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Os civis em meio ao conflito na Etiópia

*Por Camila Ramos Rhoden


Foto: luto pelas vítimas de um massacre na casa de Beyenesh Tekleyohannes, na aldeia de Dengolat, ao norte de Mekele, capital de Tigray / Eduardo Soteras/AFP.



Embora dividida entre nove etnias, a Etiópia, por décadas, teve seu contexto político dominado pelos tigrés, mais especificamente pela FLPT, cuja coalizão governista passou a apresentar sinais de fraqueza, notadamente devido aos altos índices de desemprego, de pobreza e aos constantes conflitos interétnicos no sul do país, em 2018. Durante grande parte do período em que esteve sob o controle dos tigrés, o país foi parte de um conflito armado com a Eritreia com duração de, aproximadamente, dois anos, de 1998 a 2000. Embora a guerra tenha terminado em 2000, as tensões entre os países persistiram até que, em 2018, a partir da ascensão de Abiy Ahmed, de etnia diversa da dos tigrés, ao cargo de primeiro-ministro na Etiópia, foi assinado um acordo de paz, o qual tornou Ahmed vencedor do Prêmio Nobel da Paz em 2019. Ahmed também foi responsável pela autorização da atuação da oposição no país, pelo perdão a presos políticos e pela suavização do controle exercido pelo governo sobre a imprensa e a internet.


Entretanto, ao assumir o governo, o primeiro-ministro tirou força do partido historicamente preponderante, o FLPT, a partir do afastamento dos então membros do governo, bem como das diversas acusações, direcionadas aos integrantes do partido, de corrupção e de abuso dos direitos humanos. Inconformada, a região do Tigray recusou-se a apoiar o novo governo, promovendo eleições regionais, consideradas ilegítimas por Ahmed, que determinou o corte de fundos orçamentários à região, ação considerada, pelos tigrés, como equivalente a uma declaração de guerra. O início dos confrontos diretos entre as partes se deu em 4 de novembro de 2020, quando o governo anunciou uma ofensiva militar acusando os membros da FLPT de atacarem uma base militar federal próxima a Mekele, capital da região.


Foto: Soldados etíopes capturados passam em fila pelos residentes em Mekele depois que as tropas do governo foram expulsas de Tigray / Yasuyoshi Chiba/AFP/Getty Images.


Para que as hostilidades entre dois agentes possam ser caracterizadas como um conflito armado não internacional (CANI), é necessário que sejam atingidos os requisitos de intensidade da violência e de organização do grupo armado. Neste sentido, o Tribunal Criminal Internacional da Yugoslavia determinou uma lista de fatores que indicam que o conflito atingiu a intensidade necessária para se diferenciar de meras tensões internas - como o número e a duração das confrontações, os tipos de armas utilizadas, os números de indivíduos envolvidos no conflito, o número de civis fugindo da região - e que indicam que o grupo armado possa ser considerado organizado - dentre eles a existência de uma estrutura de comando interna, a habilidade de treinar e recrutar seus membros, a habilidade de comandar operações militares, a habilidade de ter acesso a armas.


Assim, como já afirmado pela pesquisadora da Academia de Genebra, a Dra. Chiara Redaelli, os inúmeros ataques conduzidos pelas partes, bem como o número de casualidades demonstram que o conflito atinge o nível de intensidade necessário para ser considerado um CANI, bem como a manutenção do grupo no poder por, aproximadamente, 30 anos, o treinamento concedido a seus membros, o grande número de tropas próprias - aproximadamente 250.000 - e a sua capacidade de conduzir operações fora da região onde exerce controle apontam a sua organização.


Desta forma, estando a Etiópia inserida em meio a um CANI, as hostilidades entre as partes do conflito são reguladas pelo Direito Internacional Humanitário (DIH), mais especificamente pelo direito costumeiro, pelo artigo 3º das Convenções de Genebra, pelo Protocolo Adicional II e, também, pelos direitos humanos, cuja aplicação não finda em meio a conflitos armados. No DIH aplicável a conflitos armados não internacionais, ainda que rudimentar quando comparado àquele que regula entre Estados, os civis, bem como os objetos indispensáveis para sua sobrevivência, gozam de proteção, não podendo ser alvos de ataques, assim como de atos, ou até de ameaças, de violência, salvo se estiverem participando ativamente das hostilidades.


Na mesma data em que o governo etíope anunciou a ofensiva militar, 4 de dezembro de 2020, também promoveu um bloqueio dos meios de comunicação e de internet na região do Tigray. Desta forma, com a comunicação bloqueada e a passagem de jornalistas restrita, o acesso aos dados do conflito resta prejudicado, mas é estimado que mais de 60.000 pessoas, com medo do aumento do nível de violência na região, buscaram abrigo, como refugiados, no Sudão, um milhão de pessoas estão internamente deslocadas, e milhares foram mortas, sendo que destas 1.900 eram tigrés.


A fim de promover o auxílio aos civis em meio a conflitos armados, o DIH estabelece que, sujeitas ao consentimento da “Parte Contratante”, organizações, imparciais e humanitárias, devem oferecer seus serviços, objetivando o acesso da população civil aos mantimentos que carecem e que são essenciais para sua sobrevivência. No tocante a esta previsão, o prof. Marco Sassòli, em seu livro International Humanitarian Law: Rules, Controversies and Solutions to Problems Arising in Warfare, reflete a respeito da controvérsia existente sobre quem pode conceder o acesso a ajuda humanitária em meio a CANIs, sendo que, enquanto alguns defendem que apenas o país signatário do Protocolo possui condão para tanto, muitas organizações não governamentais sustentam que os grupos armados também possuem autoridade para oferecer o consentimento vez que, além de o artigo comum 3º das Convenções de Genebra determinar que corpos humanitários ofereçam seus serviços a uma das partes do conflito, sem especificar qual parte, acreditam que se a ação humanitária não passar pelo território controlado pelo governo, não há razão para depender de sua autorização.


Foto: Tigrés de luto ao lado de uma vala comum na cidade de Wukro, ao norte de Mekele, em 28 de fevereiro de 2021 / Eduardo Soteras/AFP.


Cabe ressaltar que, como afirmado por Sassòli, a recusa de consentimento para a atuação da assistência humanitária, se não justificada, constitui uma violação, ainda que indiretamente, ao DIH, bem como aos Direitos Humanos, haja vista que o Estado é responsável, mesmo em meio a conflitos armados, por respeitar e por proteger os direitos à vida, à comida, ao abrigo e à saúde daqueles que estão sob sua jurisdição. Destaca-se que a recusa da assistência humanitária só pode ser considerada justificada se a população civil não estiver em necessidade ou se a organização responsável não é capaz de conduzir suas atividades de maneira imparcial, o que não se configura na hipótese.


Neste sentido, analisando o conflito em questão, restam nítidas as violações contra o DIH e os Direitos Humanos em relação ao tratamento a ser concedido aos civis, de forma que as liberdades antes adotadas por Ahmed quando ascendeu ao poder restam pisoteadas. O Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, em atualização divulgada em maio de 2021, relatou que o acesso humanitário para a região do Tigray ainda é muito limitado, sendo muitas áreas declaradas como inacessíveis pelo governo central da Etiópia. Dentre os inúmeros problemas que os civis enfrentam, como falta de eletricidade, falta de serviços médicos, falta de água potável, abusos sexuais, o mais alarmante, no momento, é a falta de comida, sendo que 11.000 crianças encontram-se subnutridas e que rodovias estão bloqueadas, de modo a impedir o transporte dos mantimentos.


Em sendo nítido que o país etíope não vem logrando êxito no respeito às normas de Direito Internacional, mostra-se de suma importância que os demais membros da comunidade internacional atuem de modo a pressionar o adimplemento das obrigações, como, por exemplo, a partir da adoção de contramedidas ou a partir da atuação da ONU. A Comissão de Direito Internacional, em 2001, no seu projeto de artigos sobre a responsabilidade dos Estados por atos internacionalmente ilícitos, determinou que todos os Estados têm o direito de induzir o Estado infrator a cumprir com suas obrigações erga omnes - aquelas devidas a toda comunidade internacional -, sendo o DIH assim visto. Outrossim, as Nações Unidas são responsáveis pela manutenção da paz e da segurança internacional, de modo que conflitos, internacionais e domésticos, representam uma ameaça a tal propósito. Assim, é cabível a sua intervenção no conflito em questão, a partir do emprego de operações de paz com mandato semelhante àquele concedido à missão que teve atuação na República Democrática do Congo, que determinou a efetiva proteção de civis.


Contudo, assim como argumentado pelo Prof. Paulo Borba Casella, o melhor encaminhamento para o conflito seria uma discussão no Conselho de Segurança da ONU, a fim de que uma solução seja encontrada a partir da observação da multilateralidade da situação, sem que um país imponha suas vontades na região. Além disso, é importante destacar que um dos caminhos a serem seguidos pelo conflito diz respeito ao direito de autodeterminação da etnia dos tigrés, sendo este um direito constitucionalmente reconhecido no país, inclusive com direito à secessão. Contudo, o prof. Casella revela que a autodeterminação é algo que está na Constituição, mas é preciso ver se isso funciona na prática, notadamente porque necessária uma votação para aprovação do pedido, o que não se mostra como um procedimento pacífico em meio ao atual contexto do país. Frise-se, ainda, que não se trata unicamente de um conflito étnico, estando envolvidos interesses geopolíticos de muitos países devido à presença de recursos energéticos e de petróleo na região, assim como afirmado pelo Prof. Mamadou Alpha Diallo.


Desta forma, é possível concluir que o atual conflito interno na Etiópia é resultado de anos de instabilidade no país e, embora disputado pelo governo etíope e pela FLPT, conta com diversos interesses dos demais membros da comunidade internacional em virtude da riqueza e da localização da região.

Em sendo nítido que inúmeras obrigações estabelecidas, tanto pelo Direito Humanitário quanto pelos Direitos Humanos, são violadas pela Etiópia, mormente no tocante aos civis, resta fundamental a atuação dos membros e dos órgãos da comunidade internacional a fim de que seja reestabelecida a paz e a segurança da região, visando à proteção das vítimas das hostilidades.



* Camila Ramos Rhoden é graduanda em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e faz parte da Clínica de Direito Internacional Humanitário da UFRGS.

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