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Conflitos armados e medidas emergenciais no Sistema Africano de Direitos Humanos e dos Povos

Por Hannah De Gregorio Leão e Lucimar Prata dos Santos*


Foto: Erik Cardenas / Soldado de Burundi em um posto de segurança no aeroporto de Bangui, na República Centro-Africana.



Dos inúmeros desafios presentes na proteção dos direitos humanos em situações de conflitos armados e estados de emergência, percebe-se, atualmente, no Sistema Africano de Proteção dos Direitos Humanos e dos Povos, uma discussão referente às barreiras e oportunidades procedimentais entre a atuação da Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos e do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos em tais circunstâncias, especialmente considerando a situação ocasionada pela pandemia da COVID-19. Tal discussão vem analisando, no âmbito da União Africana, possibilidades de maior integração e eficácia no encaminhamento de casos entre a Comissão e o Tribunal, podendo ainda gerar novas medidas procedimentais entre os dois órgãos.


A atuação conjunta entre a Comissão e o Tribunal ainda é escassa quando comparada com a de outros Sistemas de Direitos Humanos, porém não deixa de ter um papel fundamental na promoção dos direitos humanos. Dessa forma, é possível identificar procedimentos de atuação e prevenção em casos de grave ameaça aos direitos fundamentais dentro dos Estados Membros.


O Procedimento na Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos


A Comissão Africana é a responsável por receber e analisar as comunicações sobre violações de direitos humanos e dos povos, de acordo com o artigo 55 da Carta Africana. Tais comunicações após serem consideradas transformam-se em recomendações à Assembleia Geral dos Estados e Governos da União Africana e ao estado demandado. O principal objetivo é cumprir a promoção dos direitos humanos e aconselhar e prevenir os Estados quanto às iminentes violações de direitos.


O referido artigo 55 dita que as comunicações serão analisadas pelos membros da Comissão, desde que por pedido da maioria absoluta dos membros. As comunicações necessariamente precisam ser sobre violações de direitos humanos e dos povos (art. 56) e, precisam cumprir com alguns requisitos: a identificação do autor (não há possibilidade de anonimato), não conter insultos ou termos ultrajantes direcionados ao Estado impugnado ou qualquer umas de suas instituições, não possuir como fundamentação notícias difundidas por meio de comunicação de massa, ser feita após o esgotamento dos recursos internos ou quando antes disso se a Comissão identificar que as medidas internas se prolongam mais do que o normal e, não dizer respeito a casos que já tenham sido resolvidos sob a interpretação da Carta das Nações Unidas, Carta da Organização da Unidade Africana ou com a própria Carta Africana.


Foto: UNICEF/Jean-Claude Wenga / Famílias deslocadas por conflito e violência no leste da República Democrática do Congo recebendo ajuda humanitária da ONU durante a pandemia da COVID-19.


Ainda que haja urgência relativa à violação, os procedimentos de análise e admissibilidade não precisam ocorrer na mesma sessão ou em sessões sucessivas, como foi o caso da Comunicação 97/93 – Modise vs. Botswana, no qual a análise ocorreu na 13ª Sessão e a admissibilidade apenas na 17ª Sessão. Dentro do procedimento de admissibilidade existe a possibilidade de sustentação oral por parte do autor e do Estado demandado (ex. Comunicação 231/99 – Avocats Sans Frontières vs. Burundi), mesmo esta não sendo uma prática tão recorrente.


Uma das possibilidades de investigação e acompanhamentos das comunicações submetidas é a possibilidade de a Comissão fazer as chamadas on-site investigations (investigações in loco), essa possibilidade, entretanto só ocorre quando o Estado demandado permite a entrada da Comissão para investigação, fato que pode interferir ou impedir uma verdadeira verificação das violações (art. 46 da Carta).


Medidas Interinas ou Provisórias - Procedimento Especial em caso de iminentes violações de direitos humanos.


O procedimento estabelecido dentro da Comissão Africana segue algumas diretrizes para sua admissibilidade, como o respeito à soberania dos Estados e o exaurimento dos mecanismos internos, porém é certo que os Estados Africanos por diversas razões sociais e políticas vivenciam situações de contínua violações de direitos humanos, e portanto, torna-se necessário instrumentos de prevenção e proteção para os casos mais graves e urgentes. Diante desta realidade, a Comissão Africana estabeleceu o procedimento para as chamadas “Interim Measures”.


As Medidas Interinas ou Provisórias são aplicadas apenas em situações que revelem a existência de uma série de sérias ou massivas violações de direitos humanos e dos povos. Nesses casos, segundo o artigo 58 (1), ocorrerá a dispensa o procedimento de admissibilidade, devendo o caso ser direcionado imediatamente ao conhecimento do Presidente da Sessão ou ainda, segundo o artigo 111 (3) das Regras de Procedimentos, quando a Comissão não estiver reunida, o Presidente deverá em consulta urgente com os demais membros executar as medidas necessárias em nome da Comissão. Importante ressaltar que as medidas tomadas não precisam obrigatoriamente ter o aval dos demais membros, desde que tenha-se dado ciência a estes.


Exemplos de aplicação das medidas interinas ocorreram nos casos: Comunicação 27/89 e 99/93 (referente às execuções e prisões extrajudiciais de cidadãos ruandeses, principalmente aqueles da etnia Tutsi); Comunicação 60/91(referente à possível execução de pena de morte de indivíduos na Nigéria).


Importante ressaltar que apesar de importante e efetiva nos casos mencionados, as disposições da Carta e do Regulamento Interno não estabelecem se uma decisão tomada sobre medidas provisórias é ou não vinculativa.


Perspectivas e Desafios na atuação complementar entre a Comissão e o Tribunal Africanos em situações de emergências e conflitos armados


Ainda sobre a adoção de medidas emergenciais e na proteção dos direitos humanos e dos povos em situações de conflitos armados, a Comissão Africana dos Direitos Humanos publicou a Resolução 447 de 2020, sobre a “a defesa dos direitos humanos durante situações de emergência e em outras circunstâncias excepcionais”. Na Resolução, a Comissão pontuou a necessidade de se monitorar legislações e práticas durante estados de emergência nos Estados africanos, especialmente no contexto de conflitos armados e durante a pandemia da COVID-19. Por isso, a Comissão atribuiu ao Ponto Focal para Direitos Humanos em Situações de Conflito na África a tarefa de desenvolver diretrizes normativas sobre a adesão às normas de direitos humanos e dos povos em estados de emergência ou desastre, levando em consideração a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos e as normas do Comissão Africana. Além disso, a Comissão também solicitou que o mesmo Ponto Focal monitore a situação dos direitos humanos e dos povos atualmente em situações de estado e emergência e desastre no continente africano.


Em seu relatório intitulado “Abordando Questões de Direitos Humanos em Situações de Conflito: Para um Papel mais Sistemático e Eficaz da Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos”, a Comissão aborda os marcos normativos importantes para a proteção dos direitos humanos e dos povos em situações de conflitos armados no continente africano e analisa a sua interação de suas atividades com demais órgãos africanos importantes nesse contexto. Sobre o Tribunal, a Comissão afirma que seu trabalho conjunto com o Tribunal possibilita uma oportunidade de elaborar formas efetivas de proteção dos direitos assegurados pela Carta de Banjul em situações de conflitos armados.

Porém, a Comissão pontuou certas lacunas de caráter procedimental existentes no diálogo com o Tribunal que representam dificuldades para a efetiva proteção dos direitos humanos e dos povos em situações de conflitos armados a partir da atuação conjunta dos dois órgãos. A Comissão pontuou que existiam inúmeros desafios para a total operacionalização da complementaridade entre os dois órgãos, incluindo a falta de regras e diretrizes claras da Comissão para identificar casos específicos a serem encaminhados para o Tribunal, apesar de existirem critérios gerais de encaminhamento de casos nas Regras de Procedimento da Comissão.


Foto: AFP / Soldados do Chade da força-tarefa conjunta contra o Boko Haram em Monguno, na Nigéria, em 2019.


Outra questão pontuada pela Comissão são desafios legais relacionados à ausência ou inadequação de critérios para o encaminhamento de casos para o Tribunal. A Regra 118 das Regras de Procedimento da Comissão (anterior à versão atual de 2020) estabelece que a remessa de um caso finalizado ao nível da Comissão ao Tribunal devido à não implementação pode levar à reabertura do caso pelo Tribunal e à sua reconsideração sobre a admissibilidade e o mérito. De acordo com a Comissão, essa reabertura do processo é um fator gerador de desperdício de recursos judiciais e também de grande frustração para as partes e insegurança jurídica.


Além disso, a Comissão afirma que o artigo 58 da Carta de Banjul, instituindo o encaminhamento de casos de violações sérias ou massivas de direitos humanos recebidas pela Comissão ao Tribunal, faria com que a Comissão tratasse apenas de casos menos graves ou menos importantes, tendo em vista o encaminhamento com base na gravidade das violações ou sua importância jurisprudencial. Tal possibilidade, de acordo com a Comissão, seria contrária ao papel complementar do Tribunal com relação à Comissão, assim como estabelecido pelo Protocolo à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.


A Comissão pontuou, como fatores que poderão trazer importantes contribuições para a relação procedimental entre a Comissão e Tribunal, o processo de revisão das Regras de Procedimento da Comissão, podendo trazer novas formas legais e técnicas para efetivar a complementaridade entre a Comissão e o Tribunal.

Importante destacar que o relatório com as considerações da Comissão sobre a proteção de direitos humanos e dos povos em conflitos armados é de 2019, sendo que foi publicado, em 2020, as novas Regras de Procedimento da Comissão. De fato, nas novas e atuais Regras de Procedimento da Comissão, a obrigatoriedade de encaminhamento para o Tribunal de casos constituindo “sérias ou massivas violações de direitos humanos" não foi adotada (como era na Regra 118 (3) das antigas Regras de Procedimento), sendo que a Regra 99 das atuais Regras de Procedimento afirmam que tais casos devem ser encaminhados ao Conselho de Paz e Segurança da União Africana.


O Conselho de Paz e Segurança da União Africana é, de acordo com seu Protocolo, o “órgão decisório permanente para a prevenção, gestão e resolução de conflitos”, tendo como objetivo “ser uma estrutura de segurança coletiva e de aviso prévio para facilitar, em tempo oportuno, uma resposta eficaz à situação de conflito e crise em África”. O fato de a Comissão instituir, em suas novas Regras de Procedimento, um encaminhamento direto de casos de “sérias e massivas violações de direitos humanos” ao Conselho de Paz e Segurança pode representar um novo meio (procedimental e institucional) para a proteção dos direitos humanos e dos povos em conflitos armados no continente africano


Outra oportunidade de encaminhamento de casos da Comissão ao Tribunal referente a violações de direitos humanos e dos povos em conflitos armados foi pontuada em 2020 pela organização não-governamental TRIAL International, a qual, por meio de suas atividades de litigância estratégica, apresentou inúmeros casos de violações de direitos humanos contra vítimas de Burundi à Comissão. Nesses casos, a organização afirmou que, apesar de as vítimas não poderem apresentar casos de violações diretamente ao Tribunal quando os Estados não reconhecem a jurisdição do Tribunal (ver aqui), esses mesmos Estados podem ser objeto de julgamentos do Tribunal se tais casos são apresentados à Comissão e posteriormente encaminhados para o Tribunal. Para a TRIAL International, tal atuação de litigância estratégica no caso das violações contra a população de Burundi em conflitos armados, por meio do encaminhamento de casos da Comissão para o Tribunal, seria uma das possíveis formas de garantir a reparação para as vítimas.


Conclusão


O controle de situações iminentes e graves sobre violações de direitos humanos é um tema que ainda precisa ser desenvolvido dentro da Comissão e da Corte. As medidas já existentes ainda não conseguem exprimir um caráter vinculativo ou definitivo, além de estarem contornadas por limitações territoriais e políticas. Entretanto são medidas essenciais dentro da perspectiva atual do Sistema e que garantem dentro de suas limitações importantes efeitos na defesa dos direitos humanos e dos povos.


Apesar de não reiterar o encaminhamento direto para o Tribunal, assim como existia nas antigas Regras de Procedimento, talvez a ênfase da Comissão na atuação conjunta com o órgão de prevenção, monitoramento e resolução de conflitos da União Africana possa representar novas oportunidades procedimentais de encaminhamentos de casos para o Tribunal, podendo inclusive trazer novas formas de complementaridade entre a Comissão e o Tribunal em casos de conflitos armados. As diferentes atuações de organizações e vítimas em litigância estratégica também podem representar novas oportunidades futuras procedimentais na denúncia e recebimento de casos envolvendo conflitos armados e estados de emergência pela Comissão e pelo Tribunal Africanos.




*Hannah De Gregorio Leão e Lucimar Prata dos Santos são pesquisadoras do Observatório Cosmopolita do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos.


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