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De Kadesh para Westphalia: o direito internacional nascente das margens do Nilo

*Por Hannah De Gregorio Leão.

Imagem: Hunefer's Judgement in the presence of Osiris, Book of the Dead, 19th Dynasty, New Kingdom, c. 1275 B.C.E., papyrus, Thebes, Egypt/British Museum.


Muitos séculos antes do estabelecimento do Tratado de Westphalia, no século XVII, considerado o marco fundador do direito internacional contemporâneo, o Egito Antigo já possuía formas de direito que poderiam remeter às fontes clássicas do direito internacional que viriam a ser reconhecidas somente como um marco europeu do mundo moderno.


Jeremy I. Levitt, professor de direito internacional na Florida A&M University, afirma que uma análise eurocêntrica da história do direito internacional desconsiderou os direitos interestatais que se desenvolveram antes do período imperialista e colonial, como existiram não somente no Egito, mas na Mesopotâmia, Núbia, Cartago, Gana, Mali e Songai. Em tais regiões, o direito internacional antigo teria como fundamento as relações econômicas, sociais, religiosas, diplomáticas, de guerra e conquistas que geraram direitos e costumes em comum nas relações transnacionais que envolveram seus múltiplos povos.


Entretanto, o Egito Antigo também proporcionou o desenvolvimento de outras fontes do direito internacional a partir de relações com outros povos por meio de tratados, como pelo Tratado de Kadesh, e a partir do estabelecimento de princípios gerais de direito, por meio da Carta de Direitos Egípcia - que compreende o Código Demótico e os decretos reais.


A partir do conceito de Ma’at, assim como descrito nas Cartas de Amarna, podemos perceber uma primeira possível aparição, na história do direito internacional, de um costume internacional. Ma’at não era apenas considerada a deusa da verdade e da justiça no Egito Antigo, responsável pelo julgamento decisivo dos mortos, mas também um conceito aplicado ao dia a dia e relações entre egípcios, como princípio das vidas pública e privada, e nas relações com outros povos, como princípio das práticas e relações diplomáticas com diferentes nações.


A subjetividade de Ma’at representa, portanto, não apenas um caráter doméstico de boas práticas rotineiras da vida comum egípcia, mas condutas diplomáticas internacionais que guiavam a atuação do faraó com demais líderes de outras nações, as quais também eram por estas seguidas.


A internacionalização do conceito de Ma’at evidencia-se pelo fato de outros povos, como assírios e hititas, também possuírem doutrinas sócio-legais similares a Ma’at, o que fez com que este conceito religioso-legal se consolidasse em forma de normas e práticas de costumes diplomáticos nas relações inter-Estados a partir do período do Novo Reino egípcio (em torno de 1540 A.C.), de acordo com o professor Jeremy I. Levitt.


Ma'at: divindade, conceito e costume


Ma’at, como divindade, era considerada filha do deus Atum até a XVIII dinastia, quando passou a ser representada como filha de Rá, nascida no momento da criação. Os egípcios a consideravam uma divindade que determinava a relação entre o governo e os deuses e como uma das forças que regulava o cosmos, assegurando não somente a Justiça, mas a ordem, a harmonia, o correto e o testemunho verdadeiro.


O Livro dos Mortos egípcio narra a trajetória do espírito no mundo dos mortos, inclusive sobre todo o processo de julgamento das ações humanas por quarenta e dois deuses juízes, incluindo Ma’at, perante os quais deveria ser demonstrado que o morto levou uma vida virtuosa, o que era feito a partir de sua confissão negativa de quarenta e duas condutas. Após esse julgamento, seu coração era pesado pela balança de Ma’at, deusa da verdade e da justiça, que comparava o peso do coração do morto com a o peso de uma pluma, um dos símbolos de Ma’at.


O faraó, no Egito Antigo, era considerado um deus vivo e intermediário entre a humanidade e os deuses. O costume, na cultura e sistema egípcios, derivava do mundo do faraó-deus, que possuía três atributos: a autoridade (Hu), a percepção (Sia) e a Justiça (Ma’at). A autoridade suprema do faraó derivava de sua condição de intermediário entre Ma’at e a Lei, sendo que Ma’at também era considerada um estilo de vida. Dessa forma, Ma’at não era um conceito religioso abstrato, já que a religião egípcia, ao ser baseada na natureza, compreendia seus princípios e conceitos de forma prática, aplicada diretamente à realidade e à experiência.


Imagem: D’après la déesse Maât qui déploie ses ailes, tombe de Nefertari, épouse de Ramsès II (vers 1294 -1224 avjc), XIXe dynastie, Nouvel Empire, Vallée des Reines, Louxor, Égypte ancienne.

O Direito no Egito Antigo era fundado em princípios religiosos, os quais também influenciavam toda a vida social egípcia, já que se acreditava que o poder divino interferia em todas as esferas da vida. Os egípcios antigos consideravam que o Direito tinha sido concedido à humanidade pelos deuses, os quais eram considerados guardiões e fontes do Direito, sendo uma responsabilidade deles manter o conceito do Direito.


O exercício do Direito representava, portanto, um mecanismo de preservação de Ma’at na vida terrena, ou seja, da ordem, tendo o faraó uma importante função de criação de direitos, enquanto soberano também divino. O faraó possuía a função de preservar e assegurar Ma’at a partir da criação de Leis que regulassem as condutas sociais, sendo que ele próprio deveria guiar sua vida de acordo com as Leis e de acordo com os princípios de Ma’at.


Os egípcios compreendiam o conceito de Ma’at como universal e, considerando o poder político exercido por grandes potências sobre outras nações na Antiguidade, ele era utilizado como uma fonte de direito peremptória que assegurava a preservação de princípios sociais fundamentais nas relações domésticas e internacionais com demais países. A existência de conceitos similares entre outros povos da região, como hititas e assírios, foi essencial para que a convergência desses variados direitos resultasse no desenvolvimento de normas e costumes diplomáticos para reger as relações em comum e de uma moral internacional e consciência normativa que interligava os valores éticos comuns, características muito similares à teoria do Direito Natural, ao conceito de jus cogens e ao direito costumeiro internacional.


Nesse sentido, Levitt pontua que o conceito de Ma’at representava uma moral internacional, determinando diretrizes legais que orientavam as condutas estatais em conformidade com valores éticos considerados fundamentais e que regiam as relações domésticas e transnacionais entre os povos antigos da região.

As cartas de Amarna são tabletes em escrita cuneiforme, do final da XVIII dinastia egípcia, que retratam as relações internacionais do Egito com demais países do Antigo Oriente Próximo, incluindo principalmente correspondências diplomáticas. A importância das cartas de Amarna reside no fato de que se tratam das principais fontes que abordam o conceito de Ma’at, sendo que elas também tratam sobre direito internacional antigo, costumes e relações diplomáticas da Antiguidade, confirmando a existência de determinados direitos costumeiros internacionais específicos, especialmente com relação às práticas de extradição, que são inclusive abordadas pelo Tratado de Kadesh, a ser analisado posteriormente. Importante ressaltar que o conceito costumeiro de Ma’at, assim como demais costumes antigos, foi codificado pelo Tratado de Kadesh.


O Tratado de Kadesh e a codificação da Ma'at


No período do Império Novo, os objetivos de expansão territorial do império egípcio levaram à intenção de conquistar o atual território da Síria, que era de domínio hitita, tendo em vista a importância de suas rotas comerciais terrestre e marítima para a economia egípcia. A primeira batalha entre os dois povos foi no reinado do faraó Seti I (XIX dinastia, Império Novo), sendo que outros embates prosseguiram até o reinado de seu filho, Ramsés II (XIX dinastia, Império Novo).

A batalha de Kadesh ocorreu no reinado de Ramsés II e foi travada contra o rei hitita Muwattali II, sendo a última entre os egípcios e hititas, levando ao tratado de paz da Kadesh, que foi negociado e celebrado no governo hitita seguinte, do rei Hattusili III, irmão do antigo rei.


O tratado de paz de Kadesh, celebrado entre os egípcios e os hititas, é considerado um dos primeiros tratados internacionais a se ter conhecimento, sendo um dos mais antigos acordos de paz completos e conhecidos. Também se trata do único tratado antigo egípcio que possui versões recíprocas, ou seja, uma versão em língua egípcia e outra versão em língua acádia, considerada uma língua internacional na época. O tratado estabelecia um acordo de não agressão e se fundamentava nas crenças religiosas das duas nações, inclusive com relação aos seus diferentes deuses.


Imagem: versão hitita do Tratado de Kadesh, descoberto em Boğazköy (Turquia) em 1258 BCE/Istanbul Archeology Museum.

O texto do tratado é construído em prosas egípcias e hititas, sobre temas como: as relações futuras entre os dois países; a renúncia à mútua agressão, iniciando um momento de paz e fraternidade entre os dois povos; a aliança defensiva entre os dois países, determinando, por exemplo, que os egípcios poderiam enviar um exército para defender os hititas, caso estes fossem ameaçados por um terceiro país, proporcionando uma aliança militar que, nos dias de hoje, representaria uma legítima defesa coletiva; e a extradição de fugitivos/refugiados, assim como suas anistias, sendo que, no caso de refugiados egípcios entrarem em território hitita, deveriam ser extraditados novamente para seu país, porém “não lhe será censurado o seu erro, a casa dele não será destruída, suas mulheres e filhos terão a vida salva e ele não será condenado à morte”

De acordo com as práticas egípcias, um tratado com demais países deveria ser celebrado em forma escrita entre as partes, a partir do qual codificariam as obrigações mútuas entre os Estados partes e confirmariam o caráter transcendental e divino que constituía a obrigação internacional.


Assim como as escrituras egípcias narram, a batalha de Kadesh representou, para os egípcios, uma violação de Ma’at enquanto ordem, sendo que o faraó possuía a função de restabelecer Ma’at. O tratado de Kadesh, portanto, ao codificar Ma’at, pretendeu restabelecer essa ordem violada pela guerra, na promoção da paz e do armistício.


O Egito na história do direito internacional

A partir de uma análise da história do direito internacional antigo, percebe-se que as relações interestatais, transnacionais e internacionais podem ser encontradas em séculos anteriores ao estabelecimento do Tratado de Westphalia, considerado o fundador do direito internacional na Era Moderna. Por meio de uma análise que considera demais formas de Direito, geralmente esquecidas pela narrativa eurocêntrica corrente, evidencia-se a contribuição de povos antigos para a construção da história do direito internacional.


A existência de diversas perspectivas históricas distintas sobre o que consideramos, hoje, fontes do direito internacional, possui grande importância para a compreensão e análise do direito internacional enquanto disciplina jurídica desenvolvida historicamente por diferentes atores e narrativas.


O direito egípcio proporciona uma visão única na história do direito internacional ao demonstrar a existência, ainda na Antiguidade, do que, hoje, poderíamos considerar costumes (a partir de Ma’at) e tratados internacionais (a partir do tratado de Kadesh). Essa perspectiva demonstra a importância de, nos dias atuais, se compreender o direito internacional a partir de suas diferentes narrativas, histórias e fundamentos, para que se adote diferentes lentes, perspectivas e teorias para compreendê-lo.


O direito internacional, enquanto intrinsecamente interligado com a política internacional e as relações internacionais, também possui diferentes lentes de análise e interpretação que contribuem para a sua aplicação e compreensão na atualidade. A história do direito internacional é uma dessas diferentes perspectivas teóricas.


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Bibliografia recomendada e referências bibliográficas:


LEVITT, Jeremy I. African Origins of International Law: Myth or Reality? 19 UCLA J. Int'l L. Foreign Aff. 113;


FERGUSON, R. James. The Ancient Egyptian Concept of Maat: Reflections on Social Justice and Natural Order. (Research paper series: Centre for East-West Cultural & Economic Studies; No. 15);


VAN LOON, J. Law and order in ancient Egypt. Dissertação (Mestrado em História Antiga) – Universidade de Leiden;


BUDGE, E. A. Wallis. The Book of the Dead, The Papyrus of AniBook of the dead. 1895, ps. 223-226 Disponível em: <http://www.sacred-texts.com/egy/ebod/index.htm>;


VAN BLERK, Nicolaas Johannes. The Concept of Law and Justice in Ancient Egypt, with Specific Reference to the Tale of the Eloquent Peasant. Dissertação (Mestrado com especialização em línguas e culturas antigas) Universidade da África do Sul;


COELHO, Liliane Cristina; SANTOS, Marcos Elias. As Cartas de Amarna e as Relações Internacionais no Egito do final da XVIII Dinastia. Maracanan, Janeiro/Dezembro 2013;


CARREIRA, Paulo. Ramsés II e a Batalha de Kadesh. Revista Lusófona de Ciência das Religiões, Ano V, 2006, n. 9/10, 181-226;


MAF, Guy. Naissance et Evolution du Droit International Public. Disponível em: <https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-01666450/document>.



*Hannah De Gregorio Leão é pesquisadora do Observatório Cosmopolita do Tribunal Africano de Direitos Humanos e dos Povos. É graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), membro do Comitê Executivo do Public International Law Litigation Society (PILLS Puc-Rio), e pesquisadora bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET) do Departamento de Direito da PUC-Rio na área de direito constitucional.






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