*Por Ana Letícia Szkudlarek e Giovanny Padovam Ferreira.
Foto: Corte Interamericana de Derechos Humanos.
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) é o principal mecanismo de proteção e promoção dos direitos humanos nas Américas. Inaugurado em contexto de pós-Segunda Guerra Mundial[1], o SIDH é composto por dois principais órgãos: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).
Criada em 1959, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) é órgão autônomo e um dos principais[2] da Organização dos Estados Americanos (OEA). O mandato da CIDH é estabelecido através da Carta da OEA (art. 106), instrumento jurídico vinculante que consagra a Organização. Em início, à CIDH cabia apenas a observância da proteção dos direitos humanos nas Américas, entretanto, devido à ampliação de seus poderes, passou a, também, controlar e supervisionar os direitos humanos na região[3]. A Comissão, cuja sede se localiza em Washington, D.C (art. 16.1, Estatuto da CIDH), cumpre com suas funções e atribuições através, dentre outras coisas, da realização de visitas in loco aos Estados membros da OEA, do recebimento de petições ou comunicações sobre violações de direitos humanos, da emissão de relatórios anuais sobre os progressos e retrocessos dos direitos humanos na região e da publicação de recomendações gerais a alguns Estados[4]. A CIDH também é órgão consultivo à Organização[5].
No que tange às violações de direitos humanos, a Comissão Interamericana aplica dois principais instrumentos aos Estados membros da OEA: a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (DADH) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica. A DADH, apesar de ter dispositivos que se equiparam a costumes e princípios internacionais[6], é instrumento jurídico não vinculante aos Estados membros da OEA. Diferentemente, a CADH é instrumento vinculante aos Estados que a ratificam. Assim, se um Estado membro da OEA ainda não ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), será a ele aplicada a DADH. Caso, porém, o Estado já tenha ratificado a CADH, a Convenção será aplicada prioritariamente, ao passo que a Declaração será utilizada de modo subsidiário[7].
Foto: Arquivo/omissão Interamericana de Direitos Humanos.
Além da Comissão Interamericana, faz parte do SIDH a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Instituída em 1979, a Corte é órgão judicial e autônomo da OEA[8]. Conforme o art. 1° de seu Estatuto, tem, por principal objetivo, a aplicação, interpretação e cumprimento da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH). A Corte possui funções contenciosa e consultiva, dispostas, respectivamente, nos artigos 62.1 e 64.1 da CADH, localizando-se sua sede em San José, na Costa Rica.
Uma vez que a Convenção Americana não esgota, em si, a matéria de direitos humanos, outros Protocolos e Convenções surgiram no sentido de complementá-la, construindo um cenário de maior proteção aos direitos humanos nas Américas[9].
Abaixo, trataremos de cinco perguntas sobre o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, indagações comuns a iniciantes e iniciados ao SIDH. São noções importantes para o acompanhamento das futuras atividades do Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Um indivíduo pode apresentar um caso perante a Corte Interamericana?
Não é possível um indivíduo peticionar perante a Corte IDH. Segundo o artigo 61 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), somente os Estados Partes da CADH e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) têm direito de submeter casos à decisão da Corte IDH. Para que um Estado Parte possa fazê-lo, é necessário que preencha os requisitos do artigo 62.3 da CADH.
Perante a Comissão, qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não-governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados membros da OEA, pode apresentar petições que contenham denúncias ou queixas de violações à Convenção Americana sobre Direitos Humanos perpetradas por um Estado Parte, como dispõe o art. 44 da CADH.
Além disso, um Estado Parte também pode apresentar demandas à Comissão, comunicando-a sobre violações perpetradas por um outro Estado Parte, desde que declare que reconhece essa competência específica da CIDH e que o Estado demandado também tenha feito essa declaração, conforme o art. 45 da Convenção Americana.
Faz crítica, no entanto, o magistrado brasileiro Antônio Augusto Cançado Trindade, membro atual da Corte Internacional de Justiça (CIJ) e antigo juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, à impossibilidade de indivíduos acessarem diretamente a Corte IDH. Reforça Trindade que o locus standi in judicio dos indivíduos perante a Corte IDH há que evoluir para que se reconheça, finalmente, o direito de os indivíduos demandarem os Estados Partes de modo direto ante a Corte Interamericana, levando diretamente à Corte casos concretos[10]. O jurista destaca o seu entendimento defendendo que “o direito de petição individual abriga, com efeito, a última esperança dos que não encontraram justiça em nível nacional”, sendo “indubitavelmente a estrela mais luminosa no firmamento dos direitos”[11].
Como são escolhidos os comissionários da CIDH e os juízes da Corte IDH?
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) compõe-se de sete membros, que devem ter significativa autoridade moral e reconhecido saber em matéria de direitos humanos[12], eleitos a título pessoal mediante lista proposta pelos Estados membros da OEA[13]. Os mandatos são de quatro anos e os comissionários podem ser reeleitos apenas uma vez[14]. Cada Estado membro da OEA poderá apresentar, para a lista a ser proposta, até três candidatos, nacionais do próprio Estado ou de qualquer outro Estado membro da Organização. Em caso de indicação tríplice, deverá ao menos um dos candidatos ser de Estado membro diferente do proponente[15]. A votação ocorre em Assembleia Geral da OEA e é secreta[16], sendo eleitos aqueles que obtiverem o maior número e a maioria absoluta de votos dos Estados membros[17]. Entretanto, não pode fazer parte da Comissão mais de um nacional de um mesmo Estado[18].
A Corte Interamericana de Direitos Humanos é composta por sete juízes, eleitos a título pessoal, que devem ser nacionais dos Estados membros da OEA e dispor de elevada notoriedade moral e reconhecida competência na matéria de direitos humanos[19]. A eleição se dá por votação secreta e pela maioria absoluta dos Estados Partes da CADH[20], a partir de lista proposta por estes mesmos Estados[21]. Cada um deles pode indicar até três candidatos, que devem ser nacionais do Estado que apresenta a candidatura ou de qualquer outro Estado membro da OEA[22], valendo a mesma regra que impõe a CIDH se houver lista tríplice[23].
Os Estados Partes, a nível nacional, devem escolher os candidatos em um processo transparente e que possibilite a participação da sociedade civil[24]. Entretanto, afirma Pasqualucci que, apesar de alguns Estados Partes - a exemplo do México - disporem de um processo nacional específico para isso, a maior parte não possui. Dessa forma, o que ocorre, no mais das vezes, é que o Poder Executivo simplesmente escolhe os candidatos conforme seus interesses clientelísticos[25].
Havendo já os Estados decidido os candidatos e, finalmente, sendo a lista proposta, as eleições devem ser realizadas, prioritariamente, no período de sessões da Assembleia Geral da OEA[26]. Poderão participar da votação os Estados Partes da CADH[27]. Dentre os candidatos que obtiverem a maioria absoluta dos votos, serão eleitos os que receberem o maior número[28]. Os mandatos dos juízes são de seis anos e a reeleição só pode ocorrer uma vez[29]. Não pode haver, contudo, a eleição de dois ou mais juízes de um mesmo Estado Parte[30].
Além disso, os juízes da Corte IDH, devem possuir as qualificações necessárias para o exercício das mais altas funções judiciais em conformidade com a legislação do Estado membro do qual ele é nacional ou do Estado membro que está propondo a sua candidatura[31]. Ressalta-se que os juízes não são escolhidos como representantes dos Estados, mas, sim, de acordo com os seus conhecimentos e experiências individuais na matéria de direitos humanos[32]. Esses critérios devem ser encarados com seriedade pelos Estados para garantir a independência da Corte IDH e a qualidade de suas decisões.
Os primeiros juízes a serem eleitos para comporem a Corte Interamericana foram figuras da mais alta expertise na área do direito internacional público, no geral, e na do direito internacional dos direitos humanos. Inclusive, quatro dos juízes iniciais da Corte IDH foram presos políticos inúmeras vezes e dois dos juízes da Corte Interamericana, sendo um deles o brasileiro Antônio Augusto Cançado Trindade, foram posteriormente eleitos para a Corte Internacional de Justiça (CIJ)[33].
Foto: Arquivo/Corte Interamericana de Direitos Humanos
No entanto, nos últimos anos, alguns Estados Partes, intencionalmente ou não, têm proposto e elegido certos candidatos que não possuem a experiência que se esperaria na matéria de direitos humanos. Questões políticas influenciam as decisões na OEA, uma vez que, aparentemente, alguns Estados se unem para votar em determinados candidatos com base em meros interesses políticos. No entanto, como a Corte IDH possui apenas sete juízes[34], em comparação aos mais de quarenta juízes da Corte Europeia de Direitos Humanos, os Estados Partes da CADH deveriam ser ainda mais vigilantes quanto à eleição[35].
Nesse contexto, para Jo M. Pasqualucci, uma maneira de tornar a eleição à juiz da Corte IDH mais transparente seria a de possibilitar que associações e instituições nacionais, bem como a sociedade civil pudessem expor suas opiniões a respeito do candidato[36]. Além disso, como também ocorre nas eleições para a Corte Europeia de Direitos Humanos, uma outra possibilidade de aperfeiçoamento seria a de entrevistar os candidatos antes de ser proposta a lista final à OEA, eliminando aqueles que não detêm o conhecimento requerido e os que possam apresentar conflitos de interesse[37].
Quais são os tratados sobre os quais a Corte IDH e a CIDH possuem jurisdição?
Tanto a Corte IDH quanto a CIDH podem reconhecer violações a direitos contidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), conforme seus arts. 33, 44 e 61. Ambos os órgãos também possuem jurisdição quanto às violações ao direito à liberdade sindical e ao direito à educação, previstos no Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), conforme o art. 19.6 do Protocolo.
Para além da CADH e de seu Protocolo adicional, a Corte IDH e a CIDH podem reconhecer violações ao art. 7º da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher[38] (Convenção de Belém do Pará) (cf. art. 21), à Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas (CIDPP) (cf. art. 13)[39], à Convenção Interamericana para Punir e Prevenir a Tortura (CIPPT) (cf. art. 8)[40], à Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Conexas de Intolerância (CIRDI) (cf. art. 15), à Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância (CIDI) (cf art. 15) e à Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos das Pessoas Idosas (CIPDPI) (cf. art. 36)[41].
Todavia, dos principais tratados de direitos humanos das Américas, nem CIDH, nem Corte IDH têm competência para apreciar violações à Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas com Deficiência.
Finalmente, a CIDH tem competência geral para analisar violações de direitos humanos nas Américas. Ela é um órgão da OEA, criado pela própria Carta da OEA (art. 106). Assim, um Estado membro da OEA, ainda que não tenha ratificado nenhum outro tratado de direitos humanos, se submete ao sistema de petições individuais perante a CIDH, a qual terá competência para apurar violações à Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem.
Todos esses são instrumentos internacionais sobre os quais a Corte IDH e a CIDH exercem jurisdição, mas nada impede que Corte e Comissão preencham o sentido das normas dessas convenções recolhendo elementos de outros tratados ou do costume internacional. É o que ocorreu, por exemplo, no caso Cruz Sanchez e outros vs. Peru, de 2015, quando a Corte IDH utilizou o direito internacional humanitário para interpretar violações ao art. 4º da CADH (direito à vida) em situações de conflitos armados que ocorriam no Peru.
Um Estado pode ser responsabilizado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos mesmo após denunciar a CADH?
A denúncia é o ato unilateral pelo qual um Estado comunica sua vontade de se retirar de um tratado. O art. 78 da CADH prevê que os Estados Partes podem denunciar a Convenção, no entanto, o parágrafo segundo deste dispositivo afirma que a denúncia não trará o efeito de desligar o Estado das obrigações da CADH em relação a atos cometidos anteriormente à data da denúncia.
O art. 78, assim, implica que o Estado continuará respondendo à Corte IDH e CIDH – e que elas terão competência para tanto – sobre violações à CADH que ocorreram enquanto o Estado era parte do tratado (e reconhecia a competência da Corte). É o que aconteceu no caso Hilaire, Constantine e Benjamin e Outros vs. Trindad e Tobago, de 2002, ou, mais recentemente, em Díaz Loreto e outros vs. Venezuela, datado de 2019[42].
Assim, mesmo após denunciar a CADH, um Estado pode continuar sendo responsabilizado por atos a ele atribuíveis, que violaram a Convenção e que foram anteriores à denúncia. Essa responsabilização pode acontecer tanto perante a Corte IDH, quanto perante a CIDH.
Do outro lado da moeda, quando um Estado denuncia a CADH, logicamente retira a competência da Corte IDH ou da CIDH para apreciar futuras violações à CADH[43]. No Sistema Interamericano, contudo, ainda subsistirá as competências desses órgãos para apreciar violações à Convenção Interamericana contra o Racismo, à Discriminação Racial e Formas Conexas de Intolerância (CIRDI), à Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância (CIDI) e à Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos das Pessoas Idosas (CIPDPI). São convenções apartadas da CADH e, como todas elas explicitam cláusulas sobre a competência da CIDH e possibilidade de reconhecimento de competência da Corte IDH, a denúncia da CADH em nada deve impactar na jurisdição da Corte ou da CIDH quanto a essas convenções[44].
Foto: Open Democracy/Flickr/CC BY-SA 2.0
Um cenário diferente ocorre com o Protocolo de San Salvador, com a Convenção de Belém do Pará, com a Convenção Interamericana para Punir e Prevenir a Tortura (CIPPT) e com a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas (CIDPP). Nenhum desses tratados contém disposições sobre a possibilidade de um Estado reconhecer especificamente a competência da Corte Interamericana para apurar violações de seus dispositivos.
O Protocolo faz apenas remissão à competência da Corte segundo a CADH (cf. art. 13.6), mencionando que o caso poderá ser submetido à Corte quando cabível, além de ser um tratado vinculado à própria Convenção Americana. Já a Convenção de Belém do Pará menciona, explicitamente, apenas a competência da CIDH (para mais, ver nota de rodapé 1) e não da Corte IDH. Disposição similar está contida na Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas. Por fim, a CIPPT apenas menciona “instâncias internacionais, cuja competência tenha sido aceita [pelo Estado]” (cf, art. 8).
Abre-se, então, a seguinte questão: a denúncia da CADH não arrastaria a incompetência da Corte IDH na apreciação desses tratados? Afinal, (i) a denúncia da CADH engendra a incompetência de a Corte IDH apurar casos do tratado que a fundou - e que, em geral, é avaliado para se descobrir se um Estado reconheceu ou não a competência da Corte IDH. Além disso, (ii) esses tratados não preveem a possibilidade de os Estados reconhecerem a competência de a Corte IDH exercer jurisdição.
Em relação a fatos que aconteceram antes da denúncia da CADH, a jurisprudência da Corte IDH caminha no sentido de reconhecer a competência do tribunal para apreciar as violações a esses instrumentos. Foi o que ocorreu em Lopez Soto vs. Venezuela, de 2018. A Venezuela havia denunciado a CADH em 2012 e os fatos do caso eram anteriores a tal ano. A Corte, então, posicionou-se no sentido de reconhecer violações não só à CADH, como também à Convenção de Belém do Pará e à CIPPT.
Todavia, em relação a fatos que sejam posteriores à denúncia da CADH, a Corte IDH ainda não enfrentou o tema do impacto que a denúncia pode ter na sua jurisdição sobre o Protocolo de San Salvador, a Convenção de Belém do Pará, a CIPPT e a CIDPP. A apreciação da Solicitação de Opinião Consultiva 26, apresentada pela Colômbia, poderá trazer novos elementos para essa análise[45].
Entretanto, desde já, é possível afirmar que pelo menos restará a competência da Comissão para apurar violações à Convenção de Belém do Pará, à CIDPP e à CIPPT.
O art. 12 da Convenção de Belém do Pará prevê explicitamente a competência da CIDH para apurar violações a seu artigo sétimo. De igual forma, a CIDPP prevê a competência da CIDH em seu art. 13.
Já a CIPPT faz menção à possibilidade de os órgãos internacionais que têm competência reconhecida pelo Estado também apurarem violações à CIPPT. Uma vez que a CIDH é um órgão da própria OEA e todo o Estado que é membro da OEA reconhece a competência da CIDH para apurar violações de direitos humanos, ao menos de acordo com a Declaração Americana, deve-se admitir que, mesmo que um Estado denuncie à CADH, a Comissão será competente para apurar violações à CIPPT.
Finalmente, a prevalência da competência da CIDH sobre o Protocolo de San Salvador depende de que a denúncia da Convenção não acarrete a denúncia ou a perda do objeto do Protocolo. Se o entendimento fosse no sentido de acarretar, a CIDH não teria mais competência para analisá-lo. Porém, caso se compreendesse que a denúncia da CADH não leva à denúncia ou à perda do objeto do Protocolo, a competência da Comissão para examiná-lo permaneceria, uma vez que explicitamente mencionada no art. 13.2 do Protocolo de San Salvador.
Apesar dos possíveis questionamentos e reflexões, não há uma resposta concreta. O texto do Protocolo não a traz, a Corte IDH ainda não se manifestou sobre a matéria e a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (art. 56) tampouco explicita uma solução.
O que acontece quando um Estado não cumpre as recomendações de um relatório da CIDH ou de uma sentença da Corte IDH?
Essa pergunta possui a resposta mais direta deste texto, mas provavelmente é, também, a mais complexa. Tanto CIDH quanto Corte IDH submetem relatórios à Assembleia Geral da OEA, inclusive indicando Estados que não cumpriram com suas recomendações (art. 41.b e 65, CADH). À Assembleia Geral da OEA cumprirá exercer sanções políticas. No entanto, não se sabe ao certo quais sanções devem ser aplicadas, pois “única sanção clara à disposição da OEA é a suspensão da participação do Estado pela ruptura do regime democrático. Para as demais violações, a Assembleia usualmente apenas registra o envio do relatório (...), insta os Estados a bem cumprir as deliberações da Comissão e o arquiva”[46].
Como se vê, o descumprimento das recomendações de sentenças e relatórios é avaliada dentro de um jogo da política internacional, carregado de suas nuances e incertezas. Talvez, a única certeza que se tenha é de que o descumprimento pode ser respondido a partir do “poder da vergonha” (power of shame/power of embarrassment). O criticismo público, responsável por envergonhar os Estados e governos que violam direitos humanos e não arbitram as reparações devidas, é um importante artifício do Direito Internacional dos Direitos Humanos que induz ao cumprimento das decisões[47].
*Ana Letícia Szkudlarek e Giovanny Padovam Ferreira são pesquisadores membros do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná (NESIDH-UFPR).
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Bibliografia recomendada:
Estatuto da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/t.Estatuto.CIDH.htm>. Acesso em: 05 set. 2020.
Estatuto da Corte IDH. Disponível em <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/v.Estatuto.Corte.htm>. Acesso em 05 set. 2020.
LEDESMA, Hector Faúndez. El Sistema Interamericano de Protección de los Derechos Humanos: aspectos institucionales y procesales. San José: IIDH, 2004.
O que é a CIDH? Disponível em: <https://cidh.oas.org/que.port.htm>. Acesso em: 05 set. 2020.
PASQUALUCCI, Jo. M. The Practice and Procedure of the Inter-American Court of Human Rights. New York: Cambridge University Press, ed.2, 2013.
PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: M. Limonand, 1998.
PUCHTA, Ananda Hadah Rodrigues; KSZAN, Gabriela Sacoman; CAVASSIN, Lucas Carli; SANTOS, Lucas Chermont dos. Sistema Interamericano de Direitos Humanos. In FACHIN, Melina Girardi. Guia de Proteção dos Direitos Humanos: sistemas internacionais e constitucionais. Curitiba: Intersaberes, 2019.
RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2012. E-book não paginado.
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Volume III. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003.
Referências:
[1] PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: M. Limonand, 1998, p.21-22. [2] PUCHTA Ananda Hadah Rodrigues; KSZAN, Gabriela Sacoman; CAVASSIN, Lucas Carli; SANTOS, Lucas Chermont dos. Sistema Interamericano de Direitos Humanos. In FACHIN, Melina Girardi. Guia de Proteção dos Direitos Humanos: sitemas internacionais e constitucionais. Curitiba: Intersaberes, 2019, p. 129. [3] Ibid. [4] O que é a CIDH? Disponível em: <https://cidh.oas.org/que.port.htm>. Acesso em: 05 set. 2020. [5] Estatuto da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/t.Estatuto.CIDH.htm>. Acesso em: 05 set. 2020. [6] LEDESMA, Hector Faúndez. El Sistema Interamericano de Protección de los Derechos Humanos: aspectos institucionales y procesales. San José: IIDH, 2004, p. 31. [7] PUCHTA, Ananda Hadah Rodrigues; KSZAN, Gabriela Sacoman; CAVASSIN, Lucas Carli; SANTOS, Lucas Chermont dos. Sistema Interamericano de Direitos Humanos. In FACHIN, Melina Girardi. Guia de Proteção dos Direitos Humanos: sistemas internacionais e constitucionais. Curitiba: Intersaberes, 2019, p. 130. [8]Estatuto da Corte IDH, art. 1. Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/v.Estatuto.Corte.htm>. Acesso em: 05 set. 2020. [9] Ibid., p. 133. [10] TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Volume III. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 105. [11] Ibid., p. 100. [12] Estatuto da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, art. 2.1. Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/t.Estatuto.CIDH.htm>. Acesso em: 05 set. 2020. [13] Ibid., art. 3.1. [14] Ibid., art. 6°. [15] Ibid., art. 3.2. [16] Ibid., art. 5°. [17] Ibid. [18] Ibid., art. 7°. [19]Estatuto da Corte IDH, art. 4.1. Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/v.Estatuto.Corte.htm>. Acesso em 05 set. 2020. [20] Ibid., art. 9°. [21] Ibid., arts. 8.1 e 8.2. [22] Ibid., art. 7.2. [23] Ibid., art. 7.3. [24] PASQUALUCCI, Jo. M. The Practice and Procedure of the Inter-American Court of Human Rights. New York: Cambridge University Press, ed.2, 2013, p. 31. [25] Ibid. [26]Estatuto da Corte IDH, art. 6.1. Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/v.Estatuto.Corte.htm>. Acesso em 05 set. 2020. [27] Ibid., art. 9.1. [28] Ibid., art. 9.2. [29] Ibid., art. 5.1. [30] Ibid., art. 4.2. [31] PASQUALUCCI, Jo. M. The Practice and Procedure of the Inter-American Court of Human Rights. New York: Cambridge University Press, ed.2, 2013, p. 30. [32] Ibid., p. 31. [33] Ibid. [34] Segundo o art. 10 do Estatuto da Corte IDH, há, ainda, a possibilidade de juiz ad hoc. Para mais, ver Estatuto da Corte IDH. Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/v.Estatuto.Corte.htm>. Acesso em 06 set. 2020. [35] Ibid. [36] PASQUALUCCI, Jo. M. The Practice and Procedure of the Inter-American Court of Human Rights. New York: Cambridge University Press, ed.2, p. 32, 2013. [37] Ibid. [38] A Competência decorre do art. 12 da Convenção, que assim prevê: “qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou qualquer entidade não-governamental juridicamente reconhecida em um ou mais Estados membros da Organização, poderá apresentar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos petições referentes a denúncias ou queixas de violação do artigo 7 desta Convenção por um Estado Parte, devendo a Comissão considerar tais petições de acordo com as normas e procedimentos estabelecidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e no Estatuto e Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para a apresentação e consideração de petições”. Apesar de o texto do tratado prever somente a figura da CIDH, a Corte IDH interpretou a disposição e reconheceu, no caso Campo Algodoeiro vs. México, que tem competência para apurar violações ao art. 7º da Convenção de Belém do Pará. Para a Corte, se essas violações podem ser apreciadas pela CIDH conforme o rito estabelecido na CADH, a Comissão também pode enviar o caso à Corte, pois é faculdade que lhe é atribuída pela própria CADH. Dessa forma, interpretar a Convenção de Belém do Pará no sentido de que somente a CIDH poderia apreciar violações ao art. 7º contrariaria uma interpretação sistemática e evolutiva da Convenção, pois privaria a CIDH de exercer plenamente seus poderes. [39] A Convenção ainda não prevê explicitamente a competência da Corte IDH para apurar violações, mas sua redação deixa clara que a amplitude do sistema de petições deve englobar a Corte IDH: “para os efeitos desta Convenção, a tramitação de petições ou comunicações apresentadas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em que se alegar o desaparecimento forçado de pessoas estará sujeita aos procedimentos estabelecidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e nos Estatutos e Regulamentos da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, inclusive as normas relativas a medidas cautelares”. Comprovando tal fato, a Corte IDH já reconheceu violações à Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado em Radilla Pacheco vs. México, de 2018. [40] O dispositivo prevê que “uma vez esgotado o procedimento jurídico interno do Estado e os recursos que este prevê, o caso poderá ser submetido a instâncias internacionais, cuja competência tenha sido aceita por esse Estado”. Assim, se o Estado reconheceu a competência da Corte IDH de acordo com a CADH, também reconhece a competência da Corte IDH para apreciar a Convenção Interamericana para Punir e Prevenir a Tortura. Exemplo de caso em que a Corte aplicou esta Convenção foi Penal Miguel Castro Castro vs. Peru. [41] Nestas três últimas convenções, a competência da Corte IDH para apreciar violações de Direitos Humanos é explícita no texto, mas é necessário que os Estados reconheçam a competência da Corte IDH no momento de depósito, ratificação, adesão ou qualquer momento posterior. Nas três Convenções anteriores, não havia necessidade de que o Estado aceitasse a competência da Corte IDH sobre elas para que a Corte IDH pudesse exercer jurisdição sobre seus dispositivos. A competência, apesar de não explícita nos textos, decorre da interpretação que a Corte IDH deu a essas Convenções. [42] Trindade e Tobago denunciou a CADH em 1998; Venezuela, em 2012. No entanto, em 2019, presidente autoproclamado da Venezuela, depositou nova ratificação da CADH perante a OEA. Uma vez que a OEA reconhece o governo de Juan Guaidó, a Venezuela voltou a fazer parte da CADH no ano de 2019. No instrumento, menciona-se que a ratificação terá efeitos retroativos até 2013, quando a denúncia de 2012 havia entrado em efeito. [43] É interessante notar que, em Ivcher Bronstein vs. Peru, a Corte IDH definiu que, se um Estado Parte da Convenção Americana sobre Direitos Humanos já reconheceu a competência da Corte Interamericana para aplicar a CADH, ele não pode retirar o reconhecimento dessa competência senão com a denúncia da CADH. [44] Apesar disso, nas páginas de ratificações dos tratados disponíveis no site da OEA, não consta, nos depósitos dos instrumentos de ratificação de qualquer Estado Parte, o reconhecimento da competência da Corte IDH, conforme exigem as Convenções. Além disso, exceto a presença de Antígua e Barbuda na CIRDI, todos os outros Estados Partes da CIRDI, CIDI ou CIDPI são também parte da CADH e reconheceram a competência da Corte IDH para apreciar violações à CADH. Talvez, por esse motivo, a autora e o autor não tenham notícias de casos - nem mesmo da CIDH, que não precisaria de reconhecimento especial de competência -, em que violações somente à CIRDI, CIDI ou CIPDI – como instrumentos autônomos – foram averiguadas. [45] O art. 64 da CADH prevê que Estados e alguns órgãos da OEA poderão consultar a “Corte sobre a interpretação desta Convenção ou de outros tratados concernentes à proteção dos direitos humanos nos Estados americanos”. Em 2019, o Estado da Colômbia consultou a Corte IDH sobre as implicações de denúncias à CADH e à Carta da OEA nas responsabilidades dos Estados no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. O Parecer da Corte IDH ainda não foi emitido. [46] RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2012. E-book não paginado, cap. 5.6. [47] Para mais, ver FRANJLIN, James C. Shame on You: The Impact of Human Rights Criticism on Political Repression in Latin America. International Studies Quarterly 52, no. 1, 2008, pp. 187-211.
**As opiniões expressas neste texto não refletem necessariamente as opiniões de instituições ou organizações às quais os(as) autores(as) estão vinculados(as).
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