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O Órgão de Apelação da OMC parou. O que acontece, e por que isso importa?

Por Paulo Roberto Lemos*

Foto: Reuters


Da sequência de revezes que se abateram nos últimos tempos sobre a ordem multilateral instituída no pós-guerra, o episódio mais recente é talvez o da paralisação do Órgão de Apelação da Organização Mundial do Comércio (OMC).


Em fins de 2019, chegou a termo o mandato de dois dos três últimos integrantes do órgão (Ujal Singh Bhatia, da Índia, e Thomas R. Graham, dos EUA). Dessa forma, deixou-se de atingir o quórum mínimo de três membros exigido para seu funcionamento. Na raiz do problema estão os reiterados vetos com que a Casa Branca vem obstando a nomeação de novos integrantes que preencham os cargos vagos.


A administração Trump tem acusado a OMC de condescendência excessiva com más práticas chinesas, e de tolher a capacidade norte-americana de proteger seus trabalhadores – queixas que, vale lembrar, não impediram o governo estadunidense de celebrar a recente vitória obtida no litígio DS316, no seio da própria OMC (caso em que os EUA questionaram subsídios concedidos pela UE a seu setor de aviação civil, que ilegalmente beneficiaram a francesa Airbus em detrimento da americana Boeing).


A cessação das atividades do Órgão de Apelação é um golpe duro para a já combalida OMC, que luta para manter sua relevância ante o aparente fracasso das negociações em torno da Rodada Doha. Compreende-se, contudo, que a importância de um sistema internacional voltado para a resolução de litígios comerciais não seja óbvia para todos.


Foto: Scott Olson/Getty Images


O que representa a interrupção das atividades do Órgão de Apelação, e por que se tem dito que ela pode ser o prenúncio de tempos difíceis para o comércio mundial?


Resposta satisfatória a tal questionamento exige uma breve retrospectiva das atividades da OMC, bem como das regras que a precederam.


Do GATT à OMC


De 1947 a 1994, o comércio internacional evoluiu sob as diretrizes do General Agreement on Trade and Tariffs (GATT), acordo concebido para regrar temporariamente o comércio internacional, até que se chegasse a um arranjo definitivo capaz de viabilizar a criação de uma organização internacional.


O fracasso da conferência de Havana (1947/1948), convocada pelas Nações Unidas para discussão do assunto, no entanto, levou consigo a projetada Organização Internacional do Comércio, que nunca viu a luz do dia.


O malogro das negociações forçou o GATT a assumir um novo papel: o de código destinado a regulamentar, em caráter permanente, o comércio entre Estados.


A aposta em um sistema comercial assentado no multilateralismo veio na esteira de inflexões semelhantes em outras áreas. Da Organização dos Estados Americanos ao Fundo Monetário Internacional, o pós-guerra foi um período de proliferação sem precedentes de instituições multilaterais. Isso porque as grandes potências, responsáveis pela reestruturação da ordem internacional, intuíram que a prevalência do bilateralismo e a falta de foros voltados à discussão conjunta de problemas mundiais haviam contribuído para o clima de receio e desconfiança que enfim conduziu o mundo à guerra.


Nas décadas que antecederam o conflito iniciado em 1939, os receios das nações europeias, algumas ainda fortemente abaladas pela primeira guerra, favoreceram políticas comerciais voltadas à proteção dos mercados domésticos. Cotas, tarifas e outros instrumentos análogos eram utilizados para proteger setores produtivos considerados de grande importância para a segurança nacional; prosperou, portanto, uma política comercial baseada na preocupação com a eventualidade de um novo conflito.


A crise de 1929 apenas aprofundou o problema. Estima-se que, entre 1929 e 1932, o comércio global enfrentou retração da ordem de 40% - fenômeno representativo do processo de "desglobalização" descrito pelo embaixador Paulo Estivallet Mesquita ao tratar do período entreguerras.


O GATT veio justamente reforçar a tendência contrária. Seu objetivo era incrementar os fluxos de comércio e, por conseguinte, a cooperação interestatal.


Ao longo de sua vigência, o GATT foi sendo aprofundado por meio de múltiplos acordos complementares, firmados no decurso das chamadas rodadas comerciais – sequências de negociações organizadas em torno de pautas prefixadas em um mandato.

Ao todo, o sistema produziu nove: Genebra (1947); Annecy (1949); Torquay (1951); Genebra (1956); Dillon (1960-61); Kennedy (64-67); Tóquio (1973-79), Uruguai (1986-94) e Doha (2001-presente).


Basta olhar para a listagem das baterias de negociação para concluir que a obtenção do consenso necessário a seu encerramento foi se tornando mais trabalhosa. Se Genebra (1947) durou cerca de sete meses, a rodada Tóquio consumiu mais de seis anos. Explica-se: a ordem internacional vinha passando por transformações estruturais para as quais o GATT não estava preparado.


Concebido para lidar com o comércio de produtos finais, o acordo foi confrontado com a realidade da crescente fragmentação dos processos produtivos, e o consequente incremento do comércio de peças.


A crescente participação de países subdesenvolvidos também tornou mais árduas as negociações.


Se era fácil discutir o livre-comércio de bens industrializados entre países do hemisfério Norte, o mesmo não se podia dizer de negociações que incluíam países ciosos de seus incipientes parques industriais. Por outro lado, tampouco as nações desenvolvidas mostravam-se simpáticas à ideia de franquear o acesso a seus mercados às commodities do Sul global.


Divergências entre as partes negociadoras terminaram por provocar a fragmentação do sistema. Países diferentes ratificavam acordos diferentes, de modo que se passou a falar na existência de um “GATT à la carte”, ou seja, um livre-comércio de conveniência, multiplicando as inépcias do arranjo em vigor.


Mais importante para nossos propósitos: o mecanismo de solução de controvérsias vigente sob o GATT deixava a desejar.


Como hoje, disputas comerciais entre os signatários do acordo resolviam-se por meio de um painel (também chamado grupo especial) composto por especialistas que se pronunciavam em um relatório, que era então submetido ao crivo de um colegiado composto por todos os Estados-parte no GATT (incluídos aí os contendores na disputa comercial), os quais decidiam por consenso quanto a sua adoção. Bastava apenas um voto contrário ao resultado para que o relatório fosse rejeitado. Naturalmente, o voto contrário do Estado em cujo desfavor se pronunciara o painel garantia a inutilidade de todo o processo. Era hora de adequar o sistema.


É nesse espírito que se convoca a última das rodadas comerciais que precedem a formação da OMC: a rodada Uruguai. Já na declaração de Punta Del Este, documento inaugural da rodada, os Estados negociadores incluíram entre seus objetivos a reforma do mecanismo de solução de controvérsias.


O mandato negociador incluía temas cuja regulamentação era reivindicada por nações desenvolvidas havia anos – em especial, serviços e proteção da propriedade intelectual. As negociações, contudo, foram além, e culminaram com a criação da Organização Mundial do Comércio, e com a reformulação de parte importante das regras vigentes sob o GATT47 (que passou a ser assim designado para contrastar com o arranjo reformado que emergiu da rodada, o GATT94).


Para sanar o problema do Gatt à la carte, a rodada Uruguai introduziu o princípio da “empreitada única” (single undertaking), pelo qual os acordos multilaterais negociados pela organização seriam de adesão compulsória a todos os membros. O ingresso na OMC, portanto, significava a aceitação de todo um pacote de acordos.


Finda a rodada, o sistema que vigorava desde os anos quarenta foi enfim substituído por uma organização internacional dotada de personalidade jurídica própria, apta a solucionar os problemas do conjunto normativo anterior.


O sistema de solução de controvérsias ganhou envergadura institucional, e, além dos painéis, passou a contar com um Órgão de Apelação permanente, composto por sete especialistas com poderes para reapreciar questões de direito (ao passo que a análise de matéria fática permaneceu restrita à competência dos painéis).


A lógica de funcionamento do sistema foi, portanto, substancialmente alterada. As decisões emitidas pelos painéis passaram a contar com um poder de dissuasão sem precedentes sob o GATT47.


Em matéria comercial, o século XXI começava com um acervo normativo e institucional muito mais robusto que o que existira até então.



Foto: World Trade Organization.


Inovações Introduzidas pela OMC


Sob a OMC, o que antes fora um mecanismo de solução de disputas extremamente ineficiente tornou-se a ferramenta dileta de Estados em busca de reparação por condutas comerciais internacionalmente ilícitas. Pode-se mesmo argumentar que o mecanismo tornou-se rapidamente o aspecto mais atraente de toda a OMC, sobretudo quando considerado o fato de que a organização mostrou-se incapaz, até o momento, de concluir sua primeira rodada comercial.


O motivo do apreço pelo novo sistema é simples: o documento concebido para tratar de litígios comerciais no seio da organização (o Entendimento sobre Solução de Controvérsias - ESC) inverteu a lógica vigente sob o GATT. Embora os relatórios emitidos por painéis continuem a ser submetidos ao crivo de um órgão político composto por todos os membros da OMC – no caso, o Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) –, a rejeição depende agora da formação de consenso negativo entre os votantes. Em outras palavras, basta um voto favorável para que o relatório seja adotado (vide artigo 16, §4 do ESC).


O princípio do consenso negativo não se aplica apenas ao momento de adoção do relatório. É, na realidade, uma exigência que reaparece do começo ao fim e baliza todo o processo no âmbito da OMC. Dessa forma, o painel solicitado por um membro da Organização só não será instalado se assim o decidirem por consenso os membros do OSC (art. 6o, §1 do ESC).


Do mesmo modo, caso o Estado violador não implemente em tempo razoável as medidas determinadas no relatório, o prejudicado poderá requerer ao OSC autorização para aplicação de retaliações - que só não serão implementadas em caso de consenso negativo (art. 22, §2 e §6 do ESC).


É fácil perceber que o novo formato favoreceu fortemente países sem excedentes de poder. O Brasil, por exemplo, serviu-se do mecanismo inúmeras vezes.


No DS267 (Brasil v. EUA - subsídios sobre algodão), fomos autorizados a retaliar os Estados Unidos em cerca de 800 milhões de dólares por força de subsídios ilícitos concedidos ao algodão norte-americano. O governo brasileiro recebeu ainda autorização para recorrer à retaliação cruzada – ou seja, o Brasil foi autorizado a retaliar em áreas outras que não a cotonicultura, uma vez que o impacto de medidas impostas ao setor seria desprezível.


Há, contudo, uma exceção importante à regra do consenso negativo, que explica o imbróglio em que se encontra a OMC: a escolha dos integrantes do Órgão de Apelação.

O artigo 17, §2º, do ESC estipula que “o OSC nomeará os integrantes do órgão de Apelação para períodos de quatro anos, e poderá renovar por uma vez o mandato de cada um dos integrantes”, mas não menciona o quórum necessário para a nomeação.


Quem o faz é o artigo 2, §4º, que dispõe que nos casos em que as normas e procedimentos ESC estabeleçam que o Órgão de Solução de Controvérsias deve tomar uma decisão, tal será por consenso.


Ao silenciar quanto ao quórum necessário à escolha dos juízes, o artigo 17 optou implicitamente pelo consenso positivo. Essa regra deu a Estados insatisfeitos o poder de vetar indefinidamente os nomes destinados a preencher as cadeiras vagas no Órgão de Apelação.


Antes dos Estados Unidos de Donald Trump, contudo, Estado nenhum se havia utilizado dessa possibilidade. Com a recente paralisação dos trabalhos do órgão, novos contenciosos ficam fadados à irresolução, bastando para tanto que a parte insatisfeita impugne o relatório, remetendo-o a uma instância cujo funcionamento está indefinidamente suspenso.


Daqui em diante - o que guarda o futuro?


Privados do mecanismo de solução de controvérsias da OMC, é provável que os Estados que se beneficiavam do arranjo procurem alternativas.


É bem verdade que o próprio ESC prevê a possibilidade de se recorrer à arbitragem ou à mediação, conciliação e bons ofícios, e que boa parte das disputas sequer chegam à etapa propriamente contenciosa, já que soluções alternativas em autocomposição são frequentes.


Mesmo assim, já se observam iniciativas e negociações para a formação de um tribunal de arbitragem capaz de driblar os insistentes vetos da Casa Branca. Uma proposta aventada pela União Europeia já conta com a adesão da Noruega e do Canadá, e recebeu recentemente mostras de simpatia chinesas. O próprio Diretor-Geral da OMC, Roberto Azevêdo, tem estimulado a procura de alternativas, sem deixar de realçar de que não passam de paliativos.



Foto: Martial Trezzini/EPA/EFE


Ainda que, com a paralisia, os países em desenvolvimento percam uma instância jurisdicional previsível, imparcial e eficiente, parece um equívoco pensar que a Casa Branca sai vencedora.


A administração Trump contribui, na realidade, para a debilitação da ordem multilateral que os próprios os Estados Unidos legaram ao mundo, estimulando assim a construção de alternativas à revelia dos interesses estadunidenses.


Ao final do dia, a única certeza que se impõe é a de que todos - subdesenvolvidos, emergentes ou desenvolvidos - saem prejudicados com o enfraquecimento da OMC.

A principal perdedora, contudo, é a própria Organização, que respira com a ajuda de aparelhos, e cuja sobrevida já começa a ser questionada.


A paralisação do Órgão de Apelação veio somar-se a uma série de problemas que se empilham aos pés de uma hesitante Organização Mundial do Comércio. O fracasso da rodada Doha parece implicitamente reconhecido, e os membros da organização voltam seus olhos para temas que não integram o mandato negociador em vigência.


Exemplo disso é a Conferência Ministerial de Buenos Aires (2017), na qual falou-se em pesca e comércio eletrônico, em um claro sinal de que assuntos como agricultura e serviços estejam talvez saindo da ordem do dia. Cogita-se até mesmo a flexibilização do Single Undertaking, visto como possível entrave à conclusão da rodada Doha. Fala-se hoje em uma “colheita antecipada” (early harvest), pela qual acordos já concluídos poderiam entrar em vigor e produzir resultados antes do encerramento de todas as tratativas.


Se o fracasso das negociações em torno da rodada Doha contribuiu para refrear a expansão do comércio global, a paralisia do sistema de solução de controvérsias da OMC suprime importante mecanismo dissuasório, que assegurava o respeito às conquistas e consensos internacionalmente estabelecidos no pós-guerra.


É possível, portanto, que estejamos diante de um novo processo de desglobalização análogo (ainda que menos intenso) ao vivido nos anos 30.

Evidência disso é a maneira caprichosa com que a Casa Branca vem instrumentalizando as normas da OMC em benefício próprio; basta que recordemos episódio recente, em que a administração Trump ameaçou impor sobretaxas ao aço e alumínio provenientes do Brasil e da Argentina. A medida seria uma resposta àquilo que os norte-americanos percebem como ganhos injustos de competitividade, decorrentes de políticas desvalorização cambial dos países sul-americanos. A justificativa jurídica invocada é o artigo XXI do GATT, que faculta às partes a implementação de medidas destinadas a resguardar da concorrência estrangeira os setores essenciais à segurança nacional. Nominalmente, o artigo menciona setores relacionados ao emprego de materiais físseis e ao tráfico de armas e munições, e ressalva medidas necessárias à proteção de interesses nacionais em tempos de guerra ou em caso de emergência internacional. É preciso muita boa vontade para incluir o comércio de aço e alumínio entre as hipóteses mencionadas.


Na segunda metade do século passado, o comércio internacional expandiu-se a taxas consistentemente superiores às de crescimento do PIB global. Essa expansão vertiginosa fez do comércio um importante propulsor do desenvolvimento. Se quisermos emular o ritmo de enriquecimento do século XX, será essencial contar com o amparo do livre-comércio, para o qual a OMC e seu equitativo sistema de solução de controvérsias serão imprescindíveis.


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Bibliografia básica:


ALMEIDA, Paulo Roberto de. A economia Internacional no século XX: um ensaio de síntese; BARRAL, Welber. Solução de Controvérsias na Organização Mundial do Comércio. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2007; ESTIVALLET DE MESQUITA, Paulo. A Organização Mundial do Comércio. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2013; VARELLA, Marcelo Dias. Efetividade do Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio: uma análise sobre os seus doze primeiros anos de existência e das propostas para seu aperfeiçoamento.



*Paulo Roberto Lemos é graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP). É pesquisador nas áreas de Direito Internacional Público e Ciência Política, com ênfase em Relações Internacionais

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