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Turquia sai da Convenção de Istambul, tratado sobre a violência contra a mulher


*Por Elisa Hartwig e Gabriel de Oliveira Borba


No último sábado, dia 20 de março de 2021, a Turquia retirou-se da Convenção de Istambul por meio de um decreto presidencial publicado durante a madrugada. Em vigor desde 2011, a Convenção é um dos principais mecanismos de direitos humanos para a proteção das mulheres no continente Europeu, com 45 signatários (incluindo União Européia). No presente artigo, Elisa Hartwig e Gabriel de Oliveira Borba investigam o surgimento da Convenção, seus direitos, e o processo de retirada da Turquia.


Surgimento da Convenção


No começo da década de 2000, a Europa testemunhou uma crescente nos casos de violência contra mulheres e no surgimento de jurisprudências no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, majoritariamente decidindo sobre a responsabilidade estatal em assegurar a proteção das vítimas. Consequentemente, o Conselho da Europa, fazendo jus ao seu mandato como principal organização internacional sobre direitos humanos no continente Europeu, decidiu, em 2006, instaurar campanhas promovendo a conscientização sobre violências domésticas sofridas por mulheres e adolescentes. Segundo o site da campanha, após os 16 anos de idade, cerca de 15% das mulheres europeias já tinham sofrido algum tipo de abuso doméstico, seja ele psicológico ou sexual. Durante quatro anos, tais campanhas engajaram tomadores de decisões, parlamentares e a sociedade civil para a situação de vida das mulheres europeias.


Foto: Council of Europe


Colhendo os frutos dos trabalhos realizados, o Conselho criou, em dezembro de 2008, um Comitê Ad Hoc para a Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres e Violência Doméstica (CAHVIO), com o intuito em redigir uma Convenção Europeia para legislar sobre o tema a nível regional. Para englobar o tema de forma efetiva, o Comitê teve a participação de representantes dos países membros do Conselho da Europa, ONGs, representantes de organizações internacionais, representantes da União Europeia e especialistas em Direitos Humanos. Haja vista o caráter temporário dos Comitês Ad Hoc, criados apenas para propor um projeto específico, em 2010, após dez reuniões, foi entregue o primeiro rascunho do que viria a ser a Convenção de Istambul.


Processo de assinatura e ratificação da Convenção


A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, comumente chamada de Convenção de Istambul, foi admitida pelo Conselho de Ministros do Conselho da Europa, principal órgão tomador de decisões da organização, no dia 7 de abril de 2011. O processo de assinatura da Convenção iniciou um mês depois, 11 de maio de 2011, na 121ª Sessão do Comitê de Ministros em Istambul, com representantes dos 47 estados membros do Conselho da Europa. No mesmo dia, países como Alemanha, Grécia, Finlândia e Áustria assinaram a Convenção, entretanto, seu texto apenas entrou em vigor em 2014, após a ratificação do Estado de Andorra.


Segundo o Direito Internacional Público, a assinatura de um acordo internacional diz respeito ao consentimento daquele Estado com os propósitos estabelecidos, sendo que a ratificação cria obrigações aos Estados signatários, vinculados ao que foi determinado. Tal regra não é imutável, uma vez que o regime da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (Parte II - Conclusão e Entrada em Vigor de Tratados), acordo que codificou regras costumeiras sobre assinatura, ratificação e vigência de tratados, possibilita negociações internas com o intuito de escolher qual mecanismo criará obrigações para as partes, isto é, vinculará seus membros ao texto do acordo.


Foto: Permanent Mission of Ukraine to the Council of Europe's photo archive/Chairmanship of Ukraine of the Committee of Ministers of the Council of Europe (May-November 2011)


Conforme o artigo 75 da Convenção de Istambul, o texto só entraria em vigor a partir de dez ratificações, sendo oito dos Estados membros do Conselho. Isto explica a lacuna de aproximadamente três anos entre a abertura das assinaturas e a entrada em vigor do texto da Convenção.


A Turquia, por sua vez, assinou a Convenção em 11 de maio de 2011 e ratificou o seu texto no dia 14 de março de 2012, momento a partir do qual o Estado passou a ser obrigado a cumprir com as obrigações estabelecidas pela Convenção. Assim, deveria seguir os seus quatros pilares: prevenção, proteção, repressão e políticas coordenadas.

As obrigações estabelecidas pela Convenção


Através de 82 artigos, a Convenção de Istambul engloba diretrizes ao combate à violência contra a mulher, reconhecendo a problemática estrutural do tema ao afirmar, em seu preâmbulo, que as mulheres estão mais suscetíveis à violência baseada em seu gênero. O documento perpassa por questões de violência doméstica, assédio sexual, casamento forçado, mutilação genital e outras violações graves aos direitos humanos das mulheres. Tais violações foram introduzidas na Convenção como delitos contra as mulheres, ou seja, ao ratificar o texto, os Estados são obrigados a internalizar os crimes em suas legislações locais.


Ao estabelecer o objetivo de proteger as mulheres contra todas as formas de violência e eliminar a discriminação baseada em gênero, a Convenção obriga os Estados a revisarem suas legislações internas e a revogarem legislações discriminatórias. As medidas discriminatórias também enquadram quaisquer diferenciações baseadas em raça, cor, língua, religião, orientação sexual, deficiência, opinião, nacionalidade e até mesmo estado de saúde. O texto inovou ao prover uma mirada interseccional sobre as mulheres, direcionando seus recursos para diminuir todos os tipos de discriminação. Além disso, também reconheceu que gênero não diz respeito a aspectos biológicos femininos ou masculinos e estabeleceu direitos às mulheres migrantes/refugiadas, tendo em vista sua situação extremamente vulnerável e as rígidas políticas de retorno existentes nos seus países de origem.


Foto: Council of Europe/Brochure "THE FOUR PILLARS OF THE ISTANBUL CONVENTION - Council of Europe Convention on preventing and combating violence against women and domestic violence".


Além de propor artigos sobre legislações não discriminatórias e que empoderem as mulheres, a Convenção também institui medidas para promover assistência às vítimas. O artigo 18 cita, por exemplo, o Ministério Público, órgão responsável pela execução das legislações, além de ONGs e autoridades do judiciário como entidades hábeis a proteger os interesses da vítima. Como a Convenção visa estabelecer obrigações para países com culturas e mecanismos judiciais distintos, seu texto assegura o dever ao acesso aos recursos cabíveis em matérias cíveis, priorizando os princípios estabelecidos no direito internacional e reafirmando o acesso à justiça. O Estado, por sua vez, deve dar assistência às vítimas, facilitando suas queixas, estabelecendo canais de comunicação seguros e acesso a serviços que visem o seu restabelecimento social.


Novamente, relembrando a pluralidade cultural de cada país, ao tratar de matéria penal, a Convenção estipula que as legislações também serão aplicadas independentemente da relação entre vítima e autor. Designa também o cumprimento da competência judiciária correta para investigar e punir os crimes cometidos contra mulheres, provê uma segurança contra a impunidade dos autores e certifica-se que medidas agravantes da pena sejam implementadas (crimes contra crianças, vulneráveis, cometidos por parceiros etc.).


Segundo os artigos da Convenção, as políticas de igualdade não cabem somente aos Estados, devendo ONGs, sociedade civil, setor privado, entes de comunicação e outros órgãos competentes se engajarem para disseminar políticas eficazes e coordenadas. Também estabelece a inclusão da equidade de gênero nos currículos escolares, empoderando novas gerações ao tema.


Foto: Council of Europe


A Convenção de Istambul tem por intuito não abandonar nenhuma mulher, tomando consciência das particularidades de cada uma ao proteger todas as formas de violência. Ao todo, seus artigos trazem direitos e medidas penais, civis e administrativas para os países do Conselho da Europa. Atualmente, são 45 Estados signatários (juntamente com a União Europeia), dentro do qual 34 países ratificaram o texto.


O caso da Turquia


Foto: REUTERS/Umit Bektas.


Apesar de ter sido o primeiro país a ratificar a Convenção, em 2012, a qual foi aberta para assinatura em Istambul durante a presidência turca da organização, no dia 20 de março de 2021 a Turquia retirou-se do tratado por meio de um decreto presidencial publicado durante a madrugada. O Presidente Recep Tayyip Erdogan — eleito em 2014 — justificou a saída do tratado afirmando que este foi “sequestrado para normalizar a homossexualidade”, se referindo às disposições que proíbem a discriminação baseada em orientação sexual e identidade de gênero. Outro fundamento seria a preservação da estrutura familiar tradicional.


Erdogan é integrante do partido islamista AKP, sendo seus eleitores de maioria muçulmana e conservadora. Ressalta-se que, em 2016, o Presidente sofreu uma tentativa de golpe e a reação foi violenta, com 240 mortes, mais de 50 mil prisões de opositores e milhares de demissões de servidores públicos, acadêmicos e professores. Ainda, Erdogan alterou a Constituição para estabelecer mandato presidencial de cinco anos e permitir sua reeleição em 2023, além de controlar 90% dos veículos de comunicação.


Nesse contexto, a violência contra a mulher e o feminicídio vem crescendo no país, como afirma a associação “We will stop feminicide” (nós vamos acabar com o feminicídio), segundo a qual 300 mulheres foram assassinadas por seus companheiros ou ex-companheiros em 2020. Além disso, o país enfrenta grandes polêmicas, como em janeiro deste ano, quando o partido do Presidente Erdogan propôs um projeto de lei que visava suspender sentenças de acusados de estupro que se casassem com suas vítimas em casos em que a diferença de idade entre eles fosse inferior a 10 anos, mesmo caso as vítimas sejam menores de 18 anos.


Importante ressaltar que a Convenção de Istambul permite, de acordo com seu artigo 80, a denúncia por meio de notificação direcionada ao Secretário Geral do Conselho da Europa, a qual se tornará efetiva no primeiro dia do mês seguinte ao vencimento de um prazo de três meses a contar da data de recepção da notificação pelo Secretário Geral. Contudo, a própria Secretária Geral da organização, Marija Pejčinović Burić, se manifestou frisando que tal denúncia implica em um retrocesso na garantia dos direitos das mulheres turcas e de todo o mundo.

Igualmente, a ONU Mulheres demonstrou preocupação com o ato do governo turco, especialmente em um momento de pandemia do Covid-19 que tem gerado uma “pandemia paralela” de violência de gênero. Em conjunto com o Sistema das Nações Unidas no país, a organização pediu à Turquia que retorne ao tratado. Ademais, o Presidente do Comitê de Ministros do Conselho da Europa, Heiko Maas, e o Presidente da Assembleia Parlamentar da mesma organização, Rik Daems, declararam que “lamentam profundamente a decisão do Presidente da Turquia de se retirar desta Convenção amplamente apoiada no país, sem qualquer debate parlamentar”, além de que “abandonar a Convenção privaria a Turquia e as mulheres turcas de um instrumento vital para combater a violência”.


Em razão disso, milhares de pessoas saíram às ruas de Istambul e outras cidades turcas, no domingo, dia 21 de março de 2021, para protestar em prol da permanência da Turquia na Convenção de Istambul.


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* Elisa Hartwig e Gabriel de Oliveira Borba são pesquisadores do Observatório Cosmopolita da Corte Internacional de Justiça.



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