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A Virada Historiográfica no Direito Internacional: Quem são os Detentores e Sujeitos da História?

* Por Hannah De Gregorio Leão


Foto: Antoine Taveneaux / Biblioteca Antiga da Universidade de Salamanca.



Desde a publicação do livro “The Gentle Civilizer of Nations” (em português, “O Gentil Civilizador das Nações”), em 2001, pelo professor da Universidade de Helsinki Martti Koskenniemi, o direito internacional público vem passando pelo que se denomina o turn to history in international law, ou seja, uma virada historiográfica no direito internacional. Na obra, ao analisar as raízes do direito internacional contemporâneo, Koskenniemi remonta ao século XIX para compreender como houve a ascensão e queda do direito internacional clássico até a formação do que consideramos, hoje, como direito internacional contemporâneo.


A análise histórica de Koskenniemi promoveu um divisor de águas na forma como se compreende o passado do direito internacional na atualidade, não mais sendo uma simples narrativa biográfica dos considerados “pais fundadores” da disciplina ou do desenvolvimento jurídico-cronológico do jus gentium no passado, mas como uma disciplina que foi e é desenvolvida por atores politicamente, geograficamente e temporalmente localizados. Dessa forma, Koskenniemi promove uma análise crítica da história do direito internacional por meio da interpretação da sociologia do sistema internacional como forma de compreender a atuação desses diferentes atores no decorrer do tempo, construindo um novo método de análise.


Entretanto, esse divisor de águas de Koskenniemi também ocasionou o surgimento de um rico debate no direito internacional sobre o que é e como deve ser analisada a história do direito internacional, ultrapassando os paradigmas metodológicos e teóricos da própria virada historiográfica do direito internacional para a consolidação de novas correntes teóricas com diferentes visões e análises sobre o passado da disciplina.

Raízes das novas perspectivas sobre a história do direito internacional


O professor Matthew Craven afirma que foi em 1795 que o político inglês Robert Plummer Ward publicou o seu livro “An Enquiry into the Foundation and History of the Law of Nations” (em português, “Uma Investigação sobre os Fundamentos e a História do Direito das Nações”), considerada pelo próprio autor como a primeira obra apresentando uma narrativa da história do jus gentium. Apesar de Craven afirmar que existiram importantes teóricos anteriores que também publicaram sobre a história do jus gentium, o marco de Plummer inaugurou uma nova perspectiva no final do século XVIII: de que os advogados internacionalistas da época eram detentores de uma história e possuíam uma cronologia temporal à qual eles se integravam.


Consequentemente, no decorrer do século XIX, novas perspectivas históricas foram surgindo, em especial perspectivas críticas-metodológicas (preocupadas em analisar a veracidade de fontes históricas, documentos e de localizar historicamente e localmente textos históricos), e, por outro lado, perspectivas lineares e progressivas da história. Craven afirma que esse desenvolvimento proporcionou novas formas de se compreender o direito internacional, principalmente enquanto uma disciplina com novas tradições a serem (re)descobertas e novas categorias temporais a serem analisadas. Segundo Craven, de acordo com Ward, “se as ideias de direito e Justiça são temporariamente condicionadas, elas também serão especialmente determinadas” (tradução do original em inglês).


A partir dessa compreensão, podemos perceber, por exemplo, que os considerados principais “pais fundadores” do direito internacional não eram apenas juristas que desenvolveram perspectivas globais e interestados do direito, mas sobretudo sujeitos que defendiam suas próprias agendas e correntes sociopolíticas de suas épocas, sendo especificamente localizados no tempo e no espaço.


Foto: Universidad Francisco de Vitoria UFV Madrid


Importante notar como essa perspectiva histórica modifica a própria análise teórica do direito internacional, que precisa compreender as complexidades, realidades e perspectivas dos seus diferentes passados, enquanto disciplina historicamente construída por diversos atores com diferentes visões e interesses no sistema internacional. Tal construção narrativa teórica do direito internacional é principalmente possível a partir de encontros interdisciplinares com o direito internacional, assim como destacam os professores Anne Orford e Florian Hoffmann, o que pode ser feito por meio de seu diálogo não apenas com a história, mas ainda com a política, relações internacionais, sociologia, filosofia, dentre outras áreas do conhecimento.


A virada historiográfica como método e o diálogo com outras correntes teóricas


Assim como já afirmado, a publicação do livro “The Gentle Civilizer of Nations” foi um marco que proporcionou a denominada virada historiográfica do direito internacional, a qual persiste e, principalmente, se reinventa até os dias de hoje. Entretanto, tal virada historiográfica não se trata apenas de um retorno ao passado diferenciado, mas ainda de um método próprio de análise que pressupõe a adoção de perspectivas metodológicas que diferenciam essa virada de outras correntes de análise histórica que existem dentro do direito internacional.


Dessa forma, os diferentes encontros interdisciplinares que podem ser feitos com o direito internacional proporcionam um rico campo de diálogos entre diferentes visões sobre a história do direito internacional, o que mostra como a localização determinada no tempo e no espaço demonstram não apenas as intenções dos atores e acontecimentos históricos importantes para a disciplina, mas ainda muda as próprias perspectivas teóricas e metodológicas a serem adotadas para a análise da história nos dias de hoje.

Martti Koskenniemi se utiliza da sociologia como principal ferramenta de análise contextualizada e crítica do passado e determina que o método histórico deve ser adotado para que se possa realizar uma análise da história do direito internacional que não seja anacrônica. Anne Orford, por outro lado, se contrapõe a essa concepção e afirma a importância de não se definir métodos específicos e únicos para o estudo da história do direito internacional para que o potencial crítico da interpretação da história não seja limitado por barreiras metodológicas que podem se tornar desafios para os pesquisadores. Portanto, existem outras análises históricas, dentro do direito internacional, que adotam outras perspectivas de análise, além da sociologia e do método histórico.


Dessa forma, a virada historiográfica, por se tratar de um método específico, não é a única forma de se pensar a história do direito internacional, assim como já afirmado por Anne Orford e Ignacio de la Rasilla. Entretanto, a virada historiográfica proporcionou, por meio das inúmeras discussões sobre os limites da análise histórica do direito internacional, a consolidação e interação de correntes teóricas que pensam a história da disciplina a partir de outros e novos referenciais no direito internacional, o que vem possibilitando um amplo campo de análise crítica com diferentes pontos de partida teóricos.


As outras perspectivas além da virada historiográfica, mas que também estão analisando a história do direito internacional, compreendem, por exemplo, perspectivas que questionam os “pais fundadores” do direito internacional e analisam os interesses de suas respectivas épocas, inclusive imperialistas, que fundaram suas teorias, como no caso de Hugo Grotius e Francisco de Vitória (análise que inclusive também já foi feita por meio da perspectiva metodológica da virada histórica).


Importante ressaltar que existem inúmeras perspectivas de teorias críticas que pensam o direito internacional e, especificamente, a história do direito internacional, como as Third World Approaches to International Law (TWAIL) (em português, Perspectivas de Terceiro Mundo do Direito Internacional). Essa corrente teórica compreende perspectivas teóricas críticas pós-coloniais e decoloniais que pensam o direito internacional a partir de sua relação histórica com o colonialismo e o imperialismo e a partir de visões do Sul Global, representada, por exemplo, pelo professor Anthony Anghie e pelo juiz da Corte Internacional de Justiça Christopher Weeramantry.


Conclusão


A partir da análise das diferentes correntes teóricas que pensam a história do direito internacional, podemos questionar: quem são os sujeitos e detentores da história, ou seja, quem foram os “pais fundadores” e juristas internacionalistas históricos do jus gentium, quando pensados em seus específicos contextos temporais e geográficos, e qual seria o método de análise dessa história?


As diferentes correntes que estão analisando a história do direito internacional não são mais necessariamente integradas à virada historiográfica, assim como afirma Ignacio de la Rasilla, demonstrando como a (re)interpretação da história por diferentes correntes teóricas proporciona um rico e amplo debate acadêmico que, antes de tudo, agora percebe a história como um campo essencial de estudos para o desenvolvimento, compreensão e aplicação do direito internacional nos dias de hoje, não sendo mais uma área de estudos considerada subsidiária.


A história, por si, é o ponto de partida central da compreensão do direito internacional como ele foi e é nos dias de hoje, o que muda completamente a visão que temos do direito internacional e de sua relação com determinados sujeitos ao longo do tempo e do espaço.



*Hannah De Gregorio Leão é graduanda em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Membro do Comitê Executivo da Public International Law Litigation Society (PILLS) e bolsista do Programa de Educação Tutorial em Direito (PET-JUR), ambos da PUC-Rio. Pesquisadora do Observatório Cosmopolita do Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos Povos.


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