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Liberdade de expressão e a proteção de jornalistas no Sistema Africano de Direitos Humanos - parte 1

*Por Hannah De Gregorio Leão e Lucimar Prata dos Santos


Foto: Jornalistas entrevistando Ministro de Camarões. / Ollivier Girard/CIFOR



Direitos de Liberdade de Expressão e Acesso à Informação no Sistema Africano de Direitos Humanos


No Sistema Africano de Direitos Humanos, além de existir a garantia do direito de liberdade de expressão a partir do artigo 9º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (Carta de Banjul), ainda existe a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão e Acesso à Informação na África (“Declaração”). Esta foi publicada em 2019 pela Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos (CADHP), sendo uma atualização à versão anterior, de 2002, a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão na África, considerando desenvolvimentos legislativos, de soft law e jurisprudenciais com relação à temática.


A atual Declaração, em comparação com a Declaração anterior, traz uma ampla abordagem sobre a liberdade de expressão e a proteção dos direitos humanos na internet, tema que não era tratado pela versão anterior. A CADHP considerou os desenvolvimentos da era da internet como um fator central para a atualização da Declaração.


Sobre esse tema, a Declaração afirma que a liberdade de expressão e o acesso à informação na internet são centrais para a garantia de outros direitos humanos, assim como essenciais para reduzir as desigualdades digitais. A Declaração ainda ressalta a importância da proteção de dados e privacidade na garantia desses direitos, tendo em vista a relação intrínseca entre internet e tecnologias digitais. Ainda para a Declaração, o acesso à informação pressupõe que o direito de acesso à internet seja assegurado. Ela afirma, em seu princípio 85, que os Estados devem reconhecer o acesso universal, igualitário e efetivo de todos à internet como sendo necessário para se assegurar a liberdade de expressão e o acesso à informação, assim como demais direitos humanos. Para tal, ela ainda afirma que os Estados devem adotar legislações e políticas que assegurem tais direitos, como por meio da adoção de novas tecnologias das comunicações.


A Declaração estabelece uma proteção especial a jornalistas e defensores de direitos humanos em seus princípios 6, 20, 21 e 25. No caso específico dos jornalistas, eles devem ter a liberdade de praticar sua profissão sem nenhuma forma de restrição legal, sendo que os Estados devem adotar medidas de prevenção de ataques a jornalistas. A proteção de jornalistas também significa a proteção de seus documentos e materiais, já que eles não podem ser obrigados a revelar dados confidenciais contra a sua vontade. Caso estes sejam atacados, a Declaração afirma que os Estados devem investigar, processar e punir os criminosos, para que haja a efetiva remediação das vítimas, afirmando ainda a proteção específica das jornalistas mulheres, para que não sejam vítimas de violência sexual. Interessante ainda notar que a Declaração reitera o entendimento do direito internacional humanitário de que jornalistas devem ser considerados não-combatentes em conflitos armados.



Por outro lado, o Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos (TADHP) também já analisou casos envolvendo violações à liberdade de expressão. No caso Ingabire Victoire Umuhoza v Rwanda, de 2017, o Tribunal analisou a conduta da política e ativista de direitos humanos ruandesa Ingabire Victoire Umuhoza, acusada de realizar discursos revisionistas e minimizando o genocídio de Ruanda, tendo em vista sua crítica ao governo de Ruanda e aos tribunais de Gacaca (tribunais regionais de justiça de transição pós-genocídio de Ruanda), afirmando que estes seriam fraudulentos.

Nesse caso, o Tribunal pontuou a importância do direito de liberdade de expressão assegurado pela Carta Africana de Direitos Humanos (Carta de Banjul, artigo 9) e pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP, artigo 19), afirmando que se trata de um direito fundamental interligado ao direito de disseminar informações, assim importante para se assegurar outros direitos humanos a partir da defesa do Estado democrático. Entretanto, o Tribunal afirmou que, de acordo com sua jurisprudência, mais especificamente o caso de 2014 Lohé Issa Konate v Burkina Faso, a liberdade de expressão não é um direito absoluto, devendo ser restringido em determinadas circunstâncias. Dessa forma, o TADHP considerou, com base nos casos da CADHP e no artigo 19(3) do PIDCP, assim como em demais referências internacionais de direitos humanos, que a liberdade de expressão somente pode ser restringida caso seja assim estabelecido em lei, caso sirva a um propósito legítimo e caso seja necessário e proporcional de acordo com a sociedade democrática.


No caso de Umohoza, o TADHP concluiu que o direito de liberdade de expressão da política foi violado, tendo em vista que o discurso dela não foi revisionista ou minimizador. O TADHP afirmou que o genocídio de Ruanda é uma história sensível para o país, o que gera questões diferentes de receoções de comentários e opiniões sobre esse passado pela população, porém o discurso de Umohoza não negou ou diminuiu o genocídio. Dessa forma, o TADHP concluiu que o Estado de Ruanda violou o direito de liberdade de expressão da política Umohoza.


Apesar de não se tratar de um caso envolvendo jornalistas, mas sim uma política e defensora de direitos humanos, trata-se de um caso interessante para analisar a extensão dos direitos de liberdade de expressão no Sistema Africano de Direitos Humanos, assim como seu âmbito de proteção pelo TADHP. Jornalistas de Ruanda também foram impactados por alegações similares pelo fato de também criticarem os julgamentos de Gacaca.


Comissão e Corte Africanas de Direitos Humanos e dos Povos e os ataques e assassinatos de jornalistas no Continente Africano


A liberdade de expressão, ainda que não seja considerada um direito absoluto, é um dos principais instrumentos para a consolidação da democracia, do Estado democrático, bem como garantia ao pleno exercício dos direitos humanos.


Apesar da previsão legal no âmbito internacional e nos instrumentos vinculados ao Sistema Africano de Proteção aos Direitos Humanos, o direito de se expressar, de opinar e questionar é constantemente questionado e confrontado sob a justificativa de proteção à segurança nacional e preservação do bem comum. Mas, a grande dúvida é: existe liberdade de expressão quando há limitação desta? Ou ainda, a limitação não é apenas uma justificativa para silenciar a oposição, ou enfraquecer a democracia?


Tais perguntas são constantemente trazidas à tona dentro do Continente Africano, que convive com diversas instabilidade sociais e políticas e que nas últimas décadas registrou diversos casos de silenciamento sumário de jornalistas políticos e investigativos.



Em 2020, na Etiópia, por exemplo, o governo promulgou Lei que possui a finalidade de combater o discurso do ódio e a desinformação, e que trouxe aos internautas e operadores de plataformas penas de prisão até três anos e multas de até 100 mil birr (2,9 mil euros), caso venham a violar suas disposições. Ocorre que a Lei foi recepcionada por jornalistas locais e atividades como um claro método de silenciamento dos meios de comunicação e dos profissionais da área.


Segundo o ativista Befeqadu Hailu, o governo teve diversas formas de tratar a questão do discurso de ódio e combater as fake news, porém optou pela imposição de Lei que prevê a restrição ao acesso às informações o que abre espaço justamente para a criação de novas fake news, para Befeqadu Hailu, a Lei é apenas um instrumento para o abuso de poder e silenciamento da oposição, já que levará muitos jornalistas a renunciar ao direito de publicar conteúdos e exercer o direito à liberdade de imprensa.


A imposição de leis que permitem a limitação de acesso ou divulgação à informação, que restringe a liberdade de expressão, bem como o acesso às redes sociais (Facebook, Instagram, Twitter e etc) e, até mesmo navegadores, é uma realidade no Continente Africano e são costumeiramente justificadas sob o discurso da moralidade, segurança nacional, como se identifica em países como Mali, Ruanda, Uganda e Camarões.


Tais justificativas são consideradas ilegítimas, segundo os Princípios de Johannesburgo “uma restrição à liberdade de expressão que se busca justificar com base na segurança nacional não é legítima se seu propósito genuíno ou efeito demonstrável for (...) proteger um governo de constrangimento ou exposição de delito, ou para ocultar informações sobre o funcionamento de suas instituições públicas, ou para consolidar uma ideologia particular, ou para suprimir a agitação industrial.”


A permissibilidade injustificada de atos de restrição à liberdade e, que buscam tão somente a proteção de governos ilegítimos ou autoritários, e consequentemente o silenciamento da oposição, de jornalistas e meios de comunicação termina por influenciar e intensificar dentro do panorama africano uma grave ameaça aos direitos humanos e, ainda, permite a existência de numerosos casos de violação ao direito à vida daqueles que buscam garantir o direito à informação e à liberdade de expressão.




*Hannah De Gregorio Leão e Lucimar Prata dos Santos são pesquisadoras do Observatório Cosmopolita do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos.

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