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Caso sobre a delimitação marítima do oceano Índico (Somalia v. Kenya) na CIJ

Por Gabriel de Oliveira Borba e Lucas Lixinski Arnhold*


Foto: BBC/ICJ.


Após quase dois anos, a Corte Internacional de Justiça deu prosseguimento ao caso Somália v. Kenya no último mês de março. O caso diz respeito às controvérsias dos dois países africanos no que cerne as delimitações marítimas do oceano Índico. No presente artigo, será debatido o contexto que levou ao conflito, seus desdobramentos na Corte Internacional de Justiça desde 2014 e a sentença proferida em outubro.


Contexto


O Caso sobre a delimitação marítima do oceano Índico remete a disputa entre a Somália e o Quênia, dois países do Chifre da África. A controvérsia entre as duas nações vizinhas origina-se de um desacordo sobre a qual direção suas respectivas fronteiras devem se estender no Oceano Índico. A área contestada forma um triângulo oceânico que ocupa uma área aproximada de mais de cem mil quilômetros quadrados. Além da contestação fronteiriça, a região é de alto interesse geoeconômico para ambas as nações, pois além de possuir uma rica reserva marítima que possibilita a atividade da pesca, acredita-se também no grande potencial para exploração de petróleo e gás natural.


Cada um dos países apresenta um entendimento diferente sobre o prosseguimento de seus traçados fronteiriços. De acordo com a Somália, a fronteira marítima deve ser uma extensão da mesma direção em que sua fronteira terrestre passa ao se aproximar do Oceano Índico, ou seja, em direção ao sudeste. O Quênia, por outro lado, argumenta que a fronteira sudeste territorial deve ter um reajuste de 45 graus ao atingir o mar, e então correr em uma direção latitudinal, ou seja, paralela ao equador.

Antes do início do litígio, foram realizadas tentativas bilaterais e esforços diplomáticos por alguns anos. Contudo, a falta de consenso e acusações de ambas as partes denunciando o fato de que áreas de do território em disputa começaram a ser vendidas ou anunciadas em leilões para grandes companhias de exploração foram fatores definitivos para o impasse que fez a disputa chegar à Corte Internacional de Justiça.


O caso na Corte Internacional de Justiça


Após negociações diplomáticas infrutíferas, em 2014, a República Federal da Somália decidiu instituir processo contra a República do Quênia recordando que ambos países reconheceram a jurisdição compulsória da corte, presente no artigo 36 (2) do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, ao proferir declarações nos anos 60. Somália também aduziu o artigo 282 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, visto que, diante de disputas sobre interpretações derivadas do conteúdo do tratado, seu texto abre margem para que as partes submetam suas dúvidas a um procedimento vinculativo. Seguindo os fundamentos presentes no Direito Internacional Público, a Somália almeja que a CIJ determine, com precisão geográfica, as delimitações marítimas e suas milhas náuticas, incluindo a plataforma continental depois de 200 milhas (321,87 km). Elucidando as coordenadas exatas das áreas marítimas do Quênia e da Somália no Oceano Índico.


Em seu memorial, a República do Quênia apresentou algumas objeções preliminares sobre a jurisdição da corte e a admissibilidade do processo. O Estado não questionou a jurisdição compulsória da corte, entretanto, expôs que ambos os países já tinham expressamente acordado outro método para resolução de conflitos, fazendo menção ao Memorando de Entendimento registrado pelas Nações Unidas em abril de 2009. Por conseguinte, segundo o Quênia, as declarações proferidas em 1965, que admitem a jurisdição compulsória da Corte, não podem ser invocadas aqui, dado que o seu texto exclui a jurisdição se for acordado outras alternativas para solucionar a disputa.


Foto: Membros da Delegação da Somália no dia do julgamento, em 12 de outubro de 2021 / UN Photo / ICJ-CIJ / Frank van Beek.


No julgamento das objeções preliminares, a Corte Internacional de Justiça relembrou o intuito do Memorando de Entendimento em apenas estabelecer as delimitações da plataforma continental, portanto, não se estende às outras delimitações marítimas ou cria alternativas para solucionar a disputa. A partir dessa constatação, utilizando os artigos da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar e do Memorando de Entendimento, a CIJ decidiu que possui jurisdição sobre o caso.


Após o procedimento ficar inerte por quase dois anos, a audiência pública foi realizada no último mês de março sem a presença da República do Quênia. A República Federal da Somália trouxe novos documentos para corroborar com seus argumentos e adjudicou a existência de violações de direito internacional por parte do Quênia, requerendo reparações que incluem acesso a dados (técnicos, geológicos, batimétricos) das áreas determinadas pela Corte.


Recentemente, ambos os países submeteram novos documentos e comentários escritos sobre as delimitações marítimas. Nos próximos meses, a Corte Internacional de Justiça deverá marcar uma nova audiência para proferir sua sentença sobre o caso.


A decisão da Corte Internacional de Justiça


Em primeiro momento, a Corte endereçou o argumento do Quênia sobre a existência de um entendimento implícito entre os litigantes sobre os limites de suas fronteiras marítimas, da extensão de suas zonas econômicas exclusivas e da plataforma continental dentro de duzentas milhas náuticas. Segundo as alegações quenianas, tal consentimento tácito era demonstrado pela ausência de uma contestação prolongada por parte da Somália e também pelas atividades conduzidas no oceano de acordo com o entendimento fronteiriço. A CIJ concluiu que somente as condutas das partes não foram suficientes para provar que a Somália havia concordado de forma clara e consistente com a fronteira marítima reivindicada pelo Quênia. Esse entendimento vai de encontro ao racional de necessidade de um nível claríssimo de evidências, encontrado em casos como Nicarágua v Honduras, da própria CIJ, e Gana v. Costa do Marfim, do Tribunal Internacional do Direito do Mar (ITLOS), para determinar uma fronteira marítima.


Foto: Pescadores da costa do Quênia protestam sobre a disputa marítima legal entre o Quênia e a Somália no Oceano Índico / Tony Karumba / AFP.


Superada a questão sobre a possível existência de um consenso, a Corte então voltou-se para a delimitação da fronteira marítima em disputa. Primeiro, o tribunal se debruçou sobre a identificação de fatores geográficos como costas e linhas de base relevantes e a extensão exata de áreas sobrepostas. Em segundo passo, investigou-se a existência de qualquer evidência de acordo implícito ou explícito pertinentes à questão. No terceiro passo, a CIJ desenhou os limites do mar territorial de cada país usando uma regra de linha mediana para circunstâncias especiais. Por último, determinou-se as posições das zonas econômicas exclusivas e da plataforma continental. Nesse sentido, a Corte seguiu uma metodologia consolidada em outros casos de demarcação territorial marítima.

O processo utilizado pela CIJ foi composto por três estágios, descritos no caso Maritime Delimitation in the Black Sea (Romania v Ukraine). É importante ressaltar que as regras de delimitação de mar territorial, plataforma continental e zona econômica exclusiva são descritas respectivamente nos artigos 15, 74 e 83 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS).


O primeiro estágio do procedimento foi o estabelecimento de uma linha equidistante provisória, pautada por critérios geométricos, partindo de um ponto nas costas litorâneas das partes. No segundo estágio, considerou-se se quaisquer circunstâncias relevantes tornava necessário o ajuste ou movimentação da linha provisória para que não houvesse prejuízos de caráter equitativo. Na última parte do processo, a Corte se empenhou em um exercício de análise retroativa de parâmetros para concluir se alguma das partes teria um resultado injusto. Por fim, a CIJ decidiu que a linha equidistante determinada ao longo do processo metodológico de delimitação marítima passaria a ser a única fronteira para o mar territorial, as zonas econômicas exclusivas e também da plataforma continental dentro e além de 200 milhas náuticas.


Sobre a acusação feita pela Somália de que o Quênia estaria violando seus direitos soberanos, a Corte considerou que, quando as reivindicações marítimas de Estados se sobrepõem, às atividades marítimas realizadas por um Estado em uma área que é posteriormente atribuída a outro Estado por uma sentença não podem ser consideradas como uma violação dos direitos soberanos deste último. Com relação a argumento de que o Quênia teria violado os parágrafos nº três dos artigos 74 e 83 da UNCLOS ao promover atividades como exploração de petróleo e dificultou, dessa forma, a chegada a um acordo, a CIJ determinou que há evidências fortes o suficiente para caracterizar dessa maneira a conduta queniana.


A presidente, em seu parecer separado, reafirmou que a Corte tem alçada para delimitar até os limites da plataforma continental. Qualquer outra delimitação além da plataforma, deverá ser feita pela Somália e Quênia com base nas recomendações da Comissão de Limites da Plataforma Continental (CPLC), criada pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar para fornecer apoio científico e técnico aos signatários, ou até que atinja outros Estados. Joan Donoghue se atentou principalmente ao fato de ainda existir um procedimento pendente sobre os limites externos à plataforma continental na Comissão (CPLC), logo, a CIJ não poderia se posicionar sobre qualquer área além da plataforma continental.

O juiz Patrick Lipton Robinson, reiterou as afirmações da presidente ao proferir que a presente Corte foi precisa ao ignorar o pedido de definição da plataforma continental externa, dado que nenhuma das partes apresentou informações relevantes e confiáveis que pudessem confirmar qualquer existência de uma margem além das 200 milhas (321,87 km)


Conclusão


Após quase oito anos desde o início do procedimento instituído pela República Federal da Somália, o complexo caso sobre a delimitação marítima do oceano Índico chega ao seu fim. Durante esses anos, os juízes se debruçaram sob diversos fatores não-geográficos invocados pelas partes e pela ausência da República do Quênia que se recusou a participar das audiências públicas. A decisão proferida pela Corte Internacional de Justiça pode ser compreendida como mais um passo para o desenvolvimento das jurisprudências sobre delimitação marítima, utilizando métodos convencionais como a geografia costeira dos países, por exemplo.





*Gabriel de Oliveira Borba e Lucas Lixinski Arnhold são pesquisadores do Observatório Cosmopolita da Corte Internacional de Justiça.



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