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Primeira medida provisória da Corte IDH em face do Brasil antes do julgamento do mérito de um caso

Por Bruna Nowak e Paula Gabriela Barbieri*


Foto: Roberto Parizotti/CUT / Monumento a Antônio Tavares na BR 277.


Em 24 de junho de 2021, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) expediu Resolução por meio da qual adotou medidas provisórias no âmbito do Caso Tavares Pereira e Outros v. Brasil. Referido caso se encontra em fase de instrução perante o tribunal internacional, de maneira que esta é a primeira ocasião em que a Corte IDH confere medidas provisórias em face do Brasil quanto a um caso ainda pendente de julgamento de mérito.


No presente artigo, será detalhado o pano de fundo fático que engendrou a propositura de petição perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, bem como serão delineados o trâmite e os desdobramentos do caso perante a CIDH e os contornos emblemáticos das medidas provisórias determinadas pela Corte IDH ao Estado brasileiro.

Como se verá, algumas nuances de novidade perpassam essas medidas provisórias, não apenas por conta do momento processual em que foram conferidas, mas também em virtude de sua natureza eminentemente cautelar, com vistas à proteção de patrimônio histórico e cultural, além do fato de terem sido outorgadas sem a oitiva prévia do Estado brasileiro. Estes contornos específicos são de extrema relevância para o Brasil, haja vista que todas as demais medidas provisórias já outorgadas pela Corte IDH em face do país concernem a estabelecimentos de privação de liberdade e se voltam mais à tutela de direitos humanos do que à preservação de uma situação jurídica.



O contexto fático do caso


Os fatos do caso remetem à violência policial sofrida pelo Sr. Antônio Tavares Pereira e outros integrantes do Movimento Sem Terra (MST), no dia 2 de maio de 2000. Na ocasião, em torno de 1.500 pessoas - entre elas mulheres e idosos -, que se dirigiam à Curitiba para uma manifestação pela reforma agrária, foram abordadas e reprimidas pela Polícia Militar do Estado do Paraná, o que provocou a morte de Antônio Tavares Pereira e lesões corporais em outros 185 integrantes do MST, de acordo com o relato das presumidas vítimas.


A caravana de cerca de cinquenta ônibus foi abordada na rodovia BR 277, no interior do Estado do Paraná, por agentes da Polícia Militar, que, inicialmente, realizaram a inspeção e a apreensão dos materiais que seriam usados na manifestação. Em seguida, a caravana seguiu escoltada pelas viaturas militares em direção a Curitiba. No entanto, já nas proximidades da cidade de destino, os agentes de polícia impediram a entrada dos manifestantes e ordenaram que regressassem, indicando que o protesto havia sido proibido em virtude da ordem de interdição proibitória 21/2000.


A decisão judicial aludida proibia a ocupação de prédios públicos de uso especial do Estado situados no Centro Cívico de Curitiba, mas indicava expressamente que não se proibia a livre circulação nem a realização de manifestações nas ruas, praças e outros lugares públicos. Ainda assim, os manifestantes acataram a ordem policial e decidiram regressar.


No caminho de volta, próximo à cidade de Campo Largo, os integrantes do MST viram alguns ônibus do Movimento parados no sentido contrário da rodovia e desceram para averiguar o que havia acontecido. Os agentes de polícia ordenaram que os trabalhadores não descessem, mas essa ordem não foi obedecida.


Como consequência, os agentes policiais efetuaram disparos para intimidar os integrantes do movimento rural. Um dos projéteis, disparado em direção ao asfalto, saiu da cápsula e atingiu Antônio Tavares Pereira no abdome. A vítima foi socorrida pelos trabalhadores, mas veio a falecer no hospital.


A atuação policial gerou revolta nos demais integrantes da caravana, que avançaram em direção aos agentes. A resposta da Polícia Militar foi bastante violenta e resultou em ferimentos a muitos outros trabalhadores rurais. As vítimas afirmam que esse efeito foi devido ao uso excessivo e desproporcional da força e das armas policiais. Ainda, de acordo com as alegações das vítimas presumidas, o Estado organizou e planejou essa ação seguindo o modelo de uma operação de guerra, assumindo o risco de um resultado gravíssimo.

Foto: Wellington Lenon.


Em relação à responsabilização estatal pelos fatos, houve a instauração de dois processos para averiguação da atuação da polícia: um na Justiça Militar e outro na Justiça Comum. O processo militar foi instaurado contra o soldado Joel de Lima Santa Ana, que efetuou o disparo que atingiu Antonio Tavares Pereira, e concluiu que o agente atuou em estrito cumprimento do dever legal, em legítima defesa e num momento de necessidade. Portanto, foi arquivado sem qualquer responsabilização policial. Após o trânsito em julgado desta decisão, o processo criminal que tramitava paralelamente na Justiça Comum foi interrompido, pois já havia decisão da Justiça Militar sobre o mesmo fato.


Além dos processos criminais, a família de Antônio Tavares Pereira ajuizou uma ação civil contra o Estado do Paraná, solicitando uma indenização por danos morais e materiais, a qual foi julgada procedente. O processo encontra-se em fase de cumprimento de sentença, já tendo iniciado o pagamento de pensões mensais à ex-esposa e aos filhos da vítima, restando pendente de pagamento parcela dos valores indenizatórios.

O trâmite do caso perante a CIDH


A impunidade em relação aos fatos motivou os familiares de Antônio Tavares Pereira e as demais vítimas da violência policial a apresentarem uma demanda ante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos. A petição foi recebida em janeiro de 2004 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que aprovou a admissibilidade do caso em outubro de 2009.


Após a análise de mérito, ouvidos a representação das vítimas e o Estado, a CIDH publicou, 3 de março 2020, o Relatório de Mérito nº 6/20, referente ao Caso 12.727, pelo qual concluiu que o Estado brasileiro não trouxe uma explicação que permitisse considerar a morte de Antônio Tavares Pereira e as lesões sofridas pelas demais vítimas como resultado do uso legítimo da força pelo Estado.


Além disso, a CIDH entendeu que o procedimento perante a Justiça Militar não foi imparcial e constituiu um fator de impunidade, pois não permitiu que as vítimas tivessem um recurso efetivo. Considerou-se, ainda, que o Estado não atuou com a devida diligência para investigar as lesões e identificar os feridos.


Em relação à ação civil proposta pelos familiares de Antônio Tavares Pereira, a CIDH afirmou que esta não foi efetiva e descumpriu a garantia do prazo razoável. Por último, a CIDH estabeleceu que a morte de Antônio Tavares Pereira gerou sofrimento e angústia a seus familiares, violando o direito à integridade psíquica e moral.


Com base nessas determinações, a CIDH concluiu que o Estado brasileiro é responsável pela violação dos direitos consagrados nos artigos 4.1 (direito à vida), 5.1 (integridade pessoal), 13 (liberdade de pensamento e de expressão), 15 (direito de reunião), 22 (direito de circulação e de residência), 8.1 (garantias judiciais) e 25.1 (proteção judicial) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), relativamente aos seus artigos 1.1 (dever de respeitar e garantir direitos) e 2 (dever de adotar disposições de direitos interno), em prejuízo das pessoas indicadas no Relatório de Mérito.


Entre as medidas de reparação, a CIDH recomendou ao Estado: 1) reparar integralmente as vítimas diretas no presente caso e os familiares de Antônio Tavares Pereira; 2) adotar as medidas de atenção à saúde física e mental necessárias para a reabilitação das 185 vítimas diretas do caso e dos familiares de Antônio Tavares Pereira; 3) realizar uma investigação de maneira diligente, imparcial e efetiva, dentro de um prazo razoável, para esclarecer os fatos de forma completa e impor as sanções que correspondam às violações de direitos humanos descritas no relatório; e 4) adotar medidas de capacitação, de caráter permanente e abordando a matéria de direitos humanos, dirigidas aos órgãos de segurança que atuam no contexto de manifestações e protestos.


Um ano após a publicação do Relatório pela CIDH e sem o cumprimento substancial das recomendações impostas ao Estado brasileiro, com base no artigo 51.1 da CADH, o caso foi remetido à Corte IDH, em 6 de fevereiro de 2021. Perante a Corte, o caso passou a ser denominado “Caso Tavares Pereira e Outros v. Brasil”.

A solicitação das medidas provisórias perante a Corte IDH


Ainda sem ter ocorrido o julgamento pelo tribunal internacional, os representantes das vítimas formularam um pedido de medida provisória direcionado à Corte IDH, solicitando a adoção das medidas necessárias para manter incólume um memorial simbólico ao presente caso: o Monumento Antônio Tavares Pereira.


O Monumento Antônio Tavares Pereira foi projetado pelo artista e arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer e foi instalado às margens da rodovia BR 277, no km 108, no Município de Campo Largo, Estado do Paraná, vez que os fatos do caso ocorreram nas proximidades deste local. No dia 2 de maio de cada ano, trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra do Paraná se reúnem aos pés do Monumento, em memória de Antônio Tavares Pereira e das “vítimas do latifúndio”, sendo o memorial um símbolo da luta pela terra na região frente à exacerbada violência estatal.


O Monumento está localizado em uma propriedade privada pertencente à empresa POSTEPAR - Indústria de Artefatos de Concreto do Paraná LTDA, que cedeu a área para sua instalação em 22 de fevereiro de 2001, mediante um contrato de comodato firmado com organizações representantes do MST. A empresa POSTEPAR solicitou a rescisão do contrato, notificando as organizações contratantes de que, caso o monumento não fosse retirado até fevereiro deste ano, a empresa realizaria a propositura da ação judicial competente, sem prejuízo da imediata retirada do memorial.

Foto: Leandro Chugan.


Diante desta possibilidade, em 7 de junho deste ano, as entidades de representação das alegadas vítimas requereram a concessão de medidas de acautelamento por parte da Corte IDH, solicitando que fosse determinado ao Estado brasileiro promover a proteção do Monumento - e a consequente proibição de sua demolição - até a publicação da sentença no âmbito interamericano. O pedido foi atendido pela Corte IDH, que em 24 de junho publicou uma Resolução adotando as medidas provisórias solicitadas.


A medida provisória é o mecanismo utilizado pela Corte IDH para salvaguardar direitos em contextos de graves violações e assegurar a eficácia de provimento jurisdicional futuro. Encontra previsão normativa no artigo 63.2 da CADH e no artigo 27 do Regulamento da Corte IDH. Referidas medidas podem ser adotadas pela Corte de ofício, nos casos que estiverem sob sua jurisdição, ou a pedido da CIDH, em casos ainda não submetidos ao conhecimento daquela, sempre que se tratar de situações de extrema gravidade e urgência e quando for necessário para evitar danos irreparáveis às pessoas. Nos casos contenciosos em trâmite perante a Corte IDH, as supostas vítimas ou seus representantes podem solicitar diretamente a adoção de medidas provisórias, tal qual se deu no Caso Tavares Pereira e Outros v. Brasil.


É importante destacar que as medidas podem ser aplicadas em qualquer momento do processo interamericano, ou seja, tanto antes da publicação de uma sentença da Corte IDH, como ocorrido na situação em questão, quanto ao longo da fase de supervisão do cumprimento de sentença.


A título de curiosidade, destaca-se que, em 2009, enquanto o Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) v. Brasil estava em julgamento perante Corte IDH, as entidades peticionárias submeteram pedido de medidas provisórias à Corte. Entretanto, após apreciar as observações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e do Estado brasileiro, e por considerar que não estavam presentes os requisitos de gravidade e urgência e necessidade de evitar danos irreparáveis, a Corte decidiu não outorgar as medidas provisórias. Em 24 de novembro de 2010, a Corte IDH proferiu a sentença do caso.


Para decidir se concede ou não uma medida provisória, a Corte IDH pode requerer ao Estado, à CIDH e/ou aos representantes dos propostos beneficiários a apresentação de informações.


No Caso Tavares Pereira e Outros v. Brasil, a Corte IDH outorgou as medidas provisórias tão somente com base nas alegações das entidades peticionárias contidas em seu escrito de petições, argumentos e provas. Isto significa que o Estado brasileiro não foi instado a se manifestar antes da decisão da Corte IDH. Justamente, o ponto resolutivo nº 3 da Resolução de 24 de junho de 2021 requereu ao Brasil a apresentação de informações sobre o cumprimento das medidas provisórias.


Ademais, a Corte solicitou ao Ministério Público do Estado do Paraná a apresentação de um relatório “sobre a tramitação e avanços relacionados aos pedidos de medidas de acautelamento” do Monumento. Referido requerimento se baseou no artigo 27.8 do Regulamento da Corte IDH, que prevê a possibilidade de solicitação a outras fontes de informação de dados relevantes sobre o assunto, que permitam apreciar a gravidade e a urgência da situação e a eficácia das medidas. Ainda que o Ministério Público integre a estrutura do Estado brasileiro, a Corte optou por consultá-lo autonomamente.


Tendo a Corte concluído pela aplicabilidade das medidas provisórias, solicitou ao Estado brasileiro a tomada de providências urgentes necessárias para assegurar a eficácia de sua decisão. Ainda que o Monumento Antônio Tavares Pereira tenha sido concebido no âmbito de relações eminentemente privadas e sem a participação de instâncias estatais, a Corte IDH ordenou ao Estado brasileiro a adoção de todas as medidas adequadas para proteger efetivamente o Monumento no local onde foi construído, até que o Tribunal decida sobre o mérito do caso. O Estado deverá incluir os beneficiários das medidas provisórias no planejamento e implementação dessas medidas de proteção e, em geral, mantê-los informados sobre o progresso de sua execução.

Tanto o Estado demandado como os representantes dos beneficiários devem apresentar relatórios sobre o cumprimento das medidas determinadas. No caso, a Corte IDH estabeleceu que o Brasil deverá enviar informações a cada dois meses. A CIDH, por sua vez, é responsável por apresentar observações a ambos os relatórios. Em alguns casos, audiências públicas ou privadas são convocadas pela Corte IDH para monitorar a implementação das medidas.


De acordo com o artigo 27.10 do Regulamento da Corte, anualmente a Corte deve incluir em seu relatório apresentado à Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos uma relação das medidas provisórias que tenha ordenado ao longo do ano. Em 2018, a Secretaria da Corte apresentou a sistematização das resoluções sobre medidas provisórias, que compila todas as resoluções emitidas pela Corte IDH em matéria de medidas provisórias até dezembro de 2017.


Deste relatório, infere-se que 84 resoluções se referem a medidas provisórias solicitadas pela CIDH em casos não submetidos à Corte, 29 resoluções concernem a casos conhecidos, mas ainda não julgados pela Corte e, por fim, outras 39 resoluções de medidas provisórias correspondem a casos já sentenciados pela Corte e que estavam em fase de supervisão do cumprimento de sentença no momento da concessão da medida.


A concessão de medidas provisórias antes do proferimento de sentença é hipótese menos usual no Sistema Interamericano. Chama a atenção o teor pontual das medidas outorgadas no Caso Tavares Pereira e Outros v. Brasil: a proteção de patrimônio histórico e cultural relevante para a preservação da memória da luta por direitos agrários no Estado do Paraná. O Monumento por si só é um marco para a não-repetição de violações, de maneira que constitui símbolo relevante a ser preservado - inclusive como medida de reparação caso a Corte IDH prolate sentença que responsabilize internacionalmente o Brasil pelas violações de direitos humanos.



*Bruna Nowak e Paula Gabriela Barbieri são pesquisadoras do Observatório Cosmopolita do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.


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