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Há um regime mundial de exceção?

*Por Nathalia Penha Cardoso de França


Foto: Radio France Internationale


A Teoria Política e a Teoria do Direito já conhecem o clássico Estado de Exceção. O século XX foi marcado por governos autoritários na América Latina e no continente europeu. Através da criação de estados de emergência, justificava-se a suspensão da ordem jurídica vigente para que representantes do poder executivo impusessem seus atos de governo sem qualquer limitação ao ordenamento jurídico. Assim foram permeadas as ditaduras nazista, fascistas e dos regimes militares na América Latina.


Entretanto, a Exceção contemporânea não é mais um estado de coisas declarado e formalmente imposto como descreveu Schmitt[2], nem de forma explícita e geograficamente reconhecível, como descreveu Agamben. A Exceção no século XXI ocorre dentro de uma aparente normalidade jurídico-política, e suspende direitos de sujeitos apontados em certas situações, sob pretextos aparentemente legítimos, como segurança nacional, manutenção do próprio Estado, desemprego da população, implementação de direitos humanos ou descontentamento político.


Enquanto forem apenas erros de aplicação jurídica, ou seja, disfunções do sistema, não se fala em Exceção. A situação Excepcional se instala quando tais violações se tornam permanentes, frequentes e patológicas, pois, assim, configura-se um regime. Agamben apontou essa diferença:


Longe de responder a uma lacuna normativa, o estado de exceção apresenta-se como a abertura de uma lacuna fictícia no ordenamento, com o objetivo de salvaguardar a existência da norma e sua aplicabilidade à situação normal. A lacuna não é interna à lei, mas diz respeito à sua relação com a realidade, à possibilidade mesma de sua aplicação. É como se o direito contivesse uma fratura essencial entre o estabelecimento da norma e sua aplicação e que, em caso extremo, só pudesse ser preenchida pelo estado de exceção, ou seja, criando-se uma área onde essa aplicação é suspensa, mas onde a lei, enquanto tal, permanece em vigor

Há convivência entre um Estado formal democrático e um Estado de Exceção permanente para certos grupos sociais e determinadas atuações estatais, e, como afirma Serrano, “os processos de legitimação desse último são exatamente idênticos aos processos linguísticos de legitimação de medidas de exceção do Estado formal”[4]. Esses são conceitos desumanizadores, como comunista, judeu, estrangeiro, terrorista, bandido, corrupto etc.


Muito embora a teorização do Estado de Exceção tenha ganhado forma a partir das ditaduras que vimos ascender no século passado, deve-se buscar alcançar um patamar importante da teoria do Estado de Exceção, ou seja, compreender que o que acontece hoje é a legitimação do discurso dos mecanismos formais das medidas de Exceção como meio de controle social, sem de fato interromper ou suspender a ondem jurídica vigente. Isso significa que apenas coexistem dois modelos estatais antagônicos, um de Direito e outro de fato, este último suspensor de direitos fundamentais apenas para uma parcela excluída da sociedade.


Sem pretensão de exaurimento, aplicamos tal teoria, com as devidas adaptações, ao campo internacional. Apesar da inexistência de um Estado Mundial, defendemos a presença de um common ground jurídico internacional - nas palavras de Dworkin[5] - o Direito Internacional que a todos os Estados vincula e obriga, por se tratar de um conjunto mínimo de direitos que são propriedade jurídica de todos os seres humanos. Assim, os Estados que, usando de seu poderio econômico, tecnológico e/ou político, suspendem disposições previamente acordadas de modo frequente e patológico, imprimem um regime de Exceção sobre os demais.


No Direito Internacional, portanto, a Exceção é mais sutil e cirúrgica, por conta do natural caráter schmittiano das relações internacionais e da fraqueza conceitual de uma igualdade posta entre os Estados.


A Exceção não necessariamente acontece ou toma lugar após a instauração do Direito: ambos podem ser contemporâneos. De fato, é historicamente visível que a Exceção nasce junto com o Estado de Direito, sendo a ameaça latente e constante da suspensão da ordem jurídica por si mesma. Por vezes, o elo entre o Direito e a Exceção está por uma ou mais previsões legais.


Os efeitos de um “Estado de Exceção” nas práticas internacionais não é declarado, mas atuam na rotina das sociedades ditas democráticas na seara mundial, convivendo com as prerrogativas excepcionais previstas no próprio Direito para situações de “defesa do Estado ou da sociedade”, “homeland security”, “defesa da economia interna” ou qualquer outro semelhante.


Vislumbramos uma mudança da natureza da Exceção, pois não há mais interrupção da democracia de um Estado para instaurar o Estado de Exceção, nem a total negação do Direito Internacional, seus tratados e até mesmo o jus cogens, mas mecanismos do autoritarismo típicos de Exceção que passam a existir e conviver dentro da rotina democrática como verdadeira técnica de governo, mesmo no âmbito internacional.

A Carta das Nações Unidas, por exemplo, é marco internacional de Direitos Humanos e de Direito Internacional Público. Trouxe a Organização Internacional mais atuante do mundo e se preocupou com a instauração de patamares mínimos de proteção humana. Isso é facilmente constatado pelo próprio preâmbulo da Carta:


Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla. E para tais fins, praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais, e a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição dos métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse comum, a empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social de todos os povos. Resolvemos conjugar nossos esforços para a consecução desses objetivos

Contudo, o mesmo documento dispõe sobre o funcionamento e a estrutura de um de seus principais órgãos, o Conselho de Segurança, que tem por função manter a paz e a segurança internacionais, investigar situações de potencial conflito internacional, recomendar ajustes e acordos, impor sanções, determinar existência de ameaça à paz, entre outras. A composição e o funcionamento do Conselho de Segurança são extremamente desiguais, pois, dentre seus apenas quinze membros, cinco permanentes têm poder de veto, são eles: China, França, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos da América, ou seja, os então vencedores da Segunda Guerra Mundial.


Ainda, a vantagem dos membros permanentes sobre os outros Estados não se restringe ao poder de veto. A memória institucional desenvolvida pelo chamado P5 facilita o manejamento de “regras e procedimentos a seu favor, [construção de] relações com o Secretariado da ONU que possam ser de assistência de longo prazo”[6], além de que estes cinco países possuem missões com melhores staff e recursos, bem como um número maior de embaixadas e representantes que possam prover informações na hora da decisão.


Ora, eis uma previsão legal que, apesar de fazer parte do Direito, é Excepcional. Rompe com as demais previsões cunhadas na igualdade e no equilíbrio entre as soberanias, seja na própria Carta da ONU, seja em outros Tratados Internacionais e em decisões jurisprudenciais. Quando falamos em common ground jurídico internacional, lembrando a expressão de Dworkin, não falamos de previsões como essa, mas de todo o restante: do conjunto de direitos mínimos forjados pela história e pela experiência humanas, que passa a se tornar obrigatório a toda a comunidade internacional – seu core pode ser entendido como o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mas também há disposições de Direito Internacional Público, Humanitário e dos Refugiados.


Foto: Nações Unidas


A realidade dos últimos anos indica uma forte vivificação da doutrina do Estado de Exceção. Há apelo às ameaças do terrorismo, do tráfico internacional de drogas, de ideologias religiosas, de questões étnicas e de problemas econômicos, como a corrupção. Com base nisso, vários países apelam mais e mais às medidas excepcionais, claramente restritivas de direitos fundamentais. O pretexto é sempre o discurso da necessidade de fazer frente a algum mal iminente, um inimigo “da moda”. Os governos buscam justificar a adoção de atos normativos e executivos claramente contrários à ordem internacional, especialmente na parcela ligada às garantias fundamentais.


A unilateralidade de decisão de alguns Estados, como os Estados Unidos, que agem como polícia mundial, usurpa o campo decisório internacional acordado previamente entre os Estados. Nesse sentido, Husek cita Bresser Pereira: "Neste mundo global e crescentemente democrático, o governo Bush, usando o 11 de setembro, como desculpa, limita os direitos de cidadania dentro dos Estados Unidos, afrontando os princípios democráticos, e no plano internacional decide agir unilateralmente como se fosse um império, quando no século XXI, já não há mais espaço para decisões unilaterais".


A guerra, ou o “uso da força”, como mencionado na Carta da ONU e pela doutrina em detrimento do termo “guerra”, é, na atualidade, utilizada como forma de suspender indefinidamente o Direito Internacional. Mesmo após a criação da ONU e o período pós-guerra ter feito emergir com maior força a existência e a eficácia do Direito Internacional, Estados tidos por potências econômico-políticas continuam a intervir na soberania de outros Estados sem sua admissão, justificando tais atos como intervenção legítima para restauração da ordem, implementação de democracias ou proteção de direitos humanos.

O maior exemplo do exposto são os Estados Unidos da América. Tomando como ponto de partida o ano de 1945, criação da ONU e o fim das Guerras Mundiais, o país já participou ou iniciou mais de 20 guerras, notadamente a Guerra do Vietnã (1965-1973); a Guerra do Golfo (1990-1991); a Guerra no Afeganistão (2001-2014), como parte da Guerra ao Terror contra a Al Qaeda, pós-11 de setembro de 2001; a Guerra do Iraque (2003-2011); e, também como vertente da Guerra ao Terror, a Guerra no Paquistão (2004-presente), a Guerra no Iêmen (2010-presente) e a Guerra na Síria, contra o Estado Islâmico.


O mesmo país, apesar de ter participado da maioria das tratativas e das negociações de tratados de direitos humanos no mundo, não faz parte do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, pois não ratificou a Convenção Americana; não está vinculado ao Tratado de Roma, que institui o Tribunal Penal Internacional; denunciou o Tratado de Paris sobre o Clima; abandonou o acordo nuclear que mantinha com o Irã, conquistado sob tanto trabalho; e saiu, em plena pandemia causada pelo covid-19, da Organização Mundial da Saúde, sendo que a maior parte de sua receita financeira vinha dos americanos.

É a permanência constante em estado de guerra, ou num limbo jurídico de não-ratificação de importantes tratados e organizações, com a intenção de que se instaure a Exceção e jamais retorne à normalidade do sistema jurídico internacional. Parece que, mesmo após quase um século de elaboração e aperfeiçoamento do Direito Internacional dos Direitos Humanos e seus consectários, alguns Estados ainda atuam da forma descrita por James Crawford: “powerful States will only ‘obey’ International law when it is in their perceived interest to do so”[8].


Compreendemos, portanto, a reiterada e proposital violação da ordem jurídica internacional como sendo medida de Exceção, pois as relações internacionais têm grande caráter schimittiano, em decorrência da ausência de um “Estado Mundial” e o direito tem falhado em conter medidas como essa, justamente por serem decisões de Exceção, que suspendem o próprio direito no âmbito de sua aplicação.

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REFERÊNCIAS:

SCHMITT, Carl. O Conceito do Político. Tradução de Álvaro Valls. Petrópolis: Vozes, 1992; Teologia Política. Tradução de Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006; AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Homo Sacer, II, 1. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011, p. 48-49; SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Autoritarismo e golpes na América Latina: breve ensaio sobre jurisdição e Exceção. São Paulo: Alameda, 2016; DWORKIN, Ronald. Is Democracy Possible Here? Principles for a New Political Debate. Nova Jersey: Princeton University Press, 2006, p. 9; ROMITA, Paul; CHOWDHURY, Fink e PAPENFUSS, Till. Issue Brief: What Impact? The E10 and the 2011 Security Council. International Peace Institute, 2011. Disponível em <http://www.isn.ethz.ch/isn/DigitalLibrary/Publications/Detail/?ots591=0c54e3b3-1e9c-be1e-2c24- a6a8c7060233&lng=en&id=128139>. Acesso em 10 maio 2020, p. 2; HUSEK, Carlos Roberto. A Nova (Des)ordem Internacional. São Paulo: RCS, 2007, p. 177-178; CRAWFORD, James. Chance, Order, Change: The Course of International Law. Haia: Pocket books of The Hague Academy of International Law, 2013, p. 29.


*Nathalia Penha Cardoso de França é advogada e mestre em Direito pela PUC/SP. Especialista em Direito Internacional Público pela Academia de Haia de Direito Internacional e em Direitos Humanos, Segurança e Desenvolvimento pela Universidade de Ciências Aplicadas de Haia. Membro efetivo do Núcleo de Estudos em Tribunais Internacionais da USP, subgrupo Corte Internacional de Justiça. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC/SP.

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