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EUA 2020#2: conheça a política externa proposta por Bernie Sanders, candidato à nomeação Democrata

*Por João Sallani.

Foto: Tim Vizer/AFP


Não fosse a brusca interrupção das atividades norte-americanas em razão da crise do coronavírus, o processo de primárias para a escolha do candidato do Partido Democrata para a disputa da presidência dos EUA em novembro já estaria provavelmente próximo de seu fim.


As esmagadoras vitórias acumuladas por Joe Biden a partir da chamada Super Tuesday, empreendendo uma virada sem precedentes na história do Partido Democrata, criaram forte pressão para que seu adversário, o senador Bernie Sanders, abrisse mão de sua candidatura em prol da união do Partido, dada a ampla dianteira assumida pelo ex-vice-presidente.


Sanders, no entanto, resiste em seu pleito, afirmando ser mais uma vez atacado pelo establishment político do Partido Democrata, que, segundo ele, já forçara as saídas de Pete Buttigieg e Amy Klobuchar, ex-candidatos que passaram a apoiar a candidatura de Joe Biden logo antes da Super Tuesday.


Embora a saída de Sanders do páreo pareça hoje mera questão de tempo, fato é que sua candidatura permanece em pé. Até o fechamento deste artigo, Bernie Sanders possuía 851 delegados, contra 1.165 de Joe Biden – o número para a nomeação à candidatura à presidência pelo Partido Democrata é de 1.991 delegados.


O ano de 2020, no entanto, já demonstrou sua disposição para surpresas.


Foto: Stephen Maturen/Getty Images


De toda forma, o candidato escolhido pelo Partido Democrata para disputa da corrida presidencial, quem quer que seja, terá de lidar, caso eleito, com as inevitáveis consequências do grave desarranjo institucional internacional promovido pela política divisiva de Donald Trump – que não apenas desdenhou das instituições e mecanismos internacionais que os próprios EUA ajudaram a construir no pós-guerra, mas também alienou antigos aliados e parceiros estratégicos do país norte-americano.


Ao contrário de Biden, Sanders apresenta-se não como representante da estabilidade e da volta às práticas políticas norte-americanas que marcaram o país até 2016, mas sim como um reformista social desapegado ao que considera velhas e injustas tradições.


Autodeclarado “socialista democrático”, Sanders propõe um programa de rearranjo da sociedade norte-americana em prol de um sistema mais próximo à social democracia europeia, a partir da expansão do assistencialismo estatal, sobretudo pela construção de um sistema público universal de saúde (o chamado “Medicare for All”) e pela expansão da educação universitária gratuita em faculdades e universidades públicas norte-americanas.


Tais projetos, inegavelmente ambiciosos, no entanto, hão de implicar altíssimos custos que demandarão a redefinição das prioridades orçamentárias do país que mais investe recursos em defesa e atividades militares.


“Nós gastamos US$ 700 bilhões em defesa, mais que as 10 outras nações [membros da OTAN] somadas, e acabamos com 30 milhões de desassistidos e uma infraestrutura em ruínas. Senhor Presidente, em vez de exigir da Europa mais gastos em aviões e armas, por que não nos juntamos a eles garantindo saúde pública para todos?” – Bernie Sanders, em resposta à exigência de Donald Trump para que as nações da OTAN aumentassem seus gastos com segurança e o custeio da Organização.

Em termos gerais, a plataforma apresentada pelo senador de Vermont em sua pré-candidatura é menos detalhada que aquela apresentada por Joe Biden.


A política externa proposta por Sanders levanta, em geral, as mesmas bandeiras atualmente em destaque pelo Partido Democrata: a defesa da democracia e dos Direitos Humanos, a preocupação ambiental e a justiça econômica e social.


São os meios, no entanto, que diferem mais visivelmente a plataforma de política externa de Bernie Sanders daquela levantada por Joe Biden.


No segundo artigo da série do Cosmopolita sobre as perspectivas internacionais das eleições norte-americanas de 2020, analisamos as propostas de política externa apresentadas por Bernie Sanders, adversário de Joe Biden na corrida à indicação do Partido Democrata para disputa das eleições presidenciais deste ano contra Donald Trump.


Bernie Sanders – o “novo normal” em prol do progressismo social


Nascido no Brooklyn, bairro de Nova Iorque, em 1941, Bernie Sanders construiu sua carreira política como candidato de esquerda independente no estado de Vermont, tendo sido eleito prefeito da cidade de Burlignton em 1981, deputado em 1991, e senador em 2006.


Nascido em família judia de classe média e tendo atuado como líder estudantil durante a juventude, Bernie Sanders se declara um “socialista democrático”, defensor de ideais da socialdemocracia e da implementação de políticas progressistas intensamente influenciadas pelo Estado de bem-estar social europeu.


Após uma surpreendente pré-candidatura presidencial em 2016, quando foi superado a margens relativamente pequenas por Hillary Clinton, Sanders, ao oficializar sua pré-candidatura à disputa presidencial pelo Partido Democrata em 2020, agora com 78 anos, despontou como um dos principais nomes da corrida à nomeação pelo partido.


A promessa de uma ampla coalizão étnica e geracional em torno de sua candidatura, no entanto, não se materializou da forma esperada pela campanhas, fazendo com que seu nome perdesse força com o fim da pulverização das pré-candidaturas no campo democrata. Sanders busca agora provar que seu apelo eleitoral não se restringe a nichos mais radicais do Partido Democrata.



Foto: Carlo Allegri/Reuters


Em termos de política externa, as propostas de Bernie são um pouco mais nebulosas que as de Biden, pairando ainda alguma dúvida quanto às reais perspectivas a serem adotadas por um hipotético governo Sanders, uma vez que o foco de sua plataforma de campanha aponta, sobretudo, para uma reforma social interna do Estado norte-americano.


A esta altura da corrida eleitoral, as perspectivas de Bernie Sanders para a defesa dos valores defendidos pelo Partido Democrata nos últimos anos, embora por meio de uma postura internacional menos incisiva por parte dos EUA, sobretudo no que diz respeito ao uso de força militar.


“Precisamos de uma política externa que foque nos interesses chave dos EUA, clarifique nosso comprometimento com valores democráticos tanto em casa quanto no exterior, e privilegie a diplomacia e o trabalho coletivo com nossos aliados para responder a preocupações de segurança compartilhadas” – Sanders, Foreign Affairs, 2019.

Para Sanders, que, ao contrário de Joe Biden, se opôs desde o primeiro momento à invasão do Iraque em 2003, a lógica militarista que engajou o país em intermináveis guerras no Oriente Médio, sobretudo a partir da gestão de George W. Bush, corrompeu a democracia norte-americana, privilegiando o uso unilateral da força militar em detrimento da prática diplomática e da construção de soluções internacionalmente compartilhadas.


Embora concorde com Biden quanto ao caráter prioritário da defesa dos Direitos Humanos pela política externa norte-americana, Sanders preocupa-se menos em colocar os EUA como líderes necessários da ordem global. Embora não diminua o caráter de liderança do país norte-americano, o discurso de Sanders reafirma incessantemente a necessidade de que os EUA ajudem a construir uma realidade política e econômica mais justa por meio de soluções partilhadas internacionalmente com seus aliados.


As prioridades internacionais de Sanders apontam, sobretudo, para o retorno ao enaltecimento dos valores diplomáticos na atuação internacional dos EUA, dispostos a propiciar a construção de meios de defesa dos Direitos Humanos, da democracia e das justiças ambiental e econômica.


A implementação de tais ideais, para o pré-candidato, passa necessariamente pela consideração do uso da força como último recurso possível à política externa norte-americana, uma vez seu emprego indiscriminado tenderia a diminuir a influência e a credibilidade norte-americanas no cenário global, demonstrando, ao final, fragilidade em vez de poder.


Em entrevista ao jornal The New York Times, no entanto, Sanders afirmou, sem maiores detalhes, posicionar-se a favor tanto do uso de força militar em intervenções humanitárias quanto do emprego de ataques preemptivos quando iminentemente ameaçados interesses vitais norte-americanos.


Tal qual Biden, Sanders proclama necessário o reengajamento dos EUA no cenário internacional, sobretudo pela reafirmação de seu compromisso com acordos assumidos com aliados norte-americanos anteriormente ao governo Trump, como o reingresso no Acordo com o Irã e a revitalização das relações norte-americanas com a OTAN.


Um eventual governo Sanders, no entanto, ao contrário de seu concorrente democrata, não representaria mero retorno às tradições da política-externa norte-americana.


Foto: John Bazemore/AP Photo


Em termos de política comercial, o posicionamento de Sanders, pautado por um discurso altamente protecionista, aproxima-se até mais do de Trump do que do de Biden, priorizando o fortalecimento do mercado interno norte-americano e a repatriação de vagas de trabalho recentemente perdidas para países com menores custos de produção, como a China e a Índia.


A oposição de Sanders à tradicional postura norte-americana favorável ao livre comércio é encontrada não apenas em sua oposição a tratados internacionais firmados pelos EUA com a China, mas também a acordos firmados com tradicionais aliados norte-americanos, como o NAFTA e aos Acordos de Livre Comércio dos EUA com a Coreia do Sul, os quais, para Sanders, permitiram que demasiados postos de trabalhos norte-americanos fossem realocados no exterior, às custas do desemprego das famílias estadunidenses.


“Desde 2001, quase 60.000 fábricas neste país foram fechadas e mais de 4.7 milhões de trabalhos fabris de pagamento decente foram perdidos. O NAFTA levou à perde de quase 700 mil postos de trabalho. O PNTR [acordo de livre-comércio] com a China levou à perda de 2.7 milhões de postos de trabalho. Nosso acordo de comércio com a Coreia levou à perda de aproximadamente 75 mil empregos. Embora acordos de comércio ruins não sejam a única razão pela qual trabalhos industriais nos EUA tenham minguado, estes são alguns importantes fatores” – Sanders, Huffington Post, 2015.

A postura radicalmente contrária aos acordos de internacionalização do comércio empreendidos de 1948 até a administração Obama encontra materialização em projeto de lei apresentado por Sanders em 2005, ainda como membro da Câmara dos Representantes dos EUA por Vermont, que propunha a retirada unilateral dos EUA da Organização Mundial do Comércio (OMC). À época, Sanders afirmava que as políticas comerciais dos EUA no âmbito da Organização representavam os interesses dos líderes de grandes corporações às custas das necessidades e dos empregos da classe-média norte-americana.


Caso eleito, Sanders terá a capacidade de materializar o conteúdo de seu projeto de 2005 por meio do poder presidencial a ele disposto, que lhe permitiria determinar a retirada unilateral dos EUA da OMC a partir da ativação do Artigo XV do Tratado de Marrakesh. Atualmente, a real intenção de Sanders de retirar os EUA da Organização, no entanto, não é clara.


Um eventual governo Sanders, portanto, tenderia a dar continuidade à expansão protecionista atualmente praticada pela administração de Donald Trump, o qual, além de já ter reiteradamente ameaçado a retirada dos EUA da OMC, chegou a esvaziar, no último ano, o Órgão de Apelação do Sistema de Solução de Controvérsias da Organização.


A principal diferença entre Trump e Sanders em matéria de comércio internacional, no entanto, reside nas razões pelas quais cada qual defende a revisão da lógica do livre comércio tradicionalmente encampada pelos EUA. Enquanto Trump limita-se a defender a hegemonia econômica e comercial norte-americana para a garantia de empregos no país, Sanders adiciona ao argumento preocupações ambientais e trabalhistas às quais Trump atribui pouca ou nenhuma importância.


A normalização das relações EUA-China em um eventual governo Sanders, seria, consequentemente, algo bastante improvável. Para Bernie, a consolidação das políticas comerciais internacionais dos EUA, que marcaram a atuação internacional do país entre os anos noventa e o fim da era Obama, implicariam na redução do padrão de vida e emprego dos norte-americanos em benefício da expansão de postos de trabalho precários em países não dispostos à garantia dos direitos humanos, trabalhistas e de valores democráticos.


Embora o enfrentamento do autoritarismo chinês seja ponto central tanto da plataforma de Sanders quanto da de Biden, os meios propostos por Sanders para a imposição dos ideais ocidentais ao país asiático são mais explícitos e radicais.


Enquanto Biden propõe uma ponderação entre divergências e convergências nas relações EUA-China, Sanders afirma necessária a tomada de medidas mais duras contra o país asiático, passando pela revogação de acordos de livre-comércio e chegando até mesmo à imposição de um embargos contra o regime comunista chinês.



Foto: Nati Harnik/AP


A rigidez da postura de Sanders em face da violações de Direitos Humanos, até mesmo contra tradicionais aliados dos EUA, é bem exemplificada nas contundentes condenações do candidato não apenas à China, mas também ao brutal regime ditatorial da Arábia Saudita e ao radical governo de Benjamin Netanyahu em Israel.


"Não sou anti-Israel, mas o fato é que Netanyahu é um político de direita que a meu ver está tratando o povo Palestino de forma extremamente injusta" - Sanders, em debate na emissora CNN, 2019.

Ainda que levante a necessidade de reconstrução de alianças internacionais enfraquecidas pelos quatro anos do governo de Donald Trump, a plataforma de política externa proposta por Bernie Sanders vincula necessariamente o apoio americano ao respeito aos valores democráticos e aos Direitos Humanos pelos parceiros dos EUA.


Defensor de uma solução de dois Estados para a questão Israel-Palestina, Sanders é favorável à continuidade do apoio norte-americano ao Estado de Israel, embora afirme a necessidade de que Israel se comprometa a encerrar a expansão de seus assentamentos em territórios disputados com os palestinos. Para Sanders, o apoio norte-americano deve estar intrinsecamente ligado ao respeito e à garantia dos direitos humanos na região.


Em oposição ao fatalista plano apresentado por Trump para a resolução da questão Palestina, Sanders afirma que os parâmetros para a resolução do impasse são bastante conhecidos, tendo sido sedimentados pelo próprio Direito Internacional. Para o pré-candidato, a questão há de ser resolvida pelo reconhecimento dos limites geográficos de 1967, com a consideração de Jerusalém como a capital partilhada tanto por Israel quanto pela Palestina. Aos EUA, por sua vez, caberia o oferecimento das condições necessárias para a implementação de tal projeto a partir do oferecimento do apoio militar necessário à criação de um ambiente capaz de propiciar a paz na região.


"Sim, os parâmetros da solução são bem conhecidos. São baseados no direito internacional, em múltiplas resoluções do Conselho de Segurança, e são baseadas em um enorme consenso internacional: dois Estados delimitados pelas fronteiras de 1967, com Jerusalém como a capital de ambos os Estados (...). Meu governo estaria disposto a trazer uma real pressão sobre ambos os lados, incluindo auxílio militar, para criar consequências a atos que venham a minar chances de paz" - Sanders, Council of Foreign Relations.

Foto: Saul Loeb/AFP/Getty Images


Ao contrário de Biden, Sanders não apresenta, enquanto pré-candidato democrata, uma plataforma de política externa tão extensamente detalhada quanto aos meios para o alcance de seus valores e objetivos. Suas finalidades, no entanto, podem ser consideradas mais ambiciosas.


Enquanto Biden considera Donald Trump um ponto fora da curva a ser superado e reiteradamente repudiado, Sanders abraça as condições que elegeram o atual presidente norte-americano como evidências da disfuncionalidade dos sistemas políticos e econômicos de nossos tempos.


Ao propor um salto à frente, em direção ao desconhecido, Sanders não oferece, no entanto, um projeto sistêmico de estabilização internacional como aquele proposto por Biden.


A plataforma de campanha de Sanders, majoritariamente focada na melhoria das condições sociais internas dos Estados Unidos da América, implica necessariamente no reposicionamento dos EUA no tabuleiro global.


Seja pela ativa proposição de novos parâmetros para o comércio global e a efetivação dos direitos humanos, ou pelo mero rearranjo das prioridades orçamentárias dos EUA, que em seu governo tenderiam a diminuir a capacidade de inserção internacional do país em prol da construção de um Estado social contundente, uma coisa é certa: um eventual governo Sanders confirmaria a condição de Trump como ponto de inflexão da sociedade internacional, que dificilmente voltaria ao paradigma liberal desenvolvido desde 1945.


A questão colocada nas primárias norte-americanas é bastante clara: oferecerá o Partido Democrata uma saída conservadora e conhecida para volta à “normalidade”, ou assumirá de vez o atual estado de coisas como “novo normal”, aproveitando-o para a instalação de um projeto progressista, porém mais incerto? A resposta deve ser dada no dia 03 de novembro de 2020.


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