando com os requisitos supostamente preenchidos para a solicitação de refúgio, obtiveram o pedido negado após deliberação sumária do Comitê Nacional para Refugiados. A família não foi notificada da decisão, sendo deportada para o Peru. Foram expulsos com atos de violência, sem direito à assistência consular, devido processo legal, proteção às crianças e possibilidade de recorrer da decisão denegatória. Ao voltar ao Peru, a família acabou presa e separada. A família, após ser processada e absolvida, encaminhou o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).


Em atenção às violações apresentadas, a CIDH analisou o mérito nos seguintes aspectos: i) direitos e garantias judiciais e proteção judicial com relação ao direitos de circulação e residência, especificamente quanto à expulsão de migrantes e de solicitantes de refúgio; ii) direito à integridade pessoal; iii) dever de especial proteção às crianças em relação ao direito de proteção da família, garantias e proteção judicial; e iv) dever de adotar disposições de direito interno e o princípio da legalidade. Após o processamento do caso, a Corte IDH considerou o Estado responsável pelas violações dos artigos 22.7, 22.8, 8 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) com relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, além dos artigos 17 e 19 com relação aos artigos 22.7, 22.8, 8, 25 e 1.1, e o artigo 5.1 em relação ao artigo 1.1, todos da CADH.


Quanto ao dever de especial proteção às crianças, a Corte IDH afirmou que, no caso de um requerente de refúgio receber dita proteção, os demais membros, principalmente crianças, podem receber o mesmo tratamento e/ou se beneficiar do reconhecimento. Durante este procedimento, as crianças devem ser ouvidas pelas autoridades e deve ser garantido o interesse superior da criança, em consonância com a Convenção da ONU sobre o Direito das Crianças e o artigo 17 da CADH. Acerca da proteção da família, a Corte IDH considerou que o artigo 17 da CADH não se refere apenas à obrigação do Estado em implementar medidas de proteção às crianças, mas também de promover e favorecer o desenvolvimento e fortalecimento do núcleo familiar. Assim, a separação de crianças de sua família constitui uma violação de direitos humanos, de forma que separações só podem acontecer se forem devidamente justificadas de acordo com o interesse superior da criança, de forma excepcional e temporária, o que não aconteceu no referido caso.


Foto: Adrees Latif/Reuters / "Famílias da América Central sentam-se à beira da estrada enquanto esperam para serem transportadas para uma instalação de processamento de patrulha de fronteira dos EUA depois de cruzar o Rio Grande para os Estados Unidos saindo do México."


Ainda, a Corte IDH entendeu que a separação de crianças dos seus pais pode colocar em risco a sua sobrevivência e o seu desenvolvimento, podendo ensejar a violação do artigo 19 da CADH, que trata sobre o direito de proteção à família. Assim, o Estado tem o dever de zelar pelo interesse superior da criança e pela unidade familiar, evitando casos de separação, observando os dispositivos, normativas e demais instrumentos que tratam sobre a temática.


Opiniões Consultivas 17/02 e 21/14


Nesse sentido, as Opiniões Consultivas da Corte IDH OC 17/02, acerca da interpretação dos artigos 8 e 25 da CADH - que versam sobre os direitos da criança - e a OC 21/14, sobre os direitos de crianças e adolescentes em situação migratória, abordam em seu escopo a questão relativa ao dever estatal de proteção ao interesse superior da criança e da reunião familiar.


A OC 17/02, solicitada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em Março de 2001, abordou o tema das garantias judiciais e do acesso à justiça à luz do artigo 19 da CADH. Um dos questionamentos realizados pela CIDH foi justamente a separação das crianças e adolescentes de seus pais e como os Estados deveriam proceder. Nesse sentido, a Corte recorreu à Convenção da ONU sobre os direitos da criança, que prevê uma série de artigos cuja referência é o interesse superior da criança para uma devida proteção dos seus direitos.


Ainda dentro da lógica do maior interessado, no parágrafo 62, a Corte faz referência ao Protocolo de São Salvador, em que há uma forte recomendação em não se separar pais e filhos, pois, como prescrito no protocolo, toda criança tem o direito de crescer sob a responsabilidade dos próprios pais. A Corte também menciona as diretrizes de Riad, outro documento que ressalta a importância da família na preservação dos direitos infantis, imputando ao Estado a responsabilidade de preservar a estabilidade do núcleo familiar, além da necessidade de levar em conta o interesse do menor em decisões que o separem da família. Para concluir, a não proteção do direito à vida familiar e a ausência do fator “maior interesse da criança”, segundo a Corte, podem sim violar conjuntamente os artigos 17 e 19 da CADH em conexão ao 1.1.


Já na OC 21/14, solicitada pelos Estados da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai em julho de 2011, a Corte tratou especificamente da situação de crianças migrantes e dos deveres do Estado referentes à proteção das mesmas. Inquirida sobre o alcance da proteção de meninos/as de não serem apartados de suas famílias, questão 9 do petitório dos Estados solicitantes, a Corte primeiramente esclareceu algumas imprecisões conceituais, dentre as quais destaca-se a aplicação dos termos “expulsão” e “deportação” como sinônimos.

Feitas as ressalvas conceituais, a Corte ressaltou a importância do direito das crianças à vida familiar, além do fato de que o interesse maior da criança tem que ser levado em conta em decisões que a venham separar dos pais. Apesar de tais ressalvas e da importância de preservar os direitos da criança, levando em conta as Convenções e protocolos que as protegem, a Corte destacou, no parágrafo 275, a prerrogativa dos Estados em formular suas próprias legislações migratórias, alegando ser possível a separação familiar, desde que respeitado os princípios já citados anteriormente.


Diante desse aparente impasse, a Corte ressalta a importância de que os requisitos de idoneidade, necessidade e proporcionalidade sejam cumpridos em tais situações, visando a preservação da sociedade democrática. O requisito da idoneidade, segundo a Corte, seria cumprido pela perseguição a um objetivo específico, visando o interesse público imperativo e relevante; Já o requisito da necessidade seria alcançado ao se cumprir, da maneira mais efetiva possível, determinada medida. E a proporcionalidade, por fim, se daria de forma estrita, para evitar ao máximo restrições de grandes proporções aos direitos protegidos.


Levando em conta esses três princípios, a Corte entendeu que o Estado deve observar as seguintes ações nos casos de separação familiar: I. O contexto migratório da família; II. A questão da nacionalidade da criança e III. Os efeitos de uma possível expulsão de um ou ambos os progenitores da criança.


Por fim, a Corte concluiu que, ao levar em conta todos os poréns de uma expulsão de progenitores na vida familiar da criança migrante e em seus respectivos direitos, o Estado deverá assegurar o direito desse mesmo indivíduo de se manifestar dentro do devido processo legal, pois, afinal, o interesse da criança é um princípio reitor.


Separação de crianças migrantes e reunião familiar: direitos ainda em debate no Sistema


Foto: David Maung/EPA / Criança de cinco anos em uma vigília de Julho para jovens migrantes da América Central, na Califórnia.


No Caso Família Pacheco Tineo, verifica-se a separação forçada entre crianças e seus pais por parte do Estado. Assim, tem-se que a separação de crianças migrantes pode acontecer de três formas: i) consciente e/ou deliberada pela própria família; ii) por se perderem ao longo do caminho migratório; e iii) por atuação discricionária do Estado.


Tanto o Caso mencionado quanto às Opiniões Consultivas 17/02 e 21/14 tratam da separação de crianças de seus pais e trazem luz sobre como deve se dar a atuação estatal nestes casos, visando a reunificação familiar. Todavia, cabe destacar que o instituto da reunião familiar ainda não se encontra tão bem consolidado no SIDH, pois, apesar do destaque ao respeito aos direitos das crianças migrantes, a Corte IDH ainda não se debruçou especificamente sobre a temática. Ainda, na OC 21/14, é válido ressaltar a importância dada pelo SIDH aos princípios do interesse superior da criança, do usufruto de uma devida vida familiar (e privada) e da proteção da família como partes importantes do Sistema de Proteção de Direitos Humanos no continente.


Nesse sentido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no relatório Debido proceso en los procedimientos para la determinación de la condición de persona refugiada y apátrida, y el otorgamiento de protección complementaria, acentuou que a separação de crianças do seu núcleo familiar somente pode ser realizada quando existir justificativa baseada no superior interesse da criança e por um determinado período. Ainda, tal direito deve ser ponderado junto ao direito à unidade familiar em qualquer procedimento que possa implicar a separação. Os Estados devem garantir a reunião familiar de pessoas separadas e evitar medidas que resultem na separação forçada do núcleo familiar.


Ainda há muito a ser feito quanto à proteção efetiva dos direitos da criança migrante e, principalmente, quanto aos institutos da separação de crianças migrantes de seu núcleo familiar e a reunião familiar, visto que o referido balanceamento ou contraposição posta pela Corte IDH entre direitos das crianças migrantes e a soberania estatal pode abrir margem para violações de direitos por parte do Estado, a ver, os graves relatos advindos da fronteira dos EUA com o México, na qual os pais foram deportados sem suas crianças, ocasionando na separação definitiva dessas dos seus pais.


É para evitar que mais casos, como o relatado na fronteira de México e EUA, que o interesse superior da criança e seus respectivos direitos devem ser levados em conta por primeiro, faltando a Corte IDH nos documentos relatados nesse artigo, um maior detalhamento procedimental de como um Estado deve proceder nessas situações. Por fim, apesar dessa falta de detalhamento, os instrumentos e materiais que vêm sendo desenvolvidos pela CIDH e pelo ACNUR são fundamentais quando da análise de casos envolvendo crianças migrantes separadas ou desacompanhadas, visando a reunião familiar, bem-estar, desenvolvimento e o superior interesse da criança, como forma de estabelecer diretrizes e parâmetros de proteção.



* Isabella Louise Traub Soares de Souza é mestre em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Advogada. Pesquisadora do NESIDH/UFPR desde 2020. Alcebiades Meireles Meneses é graduando em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pesquisador do NESIDH/UFPR desde 2017.


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