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Um Delicado Xadrez no Cáucaso: Implicações do Acordo de Cessar-Fogo entre Armênia e Azerbaijão

*Por Victor S. Mariottini de Oliveira


Foto: Reuters


Nagorno-Karabakh é uma região montanhosa de maioria étnica armênia localizada no sul do Cáucaso, cujo controle é disputado entre Armênia e Azerbaijão. Apesar de constar habitualmente como território azeri na cartografia convencional, Nagorno-Karabakh é administrada de facto pela autoproclamada República de Artsakh, a qual dispõe de limitado reconhecimento internacional, mas possui fortes laços étnicos, religiosos e políticos com a Armênia, seu maior aliado.


As origens do conflito entre Armênia e Azerbaijão remontam a 1920, ano em que a Rússia voltou sua atenção aos estados independentes da região do Cáucaso e começou a incorporá-los ao que em pouco tempo se tornaria a União Soviética. À época, a região de Nagorno-Karabakh integrava a República Socialista Armênia, o que mudou logo depois, em 1923, quando Stalin ordenou que a região passasse a ser administrada pela República Socialista do Azerbaijão. Tal mudança de soberania sobre Nagorno-Karabakh marcou o início das tensões, visto que aproximadamente 94% dos moradores da região eram cristãos armênios, os quais passaram a ser sistematicamente discriminados dentro de um estado majoritariamente muçulmano e etnicamente túrquico.


Com o domínio soviético, os conflitos na região permaneceram adormecidos por boa parte da Guerra Fria. Porém, com o processo de dissolução da União Soviética, as tensões entre Armênia e Azerbaijão afloraram rapidamente e escalaram até o início da chamada Guerra de Nagorno-Karabakh (1988-1994). No fim de 1991, os habitantes de Nagorno-Karabakh declararam a independência do Azerbaijão com apoio da Armênia, o que não agradou os azeris, que tentaram restabelecer a sua autoridade sobre a área sem sucesso. De 1991 a 1994, somaram-se de mais de 30 mil mortes de ambos os lados, além de reiterados esforços de limpeza étnica mútua nas áreas em disputa. O conflito teve seu fim com um cessar-fogo mediado pelo Grupo de Minsk, criado em 1992 pela Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), o qual deixou a República de Artsakh sem reconhecimento, mas garantiu que uma faixa de terra ao seu redor permanecesse em mãos armênias.


Em que pese a formalização de tratativas de paz, as hostilidades continuaram esporadicamente entre os dois países nas décadas que se seguiram, sendo a ameaça de guerra total por vezes iminente. Desde 2016, as hostilidades fronteiriças entre Armênia e Azerbaijão se intensificaram e ambos os lados passaram a acumular baixas civis e militares da ordem dos milhares. Em setembro de 2020, após uma escalada de tensões, as forças militares do Azerbaijão empreenderam uma ofensiva em direção a Nagorno-Karabakh com o objetivo de dominar as suas maiores cidades e distritos menos montanhosos. O conflito, que já é chamado de Segunda Guerra de Nagorno-Karabakh, ficou marcado pelo uso de drones, mísseis e artilharia pesada de longo alcance, culminando em milhares de mortes ao longo da fronteira.


Após 44 dias de combate, um novo acordo de cessar-fogo intermediado pela Rússia foi firmado entre Azerbaijão e Armênia em 9 de novembro de 2020. A importância do acordo foi amplamente reconhecida pela comunidade internacional, e a iniciativa de mediação da Rússia recebeu elogios da ONU e da União Europeia. Em Baku, a notícia do cessar-fogo foi recebida com alegria e celebrações, ao passo que em Yerevan protestos violentos eclodiram, culminando na invasão do parlamento armênio e na exigência coletiva de renúncia do primeiro-ministro Nikol Pashinyan, responsável pela rubrica armênia no acordo.


Diante de reações tão contrastantes em relação ao cessar-fogo, pergunta-se: quais atores são beneficiados com o acordo firmado em 9 de novembro? É possível se falar em ganhadores e perdedores?

Foto: Saudi 24 News


O Acordo de 9 de Novembro


A eclosão dos combates entre Armênia e Azerbaijão pela região de Nagorno-Karabakh em 27 de setembro de 2020, levantou a possibilidade de um conflito sério e prolongado no Sul do Cáucaso. No entanto, as hostilidades acabaram durando muito menos do que se imaginava. Na noite de 9 de novembro de 2020 foi divulgada a notícia de que a Rússia havia intermediado um acordo de paz entre as partes. Assim, aproximadamente seis semanas após o início da ofensiva, as hostilidades cessaram.


Embora as partes se culpem mutuamente pelo início da guerra em setembro, não há dúvida sobre o fato de que o Azerbaijão decidiu aproveitar a incerteza causada pela ruptura da paz para promover uma campanha de reconquista territorial. Em poucas semanas, os azeris realizaram rápidas incursões e garantiram a retomada da porção sul de Nagorno-Karabakh. No início de novembro, já era claro que a Armênia estava em enorme desvantagem. Ao que tudo indicava, dentro de pouco tempo Nagorno-Karabakh e os seus distritos vizinhos seriam plenamente dominados pelo Azerbaijão. Foi neste momento, na noite de 9 de novembro, que a Rússia inesperadamente anunciou que havia intermediado um acordo entre os líderes da Armênia e do Azerbaijão, e que os combates seriam imediatamente interrompidos.


Com o advento do acordo, o Azerbaijão passou a fazer jus a todo o território (re)conquistado até a data do cessar-fogo, o que simboliza uma rápida conversão consensual de um fato militar em um título jurídico sobre o território. Além disso, a Armênia se comprometeu a ceder o controle de todos os distritos ao redor de Nagorno-Karabakh às forças azeris, sob a condição de que não mais avançassem em direção à Armênia (Pontos 1, 2 e 6). Por outro lado, também foi previsto que a Armênia conservaria uma ligação territorial direta com Nagorno-Karabakh, a fim de preservar o seu elo comercial com a região e possibilitar o retorno de seus antigos habitantes que estavam refugiados na Armênia, sendo que o Azerbaijão se encarregaria de a garantir a segurança das pessoas e mercadorias viajando em ambas as direções de tal ligação (Ponto 6). Com efeito, todos os deslocados pelo conflito passariam a disfrutar de permissão para retornar às suas propriedades em Nagorno-Karabakh e áreas adjacentes, um processo supervisionado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Ambos os lados também concordaram com a troca de prisioneiros de guerra e com a entrega recíproca dos restos mortais dos combatentes de cada país (Pontos 7 e 8).


Em troca da garantia de acesso seguro a Nagorno-Karabakh, a Armênia se comprometeu a constituir uma espécie de servidão internacional em favor do Azerbaijão, autorizando a construção de uma estrada através do seu território que conectaria a parte principal do Azerbaijão ao seu exclave ocidental de Nakhchivan (Ponto 9). Tal concessão representa uma conquista fundamental para os azeris, pois tal estrada acabaria com a dependência de meios aéreos para conectar Nakhchivan ao resto do Azerbaijão. Vale destacar que o exclave azeri faz fronteira com o Irã, importante parceiro comercial, de maneira que passou a ser vislumbrada também uma ligação rodoviária direta entre Baku e o Irã.


É importante ressaltar que a implementação do acordo ficou garantida pela Rússia, país que teve um papel central ao estipular certas cláusulas e mediar as negociações. Quase 2.000 soldados russos estarão posicionados ao longo da linha de cessar-fogo por um período inicial de cinco anos, com prorrogação automática por mais cinco anos (Pontos 3,4 e 5). Além disso, as tropas russas serão encarregadas de elaborar um plano de gestão dos corredores entre a Armênia e Nagorno-Karabakh, e entre o Azerbaijão e Nakhchivan.


Sem dúvida, trata-se de uma grande vitória para o Azerbaijão. A derrota na guerra dos anos noventa é encarada como uma profunda humilhação nacional, e as novas anexações territoriais representaram uma espécie de restauração da honra azeri, pois não apenas foram tomados os territórios ao redor de Nagorno-Karabakh, mas várias de suas cidades estratégicas também foram capturadas. O fato de também ter sido assegurada uma ligação terrestre a Nakhchivan amplia a dimensão da vitória obtida, que foi recebida com júbilo no Azerbaijão.

Autocontenção e calculismo


Mas, por que o Azerbaijão não promoveu a retomada total de Nagorno-Karabakh se tinha uma ampla vantagem militar? Parece haver três razões fundamentais para o esforço diplomático do cessar-fogo interessar também ao Azerbaijão e ter prevalecido. Primeiramente, embora a campanha fosse um grande sucesso até aquele ponto, não havia garantia de que as condições favoráveis seriam mantidas. Com a chegada do inverno, o avanço incremental poderia se tornar excessivamente caro e incerto. Em segundo lugar, os principais objetivos militares já haviam sido alcançados, fazendo com que a chamada República de Artsakh restasse fragilizada e não mais representasse uma verdadeira ameaça separatista. Por fim, ao permitir a sobrevivência de Nagorno-Karabakh como uma entidade, ainda que provisoriamente, o Azerbaijão passaria a contar com um grande poder de barganha para alcançar objetivos colaterais. Com as concessões oferecidas sobre Nagorno-Karabakh, o Azerbaijão conseguiu negociar com a Armênia um corredor terrestre a Nakhchivan. Se houvesse optado por tomar Nagorno-Karabakh totalmente, não haveria moeda de troca a ser usada com os armênios para garantir essa ligação.


Não há dúvida de que os eventos descritos representam uma derrota significativa para a Armênia. Embora o primeiro-ministro Nikol Pashinyan tenha buscado amenizar a situação em suas entrevistas, a realidade é que a Armênia foi deixada sem outra escolha senão negociar a sua rendição. De fato, se a ação militar tivesse continuado com a mesma intensidade, é provável que Nagorno-Karabakh tivesse sido perdida por completo em questão de dias, agravando as já pesadas baixas militares armênias e de Artsakh. Embora o resultado seja ruim para a Armênia, a princípio não é um desastre completo, considerando o panorama geral e o que poderia ter acontecido.


Caso as forças do Azerbaijão houvessem tomado completamente Nagorno-Karabakh, os maiores núcleos populacionais da região, localizados em Stepanakert e arredores, estariam sujeitos ao contato direto com forças azeris por tempo indeterminado, gerando um risco descomunal de que se levasse a cabo uma nova iniciativa de limpeza étnica, considerando o histórico entre os povos. Tal panorama foi evitado com o acordo. Além do mais, resta à liderança política de Nagorno-Karabakh território suficiente para que ainda exista esperança no reconhecimento de Artsakh como uma entidade independente no futuro, à medida que novos fatores de barganha surjam entre Yerevan e Baku.


Paz precária e intenções veladas


É necessário reconhecer que existem outros dois grandes vencedores no cessar-fogo, que não acidentalmente foram beneficiados pelos termos do acordo: Turquia e Rússia. A Turquia e o Azerbaijão são aliados de longa data, e contam com certa identidade étnica e religiosa. A vitória azeri foi um "sucesso sagrado" segundo Erdoğan, que encorajou abertamente a ofensiva militar. Além disso, a criação de um corredor terrestre através da Armênia significa que haverá uma ligação rodoviária direta entre Ancara e Baku. Isso ajudará a fortalecer os laços econômicos, políticos e culturais entre os dois países. Vale pontuar que tanto os turcos quanto os azeris fazem parte da OTAN e tradicionalmente tendem a ficar do mesmo lado nas negociações multilaterais. Não raro, quando a tensão entre a Armênia e o Azerbaijão aumenta, a Turquia fecha as suas fronteiras para os armênios, que historicamente recebem o apoio da Rússia.


A princípio, Moscou parecia hesitar e não demonstrava com clareza como pretendia responder à crise. Dado que havia um acordo de defesa entre a Rússia e a Armênia, muitos esperavam que Moscou viesse em socorro de Yerevan, especialmente devido à clara intercessão da Turquia em favor do Azerbaijão. Havia, inclusive, temores de que as tensões no Cáucaso pudessem desencadear um confronto sério entre a Rússia e a Turquia. No entanto, a Rússia fez questão de não se desentender com o Azerbaijão, pois isso ameaçaria a sua posição dominante na região. Moscou optou por desempenhar o papel de "pacificador", com o fito de maximizar as suas próprias vantagens.


A questão temporal teve um papel fundamental na opção por mediar as negociações, e o que parecia ser indecisão em um primeiro momento, revelou-se, na verdade, uma estratégia inteligente por parte da Rússia. O acordo veio no momento perfeito para Moscou, pois se fosse realizado mais cedo teria danificado os laços com Baku, já que o Azerbaijão estava claramente ganhando a guerra. Entretanto, se Nagorno-Karabakh fosse completamente tomada, os armênios poderiam culpar Moscou pela violação do tratado de defesa que possuem vigente, já que não houve auxílio bélico relevante prestado à Armênia.

Dado o atual estado de coisas, embora os armênios acreditem que Moscou poderia ter feito mais para ajudá-los antes, Yerevan continuará a contar com Moscou para manter a influência que ainda possui sobre Nagorno-Karabakh, nos termos garantidos pelo acordo. Além disso, a presença das forças de paz russas em torno de Nagorno-Karabakh demonstra que há um forte interesse da Rússia na região, e sinaliza à Turquia e ao Irã que inexiste qualquer vácuo de influência que possa ser preenchido por eles no momento. O Cáucaso é uma região cujo controle é tradicionalmente cobiçado pelas potências da região, não apenas pela sua vultosa produção de petróleo e gás natural, mas também porque é por ali que passam numerosos oleodutos e gasodutos vindos da Ásia Central, que garantem a segurança energética da Turquia e grande parte da Europa. Assim, fica evidente a delicadeza geopolítica da região, que apresenta relevante interesse econômico permeado por tensões de natureza territorial, religiosa e étnica.


Foto: AFP/Getty


Observações finais


A latência de uma nova guerra entre a Armênia e o Azerbaijão por Nagorno-Karabakh há muito era reconhecida, e é sintomática da intransigência das partes em se corrigir os termos da dissolução territorial soviética que ainda ecoam no presente, sabidamente turbulenta e desastrada. Em que pese a vitória azeri na recente guerra, o conflito em si não acabou, e se arrasta em parte pelo patrocínio de interesses estrangeiros. A intervenção diplomática cuidadosamente planejada pela Rússia conduziu a um limbo especialmente calculado para incrementar sua ascendência política no Cáucaso. Resta saber se a Armênia e o Azerbaijão poderão em algum momento chegar a um acordo que dê um desfecho digno para Nagorno-Karabakh, ou se persistirá um esforço conjunto de Rússia e Turquia para que a disputa continue “no gelo” indefinidamente. A delicadeza do acordo de paz, o seu sinalagma duvidoso e a ausência de boa-fé entre as partes já mostram seus efeitos: em maio de 2021, a Armênia acusou as forças do Azerbaijão de terem violado o cessar-fogo ao ocuparem as margens do lago Sev na Armênia, onde supostamente 600 soldados azeris foram avistados e capturaram 6 soldados armênios.


Por fim, outra questão que recentemente veio a ampliar a complexidade do conflito diz respeito ao envolvimento de novos atores internacionais. O Senado francês editou uma Resolução que recomenda o reconhecimento de Nagorno-Karabakh como estado independente. Tal sugestão, realizada por uma das lideranças do Grupo de Minsk, acarretou uma série de críticas, especialmente por parte do Governo do Azerbaijão, que considerou a postura “inaceitável por atentar contra a soberania de um estado estrangeiro”. Por outro lado, o Canadá recentemente cancelou licenças militares à Turquia devido ao suposto uso de suas armas em Nagorno-Karabakh. De fato, a internacionalização do conflito parece cada vez mais inevitável, e as perspectivas de paz duradoura cada vez mais distantes.



*Victor S. Mariottini de Oliveira é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo e mestrando (LL.M.) em Direito Internacional pelo Graduate Institute of International and Development Studies de Genebra, Suíça. Frequentou o Curso de Inverno da Academia de Direito Internacional da Haia em 2020, recebendo o prêmio de Best Negotiator no Moot ‘Hours of Crisis’.



Referências:


CIERCO, Teresa; FREIRE, Maria Raquel. Regional security and the Nagorno-Karabakh conflict. IDN - Revista Nação e Defesa. 3ª Série Nº 110 (Primavera 2005).


CROISSANT, Michael. The Armenia-Azerbaijan Conflict: Causes and Implications. Praeger: Londres, 1998.


MAKIO, Danielle Amaral; NOGUEIRA, Larissa de Castro. Conflito e identidade no espaço pós-soviético: o caso de Nagorno-Karabakh in Anais da X Semana Acadêmica de Relações Internacionais - SARI (10: Uberlândia, 2018)


BBC. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-europe-54882564; Armenia, Azerbaijan and Russia sign Nagorno-Karabakh peace deal.


Aljazeera. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2020/11/9/armenia-pm-says-signed-painful-deal-to-end-na gorno-karabakh-war; Armenia, Azerbaijan, Russia sign deal to end Nagorno-Karabakh war.


The New York Times. Disponível em https://www.nytimes.com/2020/11/09/world/middleeast/armenia-settlement-nagorno-karabakh-azerbaijan.html. Facing Military Debacle, Armenia Accepts a Deal in Nagorno-Karabakh War.


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