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Caso Empregados da Fábrica de Fogos Santo Antônio de Jesus vs. Brasil

*Por Angélica Pavelski Cordeiro Schaitza e Carolina Borges Soares.


Na data de 15 de julho de 2020, a Corte Interamericana (doravante Corte IDH ou Corte) proferiu sentença contra o Brasil no Caso Fábrica de Fogos Santo Antônio de Jesus, sendo esta a mais recente condenação do Brasil na jurisdição contenciosa do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. O caso se relaciona à explosão de uma fábrica de fogos de artifício em Santo Antônio de Jesus, região do recôncavo baiano, ocorrida em 11 de dezembro de 1998[i], em que 60 pessoas morreram e seis sobreviveram, entre elas 20 crianças e 4 mulheres gestantes[ii].


Foto: Almiro Lopes/Arquivo CORREIO


A maior parte das vítimas era do sexo feminino (mulheres, crianças e idosas), de baixa escolaridade, afrodescendentes, que viviam em situação de extrema pobreza, sendo o trabalho marcado por “uma intensa precarização, subordinação e exclusão do trabalho formal, dos direitos trabalhistas e da cidadania”(par. 65). Como ressaltou a Corte, eram “mulheres marginalizadas na sociedade, sem outras opções de trabalho”(par. 65), que tinham que se submeter ao trabalho em fábrica de fogos clandestinas, mediante baixíssima remuneração e sem que lhes fosse oferecida qualquer capacitação e equipamentos de proteção individuais e coletivos (EPIs e EPCs). Além disso, por falta de estrutura básica de educação formal no Município (ausência de creches e escolas) e a necessidade de complementação de renda (em virtude da pobreza extrema), seus filhos e filhas acabavam compelidos a trabalhar em referidas fábricas, iniciando muitas vezes com 6 anos de idade.


O Brasil foi condenado, dentre outras coisas, pela sua falha em regulamentar, supervisionar e fiscalizar a prática de atividades perigosas, sendo também ressaltada a pobreza como um fator de vulnerabilidade que aprofundou o impacto da vitimização, considerando a interssecionalidade de referida discriminação estrutural (raça, gênero, idade e baixa escolaridade)[v]. Em decorrência disto, a Corte entendeu que o Brasil violou: os direitos à vida e à integridade física; o direito das crianças; o direito ao trabalho em condições equitativas e satisfatórias que garantam a segurança, saúde e higiene; a proibição do trabalho infantil em condições perigosas e insalubres; a proibição de discriminação; bem como o direito de acesso às garantias judiciais das vítimas e seus familiares.


O caso em comento é paradigmático, pois reforça a tendência da Corte de possibilitar a justiciabilidade direta dos DESCA (direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais), por intermédio do artigo 26, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Neste sentido, o caso é de grande valia para o estabelecimento de standards a respeito do que se considera condições equitativas e satisfatórias de trabalho, levando-se em conta o impacto desproporcional que a precarização implica aos grupos hipervulneráveis, como mulheres, pobres, afrodescendentes, de baixa escolaridade e seus filhos e filhas. Ademais, o caso avança na questão da responsabilidade estatal acerca de violações de direitos humanos cometidas por empresas privadas, tendo citado precedente do Sistema Europeu (Caso Öneryildiz Vs. Turquia), bem como precedentes da própria Corte (Caso Ximenes Lopes Vs. Brasil; Caso Suárez Peralta Vs. Equador e Caso Gonzales Lluy e outros Vs. Equador), além de mencionar o regramento atual mais relevante sobre o tema (Princípios de Ruggie ou Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos).


A IMPORTÂNCIA DO CASO EM FACE DO ATUAL CONTEXTO TRABALHISTA BRASILEIRO

No âmbito interno, a condenação em análise adquire ainda mais importância se considerarmos o contexto brasileiro recente, que, com a chamada “Reforma Trabalhista” (Lei n°13.467/2017), precarizou sobremaneira as relações trabalhistas.


Em 2016, o Presidente Michel Temer enviou ao Congresso o PL 6.787, o qual pretendia alterar 7 artigos da CLT. Entretanto, o relator do Projeto, Deputado Rogério Marinho (PSDB), o ampliou, passando de 7 para 103 alterações legislativas, sem nenhuma consulta ou discussão com a sociedade civil, órgãos de classe, etc. A ampliação alterava ou modificava 97 (noventa e sete) artigos da CLT, 3 artigos da Lei 6.019/74, 1 artigo da Lei 8.036/90, 1 artigo da Lei 8.12/91 e 1 artigo da MP 2.226/01.


O discurso entoado pelo Governo e reproduzido pela grande mídia era no sentido de que a chamada Reforma Trabalhista constituía uma modernização do Direito do Trabalho, já que a CLT data de 1940 – ignorando todas as atualizações legislativas e jurisprudenciais feitas desde então. Além disso, a promessa era que a Reforma geraria empregos, desoneraria o empregador e seria uma das saídas da crise econômica. Hoje, após 3 anos da substancial alteração, sabe-se que nada disso ocorreu, havendo, pelo contrário, uma maior precarização das relações trabalhistas, que se tornaram mais evidentes no atual momento de pandemia.


Foto: José Simões/Correio da Bahia


A Reforma Trabalhista afetou uma série de direitos dos trabalhadores, não sendo possível apontar praticamente nenhum avanço no âmbito dos direitos sociais. Autoras como Maria Vitória Queija Alvar entendem que a reforma se constitui em verdadeira afronta ao princípio da vedação de retrocesso social, na medida em que em nada “moderniza” a relação de trabalho, mas a torna mais precarizada, diminuindo os direitos dos trabalhadores e o seu acesso à Justiça, bem como o alcance de sindicatos, órgãos de classe e da própria Justiça do Trabalho na proteção dos trabalhadores. O Direito Coletivo e o Direito Sindical dos trabalhadores brasileiros foram especialmente atacados pela Reforma e, com isso, dificultou-se ainda mais qualquer avanço neste âmbito.


O Acesso à Justiça foi dificultado através da imposição de pagamento de custas e honorários advocatícios, sob o pretexto de evitar a litigância abusiva. Entretanto, como o direito à gratuidade da justiça foi relativizado, há, sem dúvidas, uma tentativa de afastar o cidadão do acesso à Justiça do Trabalho, que é vista pelo empresariado como demasiadamente protetiva do trabalhador. Neste ponto, importante lembrar, como supracitado, que, no caso da Fábrica de Fogos, o Estado brasileiro foi responsabilizado pelo descumprimento em relação ao acesso às garantias judiciais das vítimas trabalhadoras e seus familiares, tendo sido analisada especificamente a situação dos processos trabalhistas, em que se verificou uma demora excessiva em estabelecer os vínculos trabalhistas, definir os montantes devidos e efetuar os pagamentos das respectivas indenizações (par. 221).


Na mesma linha, a Reforma Trabalhista também reduziu a atividade interpretativa dos Juízes do Trabalho. É importante salientar que Juízes, Desembargadores e Ministros da Justiça do Trabalho, através da interpretação pro empregado da legislação e da Constituição, garantiam a ampliação das garantias legais dos trabalhadores. O Tribunal Superior do Trabalho editava Súmulas e Orientações Jurisprudenciais, as quais eram norte interpretativo e, muitas vezes, ampliavam os direitos garantidos na legislação.


O meio ambiente do trabalho, como ressaltado na Sentença da Fábrica de Fogos, é, sem dúvidas, um direito fundamental do trabalhador brasileiro. Além dos parâmetros internacionais, como o art. 23, da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), o 45.b, da Carta da OEA, o art. 7°, do Protocolo de San Salvador, o art. 7°, b, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), bem como as Convenções n° 81 e 155, da OIT; uma leitura sistemática da legislação pátria, especialmente dos artigos 6°, 7°, 196 e 225 da Constituição Federal, mostra que se deve garantir ao trabalhador um meio ambiente de trabalho sadio, seguro e equilibrado.


Entretanto, apesar da proteção constitucional e dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, o projeto da Reforma Trabalhista previa a permissão para que mulheres grávidas e lactantes pudessem trabalhar em ambientes insalubres, independente do grau de insalubridade, o que era proibido até então. Tal previsão era um imensurável retrocesso e prejuízo não só às trabalhadores, mas às futuras gerações, já que os fetos e recém-nascidos poderiam ser impactados pelos agentes insalubres. Após grande pressão popular, referida previsão foi parcialmente revista. Assim, no texto aprovado e sancionado pelo então Presidente Michel Temer constava apenas a proibição para o trabalho em local com insalubridade em grau máximo, sendo permitido o labor em ambientes insalubres de grau médio ou mínimo.

Contudo, a Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos ajuizou a ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 5938, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 29/05/2019 e através da qual foi declarada a inconstitucionalidade do disposto no artigo 394-A da CLT. Entendeu o STF que o artigo em comento estava em dissonância com o texto constitucional, em especial o artigo 227, na medida em que descumpria os deveres de proteção à maternidade e à segurança da trabalhadora, do recém-nascido ou feto, bem como normas de segurança, saúde e higiene do trabalho. Referida decisão se deu em convergência com o dispostos no artigo 11.1 da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), da qual o Brasil é signatário, que prevê às mulheres “o direito à proteção da saúde e à segurança nas condições de trabalho, inclusive a salvaguarda da função de reprodução”.


A Reforma possibilitou, ademais, a redução do intervalo intrajornada para trinta minutos e aumentou as possibilidades de terceirização das atividades do empregador (antes só permitida para atividades-meio e não na atividade final). Ainda, permitiu que a jornada de 12 horas de trabalho por 36 horas de descanso seja acordada por acordo individual – o que, até então, só poderia ser feito por meio de acordo ou convenção coletiva, com a participação do sindicato representante dos empregados.


Estas são apenas algumas das mudanças realizadas e que, comprovadamente, têm impacto no aumento de doenças ocupacionais e acidentes de trabalho, como o que ocorreu na Fábrica de Fogos, já que a terceirização, falta de descanso, jornadas de trabalho exaustivas, falta de treinamento adequado e de equipamentos de proteção individual e coletivo são alguns dos principais causadores de acidentes e doenças relacionados ao trabalho.


Infelizmente o que se observa é que a política de desmonte do Direito do Trabalho, bem como a tentativa de desconstitucionalizar os direitos relativos ao labor seguem na agenda política do governo brasileiro.


O Presidente Jair Bolsonaro, em mais de uma ocasião, já demonstrou ser a favor do trabalho infantil, o que é proibido no Brasil. Em 2019, disse “Quando um moleque de nove, dez anos vai trabalhar em algum lugar tá cheio de gente aí ‘trabalho escravo, não sei o quê, trabalho infantil’”. Em agosto de 2020, disse: “Bons tempos, né? Onde o menor podia trabalhar”. Apesar disso, o Presidente já enfatizou que não pretende apresentar projetos de lei que autorizem o trabalho infantil, pois seria, segundo ele, “massacrado”. Sobre a questão, no plano internacional, o Brasil aderiu à Convenção n° 182 da OIT, sobre a “Proibição das piores formas de trabalho infantil e ação imediata para sua eliminação”, bem como à Convenção sobre os Direitos da Criança, que em seu art. 32, expressamente traz o direito da criança de ser protegida “contra a exploração econômica e contra a realização de qualquer trabalho que possa ser perigoso ou interferir em sua educação, ou que seja prejudicial para sua saúde ou para seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral ou social”. Na mesma linha, na legislação doméstica, tem-se o art. 7°, da Constituição Federal e os arts. 60 e 67 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que vedam o trabalho a menores de 14 anos, sendo proibido o trabalho penoso, noturno e insalubre a adolescentes.


No que se refere à estrutura de fiscalização das condições de trabalho e cumprimento das normativas vigentes, o Ministério Público do Trabalho denunciou o sucateamento dos órgãos de fiscalização nos últimos anos, o que fez com que as fiscalizações diminuíssem de forma relevante. No Pará, por exemplo, os flagrantes de casos de trabalho análogo à escravidão caíram 55% no primeiro semestre de 2020. E isso não se deve ao fato da diminuição da prática do crime, mas tão somente à falta de estrutura dos órgãos fiscalizatórios.

Auditores-Fiscais do Trabalho apontaram em 2018, mediante uma Carta-Denúncia, a existência de uma política deliberada para desmantelar a rede de fiscalização, que desde 2017 se agrava. Eles afirmam que os números de flagrantes caíram de maneira vertiginosa desde 2015, o que não significa diminuição de casos, mas sim de fiscalização, denunciando que essa diminuição leva a uma falsa sensação de que o trabalho análogo à escravidão retrocedeu. Aqui, novamente, ressalta-se a responsabilidade estatal no tocante à supervisão e regulamentação das atividades laborativas, visto que a falha em tal mister pode gerar a responsabilização internacional, como ocorreu no caso da Fábrica de Fogos. Neste ponto, ademais, convém lembrar também o Caso Fazenda Brasil Verde vs. Brasil, em que o Brasil foi responsabilizado pela Corte IDH pela ocorrência de trabalho escravo em uma fazenda no Pará, tendo sido considerado que a proibição do trabalho escravo é uma norma jus cogens (norma imperativa do Direito Internacional) e uma obrigação erga omnes (todos os países possuem obrigação em cumprí-la).


PARA CONCLUIRMOS


A pandemia, a desigualdade social, a crise econômica tendem a aprofundar a precarização, que fatalmente terá reflexos mais severos na população hipervulnerável, como mulheres, crianças e idosos. Pessoas em situações de vulnerabilidade extrema não têm opção, assim como não tinham na cidade que abrigava a Fábrica de Fogos em Santo Antônio de Jesus.


Todo este quadro mostra que o Brasil vem, em verdade, cada vez mais restringindo os Direitos Humanos dos trabalhadores, em claro desrespeito à própria legislação interna e também às normas internacionais aderidas pelo Estado brasileiro, de modo que a condenação no caso da Fábrica de Fogos revela um triste retrato da situação pátria, que está longe de ser um fato isolado ocorrido em 1998.


*Angélica Pavelski Cordeiro Schaitza e Carolina Borges Soares são membros do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da UFPR e do Observatório Cosmopolita da Corte Interamericana de Direitos Humanos.


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REFERÊNCIAS

ALVAR, Maria Vitoria Queija. Reforma Trabalhista. A Reforma Trabalhista e o Princípio da Vedação do Retrocesso Social. In: TREMEL, Rosângela; CALCINI, Ricardo (Org.). Reforma Trabalhista. Campina Grande: EDUEPB, 2018.



[i] Detalhe interessante é que o Brasil fez a aceitação da jurisdição contenciosa da Corte IDH na data de 10 de dezembro de 1998, para fatos ocorridos após esta data. O presente caso ocorreu em 11 de dezembro de 1998, ou seja, no primeiro dia da vigência da competência contenciosa da Corte em relação ao Brasil.

[ii] A Comissão Interamericana em seu Escrito de submissão do caso e no Relatório de Admissibilidade e Mérito informou que o número de vítimas seria de 64 falecidas e 6 sobreviventes, totalizando 70. Contudo, a Corte, após revisar os documentos juntados, concluiu que o número total de vítimas falecidas seria de 60 e 6 sobreviventes, sendo este o número considerado no presente artigo. Corte IDH. Caso de los Empleados de la Fábrica de Fuegos de Santo Antônio de Jesus Vs. Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 15 de julio de 2020. Serie C No. 407. § 41.


[iii] Nas palavras da Corte: “[...] a situação de pobreza das supostas vítimas, associada aos fatores intersecionais de discriminação (...), que agravavam sua condição de vulnerabilidade, (i) facilitou a instalação e o funcionamento de uma fábrica dedicada a uma atividade especialmente perigosa, sem fiscalização, seja dessa atividade perigosa, seja das condições de higiene e segurança no trabalho por parte do Estado; e (ii) levou as supostas vítimas a aceitar um trabalho que colocava em risco sua vida e sua integridade, bem como a de suas filhas e filhos menores de idade. Ademais, (iii) o Estado não adotou medidas destinadas a garantir a igualdade material no direito ao trabalho a respeito de um grupo de mulheres em situação de marginalização e discriminação” Corte IDH. Caso de los Empleados de la Fábrica de Fuegos de Santo Antônio de Jesus Vs. Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 15 de julio de 2020. Serie C No. 407. §203


*As opiniões expressas neste texto não refletem necessariamente as opiniões de instituições ou organizações às quais as autoras estão vinculadas.


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