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Procurador do TPI solicita abertura de investigação sobre a situação na Ucrânia

Por Beatriz Nogueira Caldas*


Foto: Militar ucraniano em Avdiivka, Donetsk / PHOTOGRAPH BY GLEB GARANICH, REUTERS.


O Procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI), Karim Khan, declarou, na última segunda, 28 de fevereiro de 2022, que foram coletados indícios suficientes sobre a ocorrência de crimes de guerra e crimes contra a humanidade na Ucrânia, e, consequentemente, requereu autorização para abrir uma investigação sobre o caso.


Antecedentes e perspectivas para a abertura de uma investigação


Apesar de o anúncio ter sido feito poucos dias após o início do conflito armado entre Rússia e Ucrânia, as evidências de supostos crimes se referem a um exame preliminar que estava sendo conduzido pela Procuradoria do TPI desde abril de 2014. A investigação visava principalmente crimes ocorridos no contexto do conflito da Crimeia, iniciado naquele ano. Em dezembro de 2020, a ex-Procuradora do TPI, Fatou Bensouda, declarou que a análise preliminar havia concluído que os requisitos necessários para a abertura de uma investigação, nos termos do Estatuto de Roma, haviam sido preenchidos. Entretanto, por causa de dificuldades financeiras e logísticas agravadas pela pandemia, essa abertura não ocorreu.


Em razão dos recentes desdobramentos, Karim Khan ressaltou a importância da investigação e reiterou o caráter de urgência. Embora a investigação atual se baseie em evidências de crimes cometidos durante o conflito da Crimeia, o Procurador afirmou que “dada a expansão do conflito nos últimos dias, é minha intenção que esta investigação também abranja quaisquer novos supostos crimes que se enquadrem na jurisdição do meu Gabinete que sejam cometidos por qualquer parte do conflito em qualquer parte do território da Ucrânia” (tradução livre). Dessa forma, a investigação pode englobar os possíveis crimes perpetrados durante o conflito atual entre Rússia e Ucrânia.


Para que a investigação possa de fato ser iniciada, ela ainda precisa ser autorizada pela Seção de Instrução (Pre-Trial Chamber) do TPI. O caso foi designado para a Seção de Instrução II, que deverá avaliar se existem fundamentos suficientes para a abertura de um inquérito e se o caso se encontra dentro da jurisdição do Tribunal.

Não obstante, o pedido feito por 39 Estados Parte do TPI solicitando a abertura da investigação poderá agilizar essa etapa do processo. De acordo com o artigo 14 (1) do Estatuto de Roma, “Qualquer Estado Parte poderá denunciar ao Procurador uma situação em que haja indícios de ter ocorrido a prática de um ou vários crimes da competência do Tribunal e solicitar ao Procurador que a investigue, com vista a determinar se uma ou mais pessoas identificadas deverão ser acusadas da prática desses crimes”.


Possíveis crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos no conflito da Ucrânia: a competência material do TPI


Como regra geral, o TPI tem competência para julgar crimes de guerra, crimes contra a humanidade, crimes de genocídio e crimes de agressão (competência material) quando estes crimes forem cometidos no território de qualquer Estado Parte do Estatuto de Roma ou de um Estado que tenha aceitado a competência do Tribunal de modo limitado (competência territorial).


Portanto, em termos de competência material, se a investigação sobre a situação na Ucrânia for autorizada pelo Juízo de Instrução, a Procuradoria poderá iniciar suas investigações relativas ao cometimento de possíveis crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Notícias recentes indicam o cometimento, por exemplo, de ataques a patrimônios culturais da Ucrânia, que se caracterizaria como crime de guerra nos termos do Estatuto de Roma. Como o crime de destruição de patrimônio cultural já foi julgado em outras circunstâncias pelo TPI (caso Al Mahdi), há uma jurisprudência relevante sobre o tema no direito penal internacional.


Há também notícias que relatam ataques a hospitais, que são locais protegidos pelas leis humanitárias, algo que poderia caracterizar um crime de guerra. Ademais, outra possível violação ao direito internacional humanitário seria o uso de bombas de fragmentação (cluster munition).

A competência territorial do TPI


Em relação à competência territorial do TPI, cabe destacar que a Ucrânia nunca ratificou o Estatuto de Roma. Contudo, segundo o artigo 4 (2) do Estatuto de Roma, o TPI poderá exercer sua jurisdição sobre fatos ocorridos em qualquer país, mesmo não sendo um Estado Parte, quando houver uma declaração especial, nos termos do artigo 12 (3) do Estatuto.


Seguindo essa prerrogativa, em abril de 2014, o governo da Ucrânia enviou ao TPI uma declaração ad hoc, indicando que aceitava a jurisdição do Tribunal por um determinado período de tempo. Em 2015, a Ucrânia enviou outra declaração ad hoc, afirmando que aceitaria a jurisdição do TPI por supostos crimes cometidos em seu território a partir de 20 de fevereiro de 2014. É por causa dessa declaração da Ucrânia que o TPI tem potencialmente base legal para exercer sua jurisdição no território do país, inclusive sobre possíveis crimes perpetrados no conflito atual com a Rússia.


Foto: Militar ucraniano caminha perto de escola destruída por bomberdeio em Zhytomyr, Ucrânia / Viacheslav Ratynskyi/Reuters.


Vale ressaltar que, pelo princípio da responsabilidade criminal individual, o TPI pode julgar nacionais de qualquer país, desde que o crime tenha ocorrido dentro de um território que esteja sob a jurisdição do Tribunal. Sendo assim, o TPI pode julgar ucranianos, russos e indivíduos de qualquer outra nacionalidade que estejam envolvidos no conflito e cometam crimes sob a competência do Tribunal, desde que o suposto crime tenha ocorrido em território ucraniano. Dessa forma, apesar de a Rússia não ser Estado Parte do TPI, cidadãos russos podem eventualmente ser investigados e julgados pelo Tribunal.


Além disso, a Rússia está sendo investigada em outro caso aberto pelo TPI. A investigação da situação na Geórgia foi aberta em janeiro de 2016 e abrange denúncias de possíveis crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos por tropas da Rússia, da Geórgia e da Ossétia do Sul que estiveram envolvidas no conflito no território da Geórgia em 2008. Esse é um caso em que os crimes ocorreram no território de um Estado Parte (Geórgia) e inclui nacionais de um Estado não-parte (Rússia). Importante mencionar também que o caso da Geórgia possui algumas semelhanças com o conflito atual com a Ucrânia, demonstrando as intenções expansionistas da Rússia. Uma vez que ainda não foram apontados acusados específicos no caso da Geórgia no TPI, a investigação continua em aberto.


Cabe lembrar que o conflito entre a Rússia e a Ucrânia também está sendo analisado por outro tribunal internacional, a Corte Internacional de Justiça (CIJ). Visto que a CIJ julga litígios entre Estados, ao passo que o TPI julga indivíduos no âmbito penal, os casos não se confundem, embora possam ser complementares. O que é certo é que o caráter de urgência adotado em ambos os tribunais demonstra o impacto que esse conflito representa para a comunidade internacional.



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Acompanhe os desdobramentos da crise ucraniana no Cosmopolita. As novidades e detalhes do caso na Corte Internacional de Justiça você acompanha no Observatório Cosmopolita da Corte Internacional de Justiça.


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