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O Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos em 5 reflexões

*Por Hannah De Gregorio Leão e Lucimar Prata

Foto: African Arguments/State Department.


O Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos integra, ao lado dos sistemas interamericano e europeu, um dos três principais Sistemas Regionais de Direitos Humanos. O sistema africano nasceu da busca pela implementação de um concerto jurídico capaz de proteger e aplicar os direitos humanos dentro do continente africano, tendo como perspectiva basilar o conceito coletivo, e não individualista, dos direitos humanos.

Para que possamos compreender o funcionamento do Tribunal Africano de Direitos Humanos e dos Povos, torna-se importante entender o contexto político e social que a origina.


Para tanto, foram pensadas cinco reflexões que explicam a natureza do Tribunal:

1) A origem do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos

As intensas disputas políticas e econômicas observadas no continente africano ao longo de sua história legaram a seus povos diversas instabilidades sociais. Diante deste panorama, líderes de 32 países independentes do continente firmaram, em 25 de maio de 1963, o instrumento que criou da chamada Organização da Unidade Africana (OUA), que tinha como objetivos basilares a independência política dos países africanos, o apoio aos movimentos de libertação, a condenação do apartheid e formação de uma posição unânime no âmbito da Organização das Nações Unidas, de forma a apaziguar diferenças políticas e eliminar os resquícios do colonialismo europeu no continente.[3]


Apesar das diversas críticas quanto à sua atuação ao longo dos 39 anos de existência da OUA, é necessário destacar que a criação da Organização foi fundamental para a concretização de um sistema jurídico regional com a função de proteger dos direitos dos povos africanos. Podemos destacar, por exemplo, a inserção mais equitativa de países africanos dentro da ONU e do Conselho de Segurança e o reconhecimento internacional da importância do continente africano que, posteriormente, resultou na nomeação do ganês Kofi Annan para o cargo de Secretário Geral da ONU entre 1997 e 2006.

Em 2002, em encontro em Durban, na África do Sul, com a presença de 55 Estados, , os países membros oficializaram uma reestruturação da Organização, disposta a repensar suas diretrizes, transformando a OUA em União Africana, com a promulgação de seu Ato Constitutivo[4], que seria mais tarde seguido do Protocolo de Emendas ao Ato Constitutivo da União Africana[5].

Com a nova conjuntura, um novo objetivo foi estabelecido: a liderança do desenvolvimento e a integração econômica da África. Além disso, os instrumentos constitutivos da União Africana trouxeram a previsão da promoção e proteção dos direitos humanos e dos povos em acordo com a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e outros instrumentos de direitos humanos relevantes (Art 3º, alíneas e, h.), reforçando a missão inovadora adotada pela nova Organização.

Atualmente, os objetivos e metas concretas da UA estão dispostas na chamada “Agenda 2063”, lançada em 2013 como uma Homenagem aos 50 anos da Organização da Unidade Africana. A Agenda prevê um plano de ação para os próximos 50 anos, formando um quadro estratégico para cumprir o objetivo da África para o desenvolvimento inclusivo e sustentável e é uma manifestação concreta do impulso pan-africano para a unidade, autodeterminação, liberdade, progresso e prosperidade coletiva, perseguido sob o Pan-africanismo e o Renascimento Africano.

Foto: African Union/Agenda2063

Na intenção de concretizar e criar uma estabilidade jurídica entre os países africanos, bem como uma consciência de direitos humanos, a União Africana criou, através do Protocolo à Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos, o Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos (Corte Africana).

O Protocolo, no entanto, só entrou em vigor em 25 de janeiro de 2004, quando alcançou 15 (quinze) ratificações. Atualmente, 30 (trinta) países africanos ratificaram o Protocolo, reconhecendo a competência da Corte.

Foto: GCIS/Fotos Públicas

2) Quem pode apresentar um caso perante o Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos?

O Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos admite casos apresentados pela Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, assim como casos apresentados diretamente por Estados e organizações intergovernamentais africanas, de conforme o artigo 5º do Protocolo à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos sobre o estabelecimento do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos.[6][7]

De forma similar à Corte Europeia dos Direitos Humanos, o Tribunal Africano admite não somente casos apresentados por Estados, mas também por indivíduos e ONGs[8], conforme prevê o §3º do artigo 5º, assim como o §6º do artigo 34 do Protocolo. Trata-se de disposição que também está prevista nos artigos 29 e 30 do Protocolo do Estatuto do Tribunal[9], o qual ainda dispõe que o Tribunal não possui jurisdição sobre Estados que não são membros da UA.

Com relação às organizações não governamentais, ao contrário da Corte Europeia de Direitos Humanos, que somente aceita a apresentação direta de ONGs, o Tribunal Africano inova ao estabelecer hipótese de denúncia direta de organizações intergovernamentais africanas. Entretanto, Rachel Murray afirma que é incomum os Estados-membros se utilizarem de organizações intergovernamentais para realizar os procedimentos de denúncia, evidenciando uma maior incidência e inter-relação essencial entre o Tribunal Africano dos Direitos Humano e dos Povos com a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.[10]

A título de comparação, vale ressaltar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, por outro lado, admite apenas casos apresentadas pelos Estados-membros que tenham ratificado a Convenção Americana de Direitos Humanos, assim como casos apresentados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. É possível perceber uma relação indireta de indivíduos e organizações não governamentais por meio da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que pode analisar casos desses dois atores e posteriormente encaminhar à Corte Interamericana de Direitos Humanos.[11]

3) A quais atores a jurisdição do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos se estende?

De acordo com os artigos 3.1 e 34.6 do Protocolo à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos sobre o estabelecimento do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos[12], a jurisdição do Tribunal estende-se a todos os Estados-membros que tenham ratificado o Protocolo.[13]

Entretanto, o Protocolo sobre as Alterações ao Protocolo Relativo ao Estatuto do Tribunal Africano de Justiça e Direitos Humanos de 2014, também conhecido como Protocolo de Malabo,[14] ao criar uma nova jurisdição penal internacional do Tribunal, inclusive estabelecendo novos crimes diferentes dos elencados pelo Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, prevê não apenas hipóteses de responsabilidade penal individual, mas também de responsabilidade penal de empresas.[15]

As duas hipóteses de responsabilidade são inovações do sistema regional africano de direitos humanos. Além de ser o único sistema regional com competência penal internacional alternativa à jurisdição internacional do Tribunal Penal Internacional (TPI) para o julgamento de indivíduos, o Tribunal Africano é ainda a única corte internacional a possuir competência para julgar empresas por graves violações de direitos humanos. Nesse sentido, o promotor dos julgamentos de Nuremberg, Benjamin Ferencz, analisou a possibilidade de existir um tribunal internacional para julgar empresas e exemplos históricos que se aproximaram a essa possibilidade em artigo próprio.[16]

O estabelecimento da competência internacional penal do Tribunal evidencia ainda um questionamento do sistema regional de direitos humanos e dos povos africano com relação ao Tribunal Penal Internacional, dada a tradicional desconfiança africana em relação à corte, tendo em vista que os casos por ela julgados têm sido majoritariamente relacionados a líderes e militares de países do continente africano.[17]

Vale ressaltar que o Protocolo de Malabo vem sendo criticado desde sua criação por ter estendido a competência material do Tribunal, que passaria a também julgar causas relacionadas a direito internacional penal e qualquer questão de direito internacional geral (artigo 28, d, do Protocolo de Malabo). Isto pois, como demonstrado, as competências do Tribunal já não se limitam às questões de direitos humanos como nos casos dos sistemas regionais Interamericano e Europeu.[18] Não obstante, o Protocolo de Malabo ainda não tem vigência no sistema africano, tendo em vista que os países signatários ainda não o ratificaram.[19]

4) Quais tratados guiam a atuação do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos?

O Artigo 3º do Ato de Constituição da União Africana, nas alíneas “e” e “h”, define que a União Africana e seus órgãos devem buscar a promoção dos direitos humanos e dos povos em acordo com a Carta Africana de Direitos Humanos e Povos, bem como outros instrumentos de direitos humanos considerados relevantes.

Desta forma, não existe determinação específica quanto aos tratados ou instrumentos formalmente incluídos sob a competência do Tribunal. O Tribunal pode utilizar em sua atuação todo e qualquer instrumento de direitos humanos ratificados por seus países membros, diferentemente dos sistemas regionais interamericano e europeu, que possuem suas jurisdições restritas às suas respectivas Convenções regionais (principalmente a Convenção Americana de Direitos Humanos e a Convenção Europeia de Direitos Humanos).[20]

Assim, a apreciação de um caso pelo Tribunal Africano poderia, por exemplo, analisar uma violação de direitos humanos à Luz da Carta Africana, mas também da Convenção dos Refugiados de 1969; da Convenção do Bem-Estar e dos Direitos da Criança e do Protocolo de Maputo. O Tribunal poderia ainda julgar casos com base no Pacto de Direitos Civis e Políticos, no Pacto de Direitos Sociais, Culturais e Econômicos e na Convenção de Proibição da Tortura, ou quaisquer instrumentos pertencentes ao sistema universal de direitos humanos.[21]

Além disso, ponto essencial do sistema africano de direitos humanos é o reconhecimento e a possibilidade de aplicação de normas jus cogens, garantindo escopo ainda maior de proteção aos direitos humanos dos povos africanos diante do contexto do continente.[22]

5) Como funciona a estrutura do Tribunal?

O Tribunal Africana tem sua sede em Arusha, na Tanzânia, e é composta por onze juízes, selecionados dentre cidadãos de reputação ilibada e notório conhecimento em Direitos Humanos.[23]

Foto: Arquivo/Tribunal Africano de Direitos Humanos e dos Povos

Os membros do Tribunal são eleitos pela Assembleia da União Africana, em votação secreta, a partir de lista com até três indicações de cada Estado Parte. Os juízes têm mandato de seis anos e possuem carga de trabalho em tempo parcial.

Dentre as regras que regulamentam a Corte figura a proibição aos juízes de exercer atividades políticas, administrativas ou diplomáticas junto aos governos nacionais. O Protocolo da Corte veda ainda que os juízes apreciem casos envolvendo seu país natal.[24]

Os juízes votam entre si para os cargos de Presidente e Vice-Presidente do Tribunal. Estes são eleitos para mandatos de dois anos, por maioria absoluta, sendo permitida só uma reeleição.

O Presidente é responsável por dirigir os trabalhos do órgão e representá-lo perante outros organismos internacionais; enquanto o vice auxilia nas funções e pode substituir o presidente quando este estiver inabilitado ao cargo.

A Corte reúne-se em quatro sessões ordinárias por ano, cada uma com duração de quinze dias. Sessões extraordinárias podem ser convocadas pelo Presidente, por iniciativa própria ou a pedido da maioria dos juízes.

Atualmente o Presidente da Corte é o juiz Sylvain Ore (Côte d’Ivoire), tendo como Vice o juiz Ben Kioko (Kenya). Além destes, são membros os seguintes juízes: Juiz Rafaâ Ben Achour (Tunísia), Juiz Angelo Vasco Matusse (Moçambique), Juíza Ntyam Ondo Mengue (Camarões), Juíza Marie Thérèse Mukamulisa (Ruanda), Juíza Tujilane Rose Chizumila (Malawi), Juíza Bensaoula Chafika (Argélia), Juiz Blaise Tchikaya (República do Congo), Juíza Stella Isibhakhomen Anukam (Nigéria), Juíza Imani Daud Aboud( República Unida da Tanzânia). O Observatório Cosmopolita do Tribunal Africana dos Direitos Humanos e dos Povos publicará em breve análises detalhadas sobre os juízes do Tribunal.



*Hannah De Gregorio Leão é graduanda em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), membro do comitê executivo do PILLS (Public International Law Litigation Society) PUC-Rio, pesquisadora bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET) do Departamento de Direito da PUC-Rio na área de Direito Constitucional e membro do Observatório Cosmopolita de Cortes Regionais de Direitos Humanos; e Lucimar Prata é graduanda em Direito na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), pesquisadora na Clínica de Direitos Humanos e Direito Ambiental da UEA e membro do Observatório Cosmopolita de Cortes Regionais de Direitos Humanos.

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[3] Paiva Fernandes, Márcia d. 2016. “A organização da unidade africana como expressão do projeto político continental no pós-independência: disputa e reivindicações.” Revista de História da África e de Estudos da Diáspora African, p. 101. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/sankofa/article/view/119063/116437. Acesso em 28/09/2020; [4] Constitutive Act of The African Union. Disponível em: https://au.int/sites/default/files/pages/34873-file-constitutiveact_en.pdf. Acesso em 27/09/2020; [5] Protocol on the Amendments to the Constitutive Act of the African Union. Disponível em: https://au.int/treaties/protocol-amendments-constitutive-act-african-union. Acesso em: 27/09/2020; [6] Protocol to the African Charter on Human And Peoples' Rights on the Establishment of an African Court on Human And Peoples' Rights. Disponível em: http://www.african-court.org/en/images/Basic%20Documents/africancourt-humanrights.pdf Acesso em: 27/09/2020; [7] Paiva Fernandes, Márcia d. 2016. “A organização da unidade africana como expressão do projeto político continental no pós-independência: disputa e reivindicações.” Revista de História da África e de Estudos da Diáspora African, p. 101. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/sankofa/article/view/119063/116437. Acesso em 28/09/2020; [8] Artigos 33 e 34 https://www.echr.coe.int/documents/convention_eng.pdf Acesso em: 27/09/2020; [9] Protocol on the Statute of the African Court of Justice and Human Rights. Disponível em: http://www.peaceau.org/uploads/protocol-statute-african-court-justice-and-human-rights-en.pdf; [10] MURRAY, Rachel. The Human Rights Jurisdiction of the African Court of Justice and Human and Peoples’ Rights, p. 970. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/terms. https://doi.org/10.1017/9781108525343.034 Acesso em: 27/09/2020; [11] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 7 ed. rev. e atual, São Paulo: Saraiva, 2017. (p. 249); [12] http://www.african-court.org/en/images/Basic%20Documents/africancourt-humanrights.pdf ; [13] A Guide to the African Human Rights System. Centre for Human Rights, Faculty of Law University of Pretoria; African Commission, p. 44, 2016. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/tablas/31712.pdf Acesso em: 27/09/2020; [14] Protocolo à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. Disponível em: https://au.int/sites/default/files/treaties/36398-treaty-0045_-_protocol_on_amendments_to_the_protocol_on_the_statute_of_the_african_court_of_justice_and_human_rights_p.pdf Acesso em: 27/09/2020; [15] Ibid; [16] FERENCZ, Benjamin. An International Jurisdiction For Corporate Atrocities: Observations of a former Nuremberg War Crimes Prosecutor. Harvard International Law Journal / Vol. 57, 2016, Online Symposium; [17] Ibid. p. 966; [18] MURRAY, Rachel. The Human Rights Jurisdiction of the African Court of Justice and Human and Peoples’ Rights, p. 975. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/terms. https://doi.org/10.1017/9781108525343.034 Acesso em: 27/09/2020; [19] List of Countries which have Signed, Ratified/Acceded to the Protocol on Amendments to the Protocol on the Statute of the African Court of Justice and Human Rights. Disponível em: https://au.int/sites/default/files/treaties/36398-sl-PROTOCOL%20ON%20AMENDMENTS%20TO%20THE%20PROTOCOL%20ON%20THE%20STATUTE%20OF%20THE%20AFRICAN%20COURT%20OF%20JUSTICE%20AND%20HUMAN%20RIGHTS.pdf Acesso em: 27/09/2020; [20] REVENTLOW, Yakaré-Oulé (Nani) Jansen; CURLING, Rosa. The Unique Jurisdiction of the African Court on Human and Peoples’ Rights: Protection Of Human Rights Beyond The African Charter. Emory International Law Review, Vol. 33, p. 204; [21] ZIMMERMANN, Andreas; BAUMLER, Jelena. Current challenges facing the African Court of Human and Peoples Rights. Kas International Reports, volume 7. 2010, p. 44-45; [22] Ibid., p. 45; [23] Protocolo à Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos sobre o estabelecimento do Tribunal Africano de Direitos Humanos e dos Povos, 11, 12, 1, 14, 1, e 15, 1 e 4. Disponível em: . Acessado em 20 de setembro de 2020; [24] Regras da Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos, artigo 4, 2. Abril de 2010. Disponível em: . Acessado em 20 de setembro de 2020

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