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Comunidades de Paz e os conflitos armados na Colômbia: utopia em meio à violência?

Por Amandha Jobim Machado Martins e Leticia Heinzmann*


Foto: Nikki Drake / Comunidade da Paz de San José de Apastadó celebrando o aniversário de 18 anos em 2015.


Há mais de um mês protestantes tomam as ruas da Colômbia contra a aprovação da reforma tributária e de saúde do país. Os protestos têm sido marcados pela violência policial, que, segundo os números apresentados pelo governo, já causou cerca de 17 mortes civis (apesar de organizações da sociedade civil - como a Human Rights Watch - argumentarem que o número é ainda maior, chegando a cerca de 63 mortes). No momento, as reivindicações dos protestantes também incluem o pedido por uma renda básica universal, oportunidades para os jovens e o fim da violência policial. Apesar de existir um pré-acordo em andamento desde o final de maio, as negociações entre governo e manifestantes vêm progredindo lentamente . No dia 28/05, quando foi organizado um protesto para marcar um mês do início das manifestações, quatro civis foram mortos. No dia seguinte, o governo decretou toque de recolher na cidade de Cali e na província de Valle del Cauca, além de ter mobilizado mais de 7.000 soldados para acabar com os bloqueios nas estradas.


Mesmo que o excesso de uso da força policial tenha ganhado destaque nos protestos recentes, a violência no país tem impactado comunidades campesinas e em áreas remotas há décadas. Nessas áreas, os conflitos armados que assolam a Colômbia se estendem há cerca de 40 anos, levando as famílias da região a deixarem as suas casas após sofrerem ameaças, massacres, assassinatos seletivos e conflitos diretos entre grupos armados e forças públicas. Em resposta à violência, diversas comunidades campesinas passaram a se organizar de forma autônoma em Comunidades de Paz. Essas Comunidades, que são exemplos de resistência civil pacífica frente ao conflito armado, se declaram neutras em relação aos conflitos armados presentes em suas regiões, e clamam pelo seus direitos de autodeterminação, reivindicando o reconhecimento dos seus membros enquanto sujeitos sociais e políticos, portadores de direitos fundamentais que devem ser respeitados por ambas as partes do conflito. Segundo o censo da Red de Iniciativas por la Paz (Redepaz), ONG especializada nesse tipo de iniciativa, atualmente existem cerca de 52 Comunidades de Paz desse tipo no país.



A Comunidade de Paz de San José do Apartadó


Uma das Comunidades de Paz mais conhecidas é a Comunidade de San José do Apartadó que, embora exista desde meados dos anos sessenta, autodeclarou-se Comunidade de Paz em 23 de Março de 1997. A ideia surgiu da união de famílias campesinas, advindas de várias localidades, que deram início à construção de um espaço autônomo, declarando-se uma zona neutra, em que nenhuma das partes partes armadas do conflito colombiano pode estar presente (incluindo o próprio exército do país).


Sua existência é uma resposta aos múltiplos ataques e agressões sofridos nas mãos das partes envolvidas no conflito armado na região, e que resultaram em um projeto agrário e político de resistência, organizado por meio de princípios e por um regramento interno conhecido como Declaratória. A Declaratória possui sete artigos que definem a Comunidade, entre os quais: a negativa a qualquer tipo de auxílio, direto ou indireto, das facções do conflito; e a proibição do uso ou posse de armas e munições. Além disso, os princípios que regem a Comunidade são: a liberdade, o diálogo, o respeito à pluralidade, a resistência, a justiça e a solidariedade.


Além da proteção contra grupos armados, bem como a promoção do princípio de não intervenção, a Comunidade de San José de Apartadó busca criar um projeto autônomo de economia, alimentação e educação. Entretanto, grupos paramilitares estabeleceram uma espécie de bloqueio econômico, saqueando produtos ou banindo sua venda. Apesar disso, a Comunidade tem estabelecido contato com organizações internacionais e governamentais, que ofereceram apoio para o restabelecimento da produção e a garantia de subsistência das famílias e hoje é uma das melhores regiões do mundo para o plantio de cacau.


Foto: PBI Colombia / Comunidade da Paz de San José de Apastadó.


A partir dos anos 2000, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) apresentou medidas provisórias ao governo da Colômbia, requerendo a implementação de medidas voltadas à proteção da vida e da integridade das famílias integrantes das Comunidades de Paz, devido aos constantes ataques e ameaças feitas pelos grupos armados que atuam na área. A situação, piorou no ano de 2005, quando ocorreu o Massacre de San José de Apartadó, em que seis membros do Exército Nacional da Colômbia foram responsabilizados pelo assassinato de 8 civis. Desde então, a Corte IDH vem monitorando os avanços do Estado colombiano para a promoção e implementação das medidas de proteção às Comunidades.

O Direito Internacional Humanitário e as Comunidades de Paz


Embora não sejam previstas explicitamente pelo Direito Internacional Humanitário (ramo do direito que regula os conflitos armados), as Comunidades de Paz são iniciativas legítimas da sociedade civil. O Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos na Colômbia indicou, em um comunicado de dezembro de 2003, que deveriam ser aplicados instrumentos de DIH à situação da Colômbia, entre eles o art. 3º da Convenção de Genebra (1949), o Protocolo Adicional II e o direito consuetudinário. Essas comunidades, constituídas pela população civil e protegidas contra o ataque direto das partes, seriam consideradas “zonas humanitárias”, assemelhando-se às zonas neutras.


Cabe recordar que tradicionalmente a noção de zonas neutras é reconhecida pelo Direito Internacional Humanitário apenas em situações de conflitos armados internacionais, quais sejam, aqueles entre Estados . Nesse sentido, não se aplica a legislação internacional relativa a partes neutras às Comunidades de Paz, uma vez que os conflitos armados na Colômbia possuem caráter não-internacional. Dessa forma, apesar de seus indivíduos gozarem da proteção do DIH enquanto civis, as Comunidades de Paz colombianas não possuem direitos ou proteção específicos do ponto de vista da neutralidade no Direito Internacional Humanitário. Apesar da declaração de neutralidade dessas Comunidades ser, tecnicamente, bastante frágil sob o ponto de vista das leis que regulamentam os conflitos armados, as Comunidades de Paz têm recebido amplo apoio da sociedade civil e de organizações internacionais, que oferecem ferramentas necessárias para gerar oportunidades e fortalecer capacidades para a proteção dos seus indivíduos e defesa de direitos.


As Comunidades de Paz são uma alternativa quase utópica de demonstração de autonomia, busca da paz e auto-organização humanitária pacífica frente aos desafios impostos pelos conflitos na região. É importante ressaltar que elas enfrentam muitas dificuldades de permanência e não oferecem blindagem total à violência perpetrada pelos grupos armados.

Mesmo assim, são importantes alternativas na busca por maior segurança e dignidade para os seus moradores, ante as décadas de violência e ameaças sofridas. Além disso, como referido, as Comunidades de Paz são responsáveis por trazer luz aos problemas do território e chamar a atenção de organizações internacionais na busca por medidas de proteção dessas Comunidades. Mesmo que frágeis, elas se apresentam como uma possibilidade para dar voz a uma população frequentemente esquecida.




*Amandha Jobim Machado Martins e Leticia Heinzmann são estudantes de Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), além de integrarem a UFRGS IHL Clinic, primeira clínica brasileira dedicada ao estudo do direito internacional humanitário.




Referências


PEACE INSIGHT, Comunidad de Paz de San José de Apartadó, disponível em: https://www.peaceinsight.org/en/organisations/peace-village-of-san-jose-de-apartado/?location=colombia&theme;


ALBURQUERQUE, Contexto y Surgimiento de las Comunidades de Paz ¿Qué Son?, disponível em: https://musol.org/hermanamientos/Alburquerque/contexto-y-surgimiento-de-las-comunidades-de-paz-que-son ;


ALBURQUERQUE, La comunidad de Paz de San José de Apartadó, disponível em: https://musol.org/hermanamientos/Alburquerque/san-jose-de-apartado-comunidad-de-paz ;


CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS (26/06/2017), Medidas Provisionales Respecto de la República de Colômbia - Asunto Comunidad de Paz de San José de Apartadó, disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/apartado_se_10.pdf;


ANRUP, Roland; ESPAÑOL, Janneth - Una Comunidad de Paz en conflicto con la soberanía y el aparato judicial del Estado - Diálogos de Saberes, nº 35 (jul/dez 2011), pp. 153-169;


NAÇÕES UNIDAS (ALTO COMISIONADO PARA LOS DERECHOS HUMANOS OFICINA EN COLOMBIA), Comunicado de Prensa sobre la Importancia del Principio Humanitario de Distinción en el Conflicto Armado Interno, disponível em: https://www.hchr.org.co/publico/comunicados/2003/cp0313.pdf;







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